Claro, hoje é domingo de carnaval, a grande festa deste povo festeiro que somos nós e ninguém vai falar de trivialidades tais como o clima de guerra estabelecido no Rio de Janeiro na semana passada. Tenho uma amiga que casou com um israelense e emigrou para Israel, de onde de vez em quando me manda um e-mail. Faz uns dias, um deles tratava extensamente do bafafá no Rio, em relatos que ela compilou lá mesmo, pela internet. Mais uma vez o mundo se curva. Comparada com a vida que ela leva em Israel, considerando, inclusive, sua condição de judia e, portanto, alvo de grupos que odeiam judeus, o nosso dia-a-dia aqui é muito mais movimentado. Numa só manhã, conseguiram virar pelo avesso e levar ao pânico uma cidade de população maior do que Israel inteiro.
Mas vamos pensar que isso se repetirá? De acordo com o que nos disseram, não. Até porque, afirmaram algumas autoridades, o terrorismo se deveu a uma resposta à ação policial. Ou seja, não devemos ter polícia, ou, se a tivermos, não devemos deixar que aja, pois, se agir, poderá provocar reações que não consegue reprimir. Confesso que encontrei dificuldade em compreender o raciocínio, mas deve ser burrice nordestina mesmo. A polícia não pode exercer suas funções, senão fica impedida de exercer suas funções, deve ser resumível mais ou menos assim. Deixo a exegese para os mais inteligentes ou os acostumados a esse tipo de entendimento. Basta que eu saiba que, para não termos problemas policiais, não devemos ter polícia. Pensando bem, faz sentido, ou deve fazer. Vou parar com isto, já estou notando o juízo esquentar.
Além disso, disseram também que já sabiam de antemão que a "operação" dos bandidos estava prevista, os serviços de informação da polícia sabiam do que se deflagraria. Imagino que isso deve querer dizer, por exemplo, que um cidadão que estivesse num dos ônibus incendiados devia dizer para os incendiários: "Estou me lixando para esse seu incêndio, já estava tudo previsto." Assim como, naturalmente, estavam previstos outros acontecimentos, tais como as bombas nas ruas e em portas de prédios e o fechamento de lojas por ordem do tráfico. Perdemos, aqui no Rio, uma excelente oportunidade para curtir com a cara dos bandidos, falando a eles na previsão: "Pode dar seus tiros ou soltar sua granada, seu besta, já estava tudo previsto. Ho-ho, já estava tudo previsto, bobão." Se não estivesse tudo previsto, está certo, aí poderíamos alegar desamparo, mas, da forma que asseguram haver tudo ocorrido, teve medo quem quis, certamente por má vontade com os poderes públicos.
Carnaval é feito para a gente se despreocupar e imagino que, em São Paulo, onde houve tiroteios e mortes em eventos pré-carnavalescos, também devia estar tudo previsto e quem vai ligar para o que hoje é passado, quando Momo está aí mesmo, para nos convocar para a alegria e a despreocupação? Eu mesmo, que sou meio anormal e, por mais que faça força, não muito chegado a carnaval, fico me preocupando à toa. Peço desculpas por lembrar assuntos desagradáveis em tempos tão alegres, mas vocês devem ter lido por aí que há planos de elevar as alíquotas do Imposto de Renda para 35 por cento. Isso deveria ser feito, creio eu, agora, mas parece que adiaram para o momento em que for empreendida a reforma tributária.
Esses 35 por cento não deverão preocupar a maioria dos brasileiros, porque só vão incidir sobre os rendimentos da reduzida faixa dos que ganham mais. Não dos ricos, é claro, porque rico não paga Imposto de Renda. Tenho amigos e conhecidos ricos que botam tudo "nas firmas" e, oficialmente, vivem com rendas de indigentes, uns trocadinhos para comprar um eventual chiclete, de forma que costumam receber restituição, depois que declaram seu minguado dinheirinho. E, mais claro ainda, tampouco dos bancos, pois faz um par de anos que jornais publicaram uma impressionante relação de bancos que tinham lucro mas não pagavam um centavo de Imposto de Renda. Ou seja, tudo indica que, no governo da mudança, não vai mudar nada em favor do assalariado ou de quem tem seu Imposto de Renda descontado na fonte. Esse, ao contrário dos ricos e bancos, vai pagar e, se chiar pelo fato de estar trabalhando uns quatro meses de graça, para dar o dinheiro ao governo e ainda pagar mais depois da declaração, será um reles impatriota, com perdão da má palavra.
Para não falar que também cogitam eliminar as deduções, todas ou a maioria. Já fazemos deduções generosíssimas, por exemplo, com a educação dos nossos filhos, que pagamos duas vezes, uma pela pública e outra pela particular, só que a pública não funciona e a particular é praticamente obrigatória para quem pode e quer que seus filhos tenham aulas e, quando tiverem, aulas em condições decentes para alunos e professores. Agora não, agora tudo indica que essa moleza vai acabar e que, finalmente, neste estado de atendimento social à altura da Suécia, vamos reconhecer o fato inelutável de que a principal função do governo é cobrar impostos. E não adianta nem querer conversar com alguma autoridade porque agora, deu também nos jornais, o governo, apesar de toda a transparência, ou que lá no ver dele seja isso, mandou seu pessoal calar a boca e falar o mínimo possível sobre o que está fazendo.
Grande desmancha-prazeres eu estou me saindo, não é? Onde já se viu querer estragar o carnaval alheio com esses assuntos que deverão vir à tona somente depois da Semana Santa, quando o ano começa a acabar? Aliás, não vou estragar nem mesmo o meu carnaval, quanto mais o alheio. É capaz de eu aparecer num dos camarotes do Sambódromo usando o colete à prova de balas que me deram de presente. Não tenho grana para um carro blindado, mas acho que posso dizer que vou sair de ministro Graziano.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Globo em 02/03/2003.