Na hora em que estou escrevendo, a guerra ainda não começou. Na hora em que você estiver lendo isto, ela já pode ter começado. Pode começar, como sabemos, ou achamos que sabemos, daqui a pouco, a qualquer momento. Dificilmente ela deixará de deflagrar-se, apesar da oposição popular em praticamente todos os cantos do mundo. Com certeza muitos acham que, por estarmos tão longe, ela não nos atingirá. Sim, provavelmente os brasileiros não serão bombardeados ou contaminados ou o que lá possa acontecer numa guerra contemporânea. Mas sofreremos os efeitos indiretos, alguns deles talvez mais graves do que imaginamos agora, e não há como obscurecer o fato de que, por sermos humanos, qualquer guerra nos atinge.
Que espécie curiosamente atrasada somos nós! Capazes de criar o sublime, de idear a perfeição, de transcender pelo pensamento nossa condição de animal primitivo num planeta pequenino e perdido num espaço inimaginável, no entanto ainda nos matamos, ainda abrigamos tamanha dose de irracionalidade que persistimos em odiar o semelhante apenas porque ele é diferente de nós. As religiões, por exemplo, costumam, cada uma à sua maneira, pregar a misericórdia, a compaixão, a solidariedade, o amor. Mas não é isso que, institucionalizadas, elas têm promovido através da História. A crença alheia ofende, a prática alheia ameaça, e nós matamos.
Predadores de tudo, fazemos força para destruir a Terra que herdamos e da qual nos declaramos senhores, violentamos a Natureza de todas as formas, arrogamo-nos uma soberba sem limites, acreditamos que prevaleceremos para sempre. Nossa pequenez não é lembrada, nossa fragilidade é ignorada, nossa vida tão efêmera nos parece eterna. Nosso mundo nunca viveu sem que alguma guerra, de qualquer tipo, estivesse ocorrendo em algum lugar. Foi assim no passado, continua assim no presente e continuará no futuro, até o dia em que nos destruirmos de uma vez e deixarmos nossa herança para as baratas, ou que outras espécies não sucumbam à nossa insensatez.
Em que mundo assombrado nós vivemos, hem? Claro, sempre foi assim e o homem, na verdade, nunca esteve livre dos pesadelos que ele próprio cria. Bobagem pensar que antigamente, qualquer que seja esse “antigamente”, desde a pré-História até o século passado, as coisas eram melhores, porque não eram. Mas hoje os avanços tecnológicos chegaram a tal ponto que a tirania, a opressão e a iniqüidade têm novas armas, algumas das quais nem sentimos, outras das quais nos manipulam sem que saibamos, e já não temos como distinguir em que acreditar.
As campanhas de desinformação estão em pleno andamento. Certamente haverá exagero ou invenção nas teorias conspiratoriais que se ventilam todos os dias, aqui e acolá. Mas não temos nem como desmentir tais teorias, porque o mundo da informação já não nos pertence, por mais que tenhamos imprensa livre e outros mecanismos crescentemente ilusórios. É impossível saber se uma notícia foi plantada e, se for este o caso, por quem e como foi plantada. A propaganda é objeto de abordagens sofisticadas, que nos fazem vítimas de, potencialmente, qualquer tipo de alegação ou “prova”. A vida privada cessa de existir, um admirável mundo novo, híbrido do de Huxley e com o de Orwell, toma forma cada vez mais claramente.
A verdade parece ser que os Estados Unidos estão, como o lobo da fábula com o cordeiro, dispostos a atacar o Iraque de qualquer jeito. A maior parte de nós, julgo eu, é contra déspotas e ditadores — e, assim, não podemos apoiar Saddam Hussein. Também creio que pouca gente será a favor de atentados como os que atingiram tão brutal e barbaramente as duas torres do World Trade Center. E, pessoalmente, de novo como muita gente, não me manifesto contra o povo americano, ao manifestar-me contra a guerra. Os americanos não podem olhar os críticos da sua ação belicosa de seu governo na base do “não está comigo, está contra mim”. Pelo contrário, as manifestações populares contra a guerra estão assumindo proporções maiores a cada dia, nos Estados Unidos e vizinhos tradicionalmente aliados, como o Canadá.
Essa guerra tem que ser condenada porque nada desmente que ela seja ditada pela arrogância e cupidez de dirigentes motivados por interesses econômicos e geopolíticos. Esses governantes querem assegurar seu controle sobre o oceano de petróleo em cima do qual se assenta o Iraque, querem matar inocentes e arriscar-se a respostas terroristas imprevisíveis, numa escalada cujo percurso ninguém ainda pode calcular. O mundo assiste impotente a uma jogada de poder brutal puro e simples, cuja sustentação são alegações duvidosas, muitas vezes hipócritas e até baseadas, segundo se veiculou, em fontes como um trabalho estudantil ultrapassado, baixado da internet e citado solenemente na ONU, pelo secretário de Estado americano.
Estou, evidentemente, generalizando, mas me parece correto dizer que o povo do mundo não quer essa guerra. Não quer, mas os governantes da nação mais poderosa da Terra vão fazer a guerra e solidificar a imagem de prepotência que já conseguiram solidificar em todo o mundo. Estamos submetidos ao poder imperial dos Estados Unidos e não se escuta a nossa voz, nem as dos próprios cidadãos americanos que pensam como nós. Vamos de novo assistir à morte de crianças, à fome, à peste, às doenças, à desgraça, ao desbaratamento dos valores mais elementares, às conseqüências do atraso medonho em que vive a nossa espécie. Vamos ter de passar por essa guerra. E vamos rezar para que ela não venha um dia a transformar-se nesta guerra — presente, aqui em nosso meio. Até porque pertence a nós muito do que cobiçam os senhores da guerra e nada diz que não seremos os próximos.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Globo em 16/02/2003.