Eta mundo véio!

(João Ubaldo Ribeiro)

A frase que dá título a estas muito mal alinhavadas palavras é de meu tempo. A gente demora a se acostumar que há coisas definitivamente do nosso tempo, das quais os jovens, o que lá seja isso, não têm conhecimento, ou têm conhecimento muito vago. Acho que já nos vemos obrigados a explicar às novas gerações, por exemplo, o que era uma máquina de escrever e, se pusermos um membro das ditas gerações diante de um telefone de disco, ele terá de raciocinar, para saber como conseguir uma ligação no curioso aparelho. Os menos mocinhos, como eu, que atravesso o esplendor dos 62, também têm dificuldade em entender que, para os meninos e meninas de hoje, guardadas as devidas proporções, Hitler é tão distante quanto Napoleão para nossos pais — um nome perdido na bruma do tempo, responsável por acontecimentos só encontrados em livros de História.

Quando escolhi o título acima, não pensei que teria de explicá-lo. Afinal, todo mundo sabe que era uma frase dita por duplas caipiras da época de Jararaca e Ratinho, Alvarenga e Ranchinho e outros. Mas todo mundo quem, cara pálida? Ninguém, a não ser membros dos provectos círculos de aposentados semelhantes aos que me acolhem, que se reúnem para um carteado ou para debater a escalação do América em 1951. Como os jornais não são destinados exclusivamente a esses círculos, cabe explicar que já houve duplas caipiras que faziam humor com piadas, paródias musicais e modinhas satíricas. E uma delas, não sei se Alvarenga e Ranchinho ou Jararaca e Ratinho ou ainda uma terceira, usava como bordão a frase “eta mundo véio!”.

É, usava e, de repente, na cabeça deste ancião que lhes escreve, ela apareceu para se aplicar aos novos tempos.

A guerra já deve ter começado. Preciso desculpar-me porque, a esta altura, não posso ter certeza e não quero cometer a velha mancada jornalística de comentar um fato que vai acontecer como já acontecido. De repente, por milagre, a guerra ainda não começou. Explico: a triunfante malha médica vai internar-me outra vez, para fazer umas operações consideradas quase banais, mas, de qualquer forma, operações. Aí, meio agoniado, sou obrigado a escrever antes do tempo, porque o bisturi já está marcado e não espera. Mas a guerra deve ter começado, sim, embora, segundo alguns entendidos, possa também já ter acabado, do que duvido muito, pois, na minha opinião, acabamos de entrar na Terceira Guerra Mundial e tão cedo não vamos sair dela.

Dirão vocês que sou um alarmista exagerado e até chego à histeria, mas me defendo. Não sou. Guerra mundial não é somente o que a minha geração se acostumou a ver em filmes de Hollywood, com os americanos salvando o mundo sozinhos, independentemente de ingleses e soviéticos (a União Soviética, vulgo URSS, era um país que existia antigamente e de que alguns certamente se lembrarão). Uma vez, vi um ator de meu tempo, Jeffrey Hunter, tomando sozinho, com uma metralhadora que nunca ficava sem balas e, se bem me lembro, um par de granadas de mão, uma ilha do Pacífico cheia de japoneses.

Guerra mundial é outra coisa, tanto no mundo véio quanto no novo. No mundo muito véio, por exemplo, não é desarrazoado dizer que os países ibéricos viviam em guerra mundial com, por exemplo, os holandeses. A guerra era travada no Oceano Índico, na África e até por aqui mesmo, ali em Pernambuco e na Bahia, que são Nordeste, mas, por enquanto, ainda são Brasil. Claro, as circunstâncias eram bem diversas, mas se tratava de guerra mundial mesmo, na busca de riquezas em áreas ainda inexploradas pelos europeus.

A Terceira Guerra Mundial, a que dou este nome em homenagem à tradição que apelidou as duas anteriores, não vai ser, é óbvio, como as que a precederam.

Não me refiro, embora sejam aspectos relevantes, a diferenças tais como um piloto de caça a jato moderno nem enxergar o outro com quem se engaja em combate por mísseis. O outro, freqüentemente, não passa de dados de computador. Computador este, por sinal, que também introduz novos elementos tecnológicos, tais como o uso de vírus e outras sujeiras informáticas para incapacitar sistemas inimigos. Enfim, a tecnologia faz diferença e a mortandade e desgraça trazidas por ela foram pavorosamente ampliadas em suas perspectivas. Mas não é essa a diferença principal, pelo menos de um ponto de vista mais amplo.

A diferença principal é que, por exemplo, os atuais “aliados” não vão ganhar as batalhas contra o Iraque, acatar a rendição, assinar um armistício e, como prometeu o presidente Bush, julgar iraquianos acusados de crimes de guerra, como fizeram com os líderes nazistas em Nuremberg, botar um governo lá e começar o trabalho de reconstrução — mais uma alegria econômica desta guerra, com as empreiteiras favorecidas botando no bolso bilhões e bilhões de dólares. Não vai ser assim, ou muito se engana gente que pensa como eu (e gente qualificada para isso, ao contrário de mim, que só tenho condição de dar palpites modestos, de gente como qualquer um de vocês). Fazer a guerra é uma coisa, fazer a paz é outra, muito diferente.

Os “aliados” (quem vos viu, quem vos vê, Espanha e Portugal!) vão ganhar, se já não ganharam, a batalha de Bagdá. Mas vão trazer a paz para o mundo? É preciso ser muito panglossiano para acreditar nisso. Com a vitória nessa batalha, o que vai se seguir será o prosseguimento do conflito com suas inúmeras e horrendas faces pelo mundo inteiro, até quando não se sabe. O ódio se acirrou, as animosidades se inflamaram e, para muita gente, isto não vai ficar por isso mesmo, a começar pelas restrições às liberdades individuais que um terrorismo provavelmente incessante acabará por tornar inevitáveis. O nosso mundo ficou véio, muito véio, de repente. E o mundo novo, nas suas formas sofisticadas de barbárie e atrocidade, talvez não seja mais para nós. Talvez não seja mais para ninguém.