Os fantasmas da Rua do Canal

(João Ubaldo Ribeiro)

Aqui em Itaparica, sempre fomos, como em tantos outros campos, muito bons em questões de fantasmas e almas penadas em geral. Recordo com muita saudade minha tia-avó Emília, que veio morar aqui em casa quando isto cá ainda era meio casa-grande e que lutava com notável bravura contra os fantasmas dos holandeses. Parece que os holandeses não se conformavam em terem sido escorraçados da ilha em 1648 e, a cada oportunidade, tentavam voltar para propagar suas heresias e promover geral esculhambação, como é do feitio deles. Minha avó Emília não admitia e aí a gente acordava no meio da noite, com ela vermelhinha, esbaforida e exaltada, depois de repelir energicamente tentativas holandesas de novamente assaltar a ilha e cometer as algozarias pelas quais ficaram tristemente famosos entre nós.

— Pequena, você não sabe — contava ela a minha avó materna, depois de tomar meio copo de água com açúcar para acalmar-se. — Os desgraçados começaram a subir pela janela, cada burro de holandês deste tamanho, tudo louro de olho azul e fedendo a cebola, aí senão quando eu me acordei e baixei o cajado neles! Graças a Deus que eles são hereges e Deus não ajuda herege, de maneira que, mal eu tinha dado a primeira penicada na cabeça de um, já apareceu Santo Antônio de um lado e Padre Vieira do outro e aí, minha filha, o que se via era holandês apanhando e querendo fugir nos atropelos, se bem que os miseráveis são fortinhos e dão trabalho.

Atualmente, com vó Emília de muito finada, tudo indica que os holandeses desistiram. Lá em cima, prontos para prevenirem a reincidência dos ataques, ela não só deve ter reencontrado Santo Antônio como Padre Vieira e, last, not least , Vavá Paparrão, que, como sabem meus esforçados leitores, ensinou capoeira ao santo. Temos tido poucas ocorrências de ataques de fantasmas holandeses e tudo leva a crer que esta situação perdurará. Entretanto, isto não quer dizer que aqui na ilha não haja grande número de fantasmas de todos os tipos, inclusive os meus. Sei que é difícil acreditar, mas o itaparicano não mente e, por via de conseqüência, tampouco eu. Tenho estado regularmente, por exemplo, com meu primo filósofo, Walter Ubaldo, e com meu avô coronel Ubaldo Osório.

A posição de Walter, na intimidade (apenas para os familiares mais chegados) Waltinho, mudou pouco. Ele continua a pregar a utilização do sorriso de desdém como a melhor arma que o homem tem e não bota muita fé em novos tempos. Em prolongados debates, nos quais cita seus livros preferidos (“O príncipe”, “Palavras cínicas” e as obras completas de Vargas Villa e Pitigrilli), ele aconselha, não sem um misterioso risinho de mofa, que eu cuide de minha vida o quanto antes e pare de me preocupar com a situação geral do país e da Humanidade, porque nada terá jeito. A Humanidade, reexplica ele pacientemente, não tem conserto e, se esse louvável rapaz (“esse louvável rapaz” é o presidente Lula) acredita que adiantou alguma coisa falar para os chefes gringos, está muito enganado, não vai mudar nada. No máximo, eles vão passar a aplicar uma anestesiazinha, antes de fazerem o que fazem com a gente desde que iniciamos nossa existência. E, me dirigindo um vasto sorriso de desdém, desaparece por trás do fulgente quarto minguante com que a Lua nos vinha aparecendo.

Já meu avô, o exaltado patriota de sempre, não pensa da mesma forma. Pelo contrário, sua criatividade não cessa de prosperar, mesmo no além, e ele oferece propostas radicais. Por exemplo, nada desse negócio de querer botar na cadeia ladrões do dinheiro público, estelionatários e similares. Esse tipo de brasileiro, segundo ele, revela um talento insuperável, que nunca conseguiremos domar. Demonstramos extraordinária burrice em querer reprimi-los, eles podiam ser nossa invencível arma secreta. O que devemos fazer, em vez de ficarmos dando murro em ponta de faca, é aproveitar esses gênios tão abundantes e pô-los para funcionar em nosso benefício. O dr. Garotinho está se expondo a desnecessário e falto de justiça desgaste, com o caso dos fiscais acusados de delinqüir e malocar dinheiro ilícito na Suíça. Fica ele obrigado a declarar que nem sabia da existência dos ditos fiscais e estes a sumir, mesmo entre extremadas alegações de inocência. Chato, chato, porque é insopitável a sensação incômoda e vexatória de que eles, coitados, estão sendo cruel e ingratamente forçados a não dizer a verdade. Nada disso, aconselha meu avô, temos é que botar esse talento inato para funcionar em nosso favor. Num trabalho inteligente e paciente, infiltremos nossos incontáveis mãos-de-gato em instituições do famoso Primeiro Mundo e, em breve, o Brasil (que pagará a eles merecida e generosa comissão) estará nadando em dinheiro. É tudo uma questão de perspectiva, diz meu avô.

Não sei quanto a vocês, mas para mim isto faz sentido. Asneira querer lutar contra a nossa natureza, tolice querer marginalizar os nossos gênios incompreendidos, bobagem querer aparentar o que não somos. Relaxemos e façamos bom uso daquilo com que temos sido imemorialmente dotados. Precisamos parar, por inúteis, com as noções colonizadas que nos hão norteado até hoje. Miremo-nos no exemplo dos americanos, que querem o petróleo do Iraque e não têm muita paciência com quem não acredita que estão obrando pelo bem da Humanidade. Se não acreditarmos, paciência. Eles pelo menos tentaram, mas, já que não colou, azar o de quem não acreditou. É por essas e outras que eles têm a bomba atômica e nós não, diz meu avô.