Felizes para sempre

(João Ubaldo Ribeiro)

Se vocês pensam que hoje não estou falando na guerra do Iraque porque não quero, devo esclarecer que não é verdade. O assunto que não me sai da cabeça é essa guerra e continuaria falando nela o tempo todo porque, para mim, como já devem saber os pacientíssimos leitores habituais, estamos começando uma nova era na história da Humanidade e, se ela ainda for mudar, já teremos de muito ido desta para melhor, ou pior. Mas não adianta falar. Como já estava previsto, o assunto cansou e agora vem a parte mais tediosa, pelo menos inicialmente, que é como vão administrar os espólios e como vão continuar a salvar o povo iraquiano. Claro, toda sorte de pepino surgirá nessa administração dos espólios, mas outra vez serão pepinos distantes e chatíssimos, de que ninguém aqui vai querer saber.

Para nós, a parte que interessa diretamente, ao que tudo indica, está bastante longe. Os Estados Unidos não se acostumaram direito a ser os donos do mundo, tem sido fácil demais. Quer dizer, acostumar, acostumaram, mas ainda não conseguiram um modus faciendi administrável, que nos leve, por exemplo, no caso dos ibero-americanos, a aprender com facilidade a ser cucarachas em nossa própria terra. Vão conseguir, naturalmente, até porque os brasileiros, a julgar pela fartura de exemplos que nos cercam nas grandes cidades, morrem de vontade de ser americanos, mesmo na condição de cucarachas. Já visualizo acontecimentos no futuro nos quais toquei aqui um par de vezes, mas não custa tocar de novo, porque ninguém lembra mesmo.

Imagino, por exemplo, que, com a falta de água no planeta e a desagradável circunstância de não podermos beber petróleo, vamos ser invadidos para assumirem controle sobre nossa água (não esquecendo nossa ração, espartana mas suficiente para beber sem exageros e para um banho de 30 segundos por mês), embora não da forma grosseira ainda empregada no Iraque. Vai ser coisa mais fina, conquanto sem nenhuma novidade de fato, apenas truques velhos com novas roupagens, pois até para os americanos vale onihil sub sole novum, nada de novo sob o sol. Claro, uma possibilidade prática muito atraente, já posta em prática por eles, será inventar o Brasil do Norte e o Brasil do Sul, no que, aliás, já temos sido ajudados, aqui e ali, por brasileiros mesmos.

O Brasil do Norte, envolvendo a Amazônia e uns pedaços interessantes do Nordeste (existem umas coisas economicamente interessantes lá; ninguém acredita, mas existem, assim como existe gente de verdade e nem toda ela emigra para o Sul, a fim de fortalecer a indústria de carros blindados) teria uma História completamente diferente da do Brasil do Sul e, com facilidade, bastando assistir a algumas novelas da Globo passadas lá, provar-se-ia até que falam línguas diferentes. Daí para o surgimento de hostilidades, com um esquema de propaganda bem-feito, seria um passo. E, um belo dia, dar-se-ia o primeiro tiro nessa guerra entre nações tão diferentes, com o oprimido Norte rebelando-se contra o sugado Sul. Não existiram Vietnã do Norte e do Sul, assim como existem Coréia do Norte e Coréia do Sul?

Os Estados Unidos, paladinos dos oprimidos, apoiariam o Norte. Não porque lá fica a água, mas por uma questão de religiosidade caritativa, que, como sabemos, é o que move o presidente Bush e seus assessores. O Sul reagiria, com sua frota moderna de caças a jato de 35 anos e outros armamentos que hoje nos tornam uma potência temível, mas logo seria derrotado, sem que o Norte precisasse de usar a mãe de todas as bombas, eis que, no caso, uma tia ou mesmo prima em terceiro grau serviria, principalmente no caso de a guerra estourar num feriadão, com a conseqüente relutância do povo em lutar em dias de folga. Decidido o conflito, a Bahia seria declarada independente e com uma constituição outorgada que só permitisse a indústria do lazer, e os estados mais áridos iniciariam, ainda com o generoso apoio americano, programas de irrigação destinados à produção de alimentos, tão necessária a um mundo em constante crescimento populacional.

Quanto ao resto dos vencedores, promover-se-iam plebiscitos nas terras indígenas, pela autodeterminação do povos. Assim, áreas como a dos ianomâmis, depois do plebiscito em que a autonomia triunfaria (com o apoio discreto de associações assistencialistas internacionais, dando aos índios desde facões e carros a voluntárias de ONGs pela liberdade sexual), se tornariam independentes, embora sob a forte influência dos americanos, que aproveitariam todas as riquezas naturais da região, mas recompensando amplamente seus habitantes originais. O mesmo aconteceria em outras regiões, habitadas por povos únicos ou não, pois, se não fossem habitadas, logo o seriam, por refugiados sem terra, de outras partes necessitadas do mundo, ainda sob a égide protetora americana.

O que mais vai ocorrer não sei, mas vai ser mais ou menos assim. Os brasileiros poderiam aspirar a um status no início levemente inferior ao dos porto-riquenhos, pois, afinal, estes são associados aos Estados Unidos há bem mais tempo e antiguidade é posto. Mas nos permitiriam circular pela maior parte do nosso ex-território e nossos direitos seriam praticamente iguais aos dos cidadãos plenos, ou seja, os novos ocupantes da terra. Pensando bem, não vejo por que nos incomodarmos com isso. Se soei incomodado, foi sem querer. E, se deixei vocês incomodados, desculpo-me profusamente. A verdade é que, assim, a vida vai melhorar. Abandonamos brasilidades e nacionalismos antiquados e destrutivos, assumimos a nova realidade e, não nos esqueçamos, poderemos ser as afortunadas cobaias de remédios docemente abestalhantes que a cada dia se desenvolvem mais e poderiam até mesmo ser despejados no suprimento (racionado) de água potável de nossas cidades, para que vivêssemos felizes para sempre. Pois é, podemos viver felizes para sempre e ficamos complicando a vida.