Mal o astro-rei fazia esplendecer seus raios fúlgidos na fímbria dourada do horizonte, já este escravo da pena e do teclado se preparava com vigor para enfrentar sua prova diária nos perigos e desilusões do calçadão da praia. Bem verdade que nunca existiu propriamente entusiasmo de sua parte, em andar no calçadão. Ao contrário dos inúmeros que se sentem estrondosamente bem depois de tal exercício, o signatário jamais logrou esse feito, mesmo depois de meses de caminhadas assíduas. Suas endorfinas devem sofrer algum tipo de cerceamento, quiçá fruto da condição embaraçosa de nordestino, porque o que ele sente é alívio em terminar sua quota de esforço e saber que somente dentro de 24 horas será constrangido a nova proeza atlética.
Claro, ele só anda por causa do terrorismo médico, que o ameaça com as penas infernais, se não vencer o sedentarismo que por índole o aflige. Alarmado, o médico lhe telefona e, além de enfatizar a afirmação segundo a qual ele não pode comer mais nada a não ser folhas e capins variados (que, assim mesmo, estão contaminados por agrotóxicos, mas nada neste mundo é perfeito e não se pode querer tudo), lhe dirige severa advertência sobre suas acabrunhantes taxas de colesterol e triglicerídeos, substâncias hediondas cujo teor ele ignora, mas é ensinado a temer como o diabo teme a cruz. Isso para não falar em enzimas pancreáticas e hepáticas, sobre as quais sabe menos ainda, mas que quase levaram o sofredor facultativo aos prantos. Aí o infeliz, tão rudemente despertado para seu estado pré-terminal, pensa na família que deixará desamparada e calça os tênis para caminhar.
Sim, caminhar, não é mesmo? É, vamos parar com esse negócio de resistir ao contato benfazejo com o sol da manhã e o ar puro da praia. A vida é bela e não há por que ficar ruminando as notícias que leu e ouviu no dia anterior, muito menos tremer por causa delas. Afinal, nada é tão feio quanto se pinta e, portanto, não há motivo para prestar atenção nos relatos que dão conta de que, numa espécie de moda subitamente deflagrada, agora se matam pais, mães, avós e filhos pequenos, por questões outrora resolvidas de outra forma. Aqui diz, por exemplo, que um menino pagou trezentos reais a outro para matar a sua dele mãe, a qual não morreu somente porque o assassino frustrado era muito pequeno e não teve força para golpes de faca mais profundos. É isso mesmo, são os novos tempos, deve ser a modernização das relações familiares, aqui antes tão antiquadas. E deve ser sublinhada a economia em psicanálise ou psiquiatria que isso gera, porque se resolvem logo os impulsos primais (estou chutando um pouco, pois não faço idéia do que possam ser impulsos primais, só achei chique mencioná-los), dando vazão desinibida a eles. Com certeza, estamos muito adiante de outros países.
O mundo, também diz aqui, vai acabar bem mais cedo do que pensávamos. Vai acabar, digamos, de causas naturais, porque assevera a mais moderna ciência que a Terra, ao contrário do que nos acostumamos a pensar, não foi feita para ser tão propícia à vida quanto afirmavam até outro dia. Na verdade, trata-se de um planeta traiçoeiro e emocionalmente instável, que um dia destes vai congelar tudo, com geleiras arrasando as cidades e transformando os seres vivos em picolés, com a proverbial exceção da barata, eis que a barata é sempre citada como nossa sucessora e todos os estudiosos morrem de admiração pelas qualidades dela. Para não lembrar que a guerra que vem aí poderá alastrar-se de forma descontrolada, contaminando das plantas à água e tornando impossível a nossa sobrevivência.
Sim, a guerra. É óbvio que não têm razão esses malucos que dizem que estão preparando alguma coisa para o Brasil, que já se encontraria na fila para uma invasãozinha, a fim de proteger o gênero humano da irresponsabilidade nacional em relação à Amazônia. Há até quem preveja que vão inventar, de maneira semelhante ao que fizeram com a Colômbia para tirar dela o pedaço que hoje é o Panamá, com o Vietnã e a Coréia, um Brasil do Norte e um Brasil do Sul, inteiramente diferentes entre si, falando línguas diversas e odiando um ao outro até os gorgomilos. Aí, em nome da salvação da Amazônia, apóiam o Norte e Nordeste na guerra contra o Sul e o Sudeste, botam no bolso alguns líderes regionais, declaram livres, por plebiscito, em nome da autodeterminação dos povos, os territórios indígenas e se refaz o país, ou países, com o Sul e o Sudeste depois recebendo até uma ajudazinha financeira, a juros módicos. Tudo delírio de maluco mesmo, esse tipo de coisa só acontece longe e com povos de aparência e costumes exóticos.
Sim, nada a temer, em frente com o calçadão. Antes, porém, uma mera ligadazinha no computador, só para ver o expediente do dia. Ligadazinha? O miserável se recusa a funcionar direito, não se consegue conexão, reage à insistência, começa a piscar, apagar e exibir perversões diversas. Pronto, de antes das oito da manhã às três da tarde, uma sessão educativa ao telefone, ouvindo musiquinhas repetidas sadicamente e recebendo respostas evasivas de provedores e quejandos. Não funciona nada, não se resolve nada, é tudo um festival de mal-entendidos e geral incompetência. Mas para que existem tranqüilizantes, a não ser para isso mesmo? E quem manda se meter a besta e achar que pode usar computador num país em que milhões ainda nem aprenderam a usar garfo, até porque não precisam? É, bobagem se aborrecer. Esperar que consertem o que lá tenha quebrado e ler de novo os jornais. O calçadão pode perfeitamente ficar para a noitinha. Pois é. Sim, lê-se aqui que São Paulo não agüenta mais chuvas e uma hora dessas será submergido, uma mulher foi tragada para sempre por um esgoto, a inflação está voltando... Tudo normal, normalíssimo, não sei por que este ranger de dentes.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Globo em 23/02/2003.