Até amanhã?

(João Ubaldo Ribeiro)

A esta altura, não sei se alteraram o agendamento da guerra. No matraquear destas mal traçadas, o último prazo dado ao Iraque era amanhã, embora tenha havido o adiamento de uma reunião do Conselho de Segurança, briga com os ingleses e outros imprevistos. Não sei se daqui para o fechamento do jornal as coisas mudaram, porque mudam a cada instante, e a cada instante tomo novo susto. Alguns amigos se preocupam com a triste condição em que me encontro, por causa dessa guerra que ainda espero, contra todas as evidências, que não venha. A maior parte das pessoas, pelo menos aquelas com as quais convivo, se comporta como se a guerra fosse em Marte e não pudesse afetar-nos em nada. Certamente elas têm razão. Vai haver problemas econômicos, vamos ficar vagamente horrorizados diante de escombros, crianças mortas e outras cenas comuns da vida hodierna, vamos talvez até fazer pequenas inimizades em reuniões, discutindo com alguém que pensa diferentemente de nós. Mais afetados que isso, porém, não seremos. É o que parece crer a sensatez geral, o que somente me acentua a sensação de que sou algum tipo de anormal razoavelmente benigno, padecendo delírios onde ninguém vê senão acontecimentos remotos. Amigos ajuizados, um deles jornalista influente e muito bem informado, me mandam bilhetes e e-mails garantindo, embora não expliquem por que, que não vai haver guerra nenhuma.

Outros, ainda, suspiram, antes de pedirem que eu mude de assunto.

Bem verdade que, para evitar que me internem, posso apontar algumas companhias. Há amigos que também se preocupam com essa guerra e que também acham que o mundo está ameaçado, não só pelo precedente criado pela ação americana como pelo que pode acontecer depois. E na internet, dado um generoso desconto à boataria e ao alarmismo histérico, há muita gente séria se manifestando. Criou-se até um "site" destinado a pedir um até agora extremamente improvável impeachment de Bush, orientado por um jurista eminente, Ramsey Clark, que foi o equivalente americano de ministro da Justiça, no governo de Lyndon Johnson. (O endereço, antes que comecem a telefonar para o pessoal da redação, que não tem nada a ver com minha aflição, é "http://www.votetoimpeach.org/", sem as aspas.) Leonardo Boff escreveu ao papa sugerindo que Sua Santidade se mude temporariamente para Bagdá. Ele, Boff, que não conheço pessoalmente, mas com quem me correspondo, disse, num de seus e-mails que "Loucura se cura com loucura, similia similibus curantur, mas seria também algo do Espírito que sempre introduz o novo e o 'louco' na história". Parece simples classificar a idéia como rematada maluquice e deixá-la de lado, mas ela vem tendo repercussões, obtendo adesões e até o jornal italiano Corriere della Sera mandou fazer uma matéria sobre a proposta. Na Suíça, um jesuíta respeitabilíssimo, frei Lukas Niederberger (lukas.niederberger@lassallehaus.org), iniciou uma petição solicitando que o papa convoque um sínodo dos principais líderes espirituais do mundo, em Bagdá. E, pelo menos num ponto, mesmo os adversários dele não podem negar que Boff está certo, pois, num momento universal de loucura, tudo é louco ou, sendo tudo louco, nada mais é louco. E alguns líderes espirituais hão de servir para alguma coisa além de nos fazer sentir culpados por não sermos os santos que nos exortam a ser muitas religiões. Não é para imitar o Cristo?

Então que o Cristo seja imitado, falar é fácil.

Não estou suficientemente desequilibrado para achar que, aqui no Brasil, vamos ser contaminados por armas químicas ou bacteriológicas e muito menos atômicas. Por enquanto não, até a próxima onda de loucura (quer dizer, loucura sim, pois diabolicamente inconseqüente, mas loucura com método, o objetivo do domínio, do controle e do lucro), esse risco não existe. Mas que tipo de mundo vamos herdar dessa guerra? Exagero, exagero, dizem todos, disso aí não vai sair a Terceira Guerra Mundial. Como é que se sabe que não vai sair? Entre outras variáveis, lida-se nessa guerra com gente que não está simplesmente disposta a morrer, mas, muito além, querendo ardentemente morrer pela sua causa. Haverá inimigo tão perigoso quanto aquele que encara como o destino mais glorioso possível morrer para eliminar o outro?

E como reagirá esse inimigo, depois que a guerra começar? Os senhores da guerra ("aliados", dizem eles, querendo apresentar-se sob a mesma luz favorável que os aliados da Segunda Guerra, mas, basicamente, Bush e a Grã-Bretanha, hoje rebaixada de império a protetorado norte-americano) anunciam que tomarão o Iraque em 72 horas. Já ouvimos esse tipo de conversa antes e, por exemplo, mesmo levadas em conta as diferenças até topográficas, não conseguiram tomar conta integral do Afeganistão e muito menos achar Bin Laden. E, na hipótese em que consigam, como se lutará, daí em diante, contra um inimigo sem uniforme e sem rosto, um inimigo que pode estar em toda parte? Quem terá mais segurança no mundo? Que liberdade, que tranqüilidade perdurarão? A quantas tragédias mais assistiremos?

A data, como eu disse no começo, era amanhã. Espero que, no intervalo entre a escrita e o fechamento do jornal de domingo, tenha havido outro adiamento.

Espero que venham tantos adiamentos quantos forem necessários, até que o fantasma da guerra vá embora. E espero, afinal, que meus amigos ajuizados tenham razão, eles devem ter razão, não é possível que essa guerra se concretize, a Humanidade não pode dar tamanho passo para trás. Lembro da afirmação de Einstein, que cito de cabeça e talvez imprecisamente, segundo a qual ele não sabia que armas seriam usadas na Terceira Guerra, mas, na Quarta, com certeza seriam paus e pedras. Isso não pode acontecer, embora, de minha parte, seja apenas uma declaração voluntarista. Como morador de um Rio outrora risonho e hoje sitiado por onipresente violência e em virtual conflagração civil, sei que tudo pode acontecer.