Ainda não chega?

(João Ubaldo Ribeiro)

Entre meus amigos, sou tido como um sujeito bem-humorado, alegre e, embora quase sempre ironicamente, otimista. Como essa reputação deve ter começado a surgir quando eu comecei a falar, botem aí bem mais de cinqüenta anos nisso. Pois é. Apesar de tudo o que a vida nos mostra de ruim, mesmo tendo de ir ao dentista em criança, no tempo em que dentista ganhava de torturador da Inquisição, eu era bem-humorado, alegre e otimista. E também, acrescento um pouco imodestamente, engraçado, já que ninguém ri por educação o tempo todo. Tem uma hora em que o sujeito enche o saco e se dirige à maior distância possível do engraçadinho, o que não acontece comigo.

Pois bem, pois o chato da mesa, ou reunião, ou bate-papo, ou o que lá seja a ocasião social em que me encontre, hoje sou eu. E sou chato também aqui, neste espaço de jornal, onde pelo menos eu costumava ter uma história divertida para contar, ou alguma gozação benévola (malévola é difícil eu fazer) para perpetrar. Às vezes estava até de mau humor e querendo xingar alguém ou alguma coisa, mas pensava, que diabo, o leitor vem aqui a esta página procurar esquecer as aporrinhações da semana e as encontra redobradas, não é justo, vamos fazer uma forcinha e aliviar a barra. E fazia a forcinha e quase sempre conseguia aliviar a barra.

Agora não. Espero não ser demitido em breve, porque não tenho mais nem muito preparo físico para assumir a única função para a qual ostento alguma vocação e quiçá certo talento, que é a de garçom de boteco. Ganha-se melhor como cronista, na maioria dos casos, mas pelo menos quebrava o galho e não deixava a família com a convicção, que até hoje é nela tão sólida como o rochedo de Gibraltar, de que eu nunca trabalho nem nunca trabalhei. Garçom dá um óbvio duro cotidiano e eu faria questão, cobrando uma gorjetinha, é claro, de levar todo mundo ao boteco, para me ver mourejar. É, se me demitirem (agora tenho certeza de que vão; foi coisa ruim, fico logo com certeza, hoje em dia), vou pedir um favorzinho final, que é anunciar o boteco onde prestarei meus serviços, preferivelmente aqui no Leblon mesmo, para não me assaltarem, roubando meus vales-transporte.

Afinal de contas, pergunto eu, brasileiros e brasileiras, até quando a gente vai agüentar o que está acontecendo no Rio de Janeiro? Sei que outras cidades estão sofrendo tanto quanto ou até mais do que o Rio, mas isto aqui é uma vitrine, é nosso ponto de referência internacional (quando existe, o que é bem menos do que a gente pensa) e aqui não dá mais para viver. Claro, há muitas pessoas que só atribuem importância às coisas quando elas as atingem diretamente. Talvez a maior parte de nós, infelizmente, seja assim. Mas que diabo é isso? Ninguém mais repara, por exemplo, no ritual para se sair de casa, de dia ou de noite? Ninguém mais nota que vive como se estivesse em guerra, que a cidade se tornou uma selva feroz onde ninguém confia em ninguém e suspira de alívio quando se volta, assim mesmo não completo, porque dentro de casa tampouco se está livre da violência?

Não tem coisa mais chata, por exemplo, do que ser convidado para um jantarzinho na casa de quem mora a um ou dois blocos de nós. Não dá para pegar táxi, carro próprio é insensatez. Quais são as providências? Esvaziar a carteira, deixando no bolso o suficiente para que o ladrão não se aborreça e, estressado como o governo diz que andam nossos bandidos, nos dê um tiro que dói mais nele do que na gente, por mera questão de princípio. Pegar a cópia xerox da carteira de identidade para mostrar ao PM, o qual aceitará sua validade se quiser, porque comigo às vezes querem e às vezes não querem, apesar de terem dito no jornal que a cópia agora vale. Mas aqui é esta esculhambação, de maneira que há um certo suspense em sair só com a cópia.

Que mais? O relógio bom, que o pai tirou do pulso e deu à gente quando a gente se formou ou fez 21 anos, nem pensar. O paraguaio comprado no camelô, que tem até uma certa estampa, serve perfeitamente. Cueca limpa. Não ficaria bem, se o ladrão resolvesse levar nossas roupa e a cueca estivesse em mau estado de apresentação, que é que ele não iria pensar de nós? Aproveitar também para fazer um galanteio (há um lado bom em tudo, não é mesmo?) à mulher da gente. Que ela não fique tão bonita, se desleixe um pouco, pois, afinal, crescem as notícias sobre estupradores em todos os bairros. E mais: nada de cartão de crédito, nada de cartão de banco, planos para encomendar um carro blindado no próximo ano, número dos telefones de onde vamos estar para os que ficam em casa, dezenas e dezenas de outras medidas que já se incorporaram à nossa maneira de existir.

Agora eu pergunto, com perdão do uso renovado da má palavra: quando é que vai acabar esta esculhambação? Quando vamos ter governantes capazes de, em vez de aumentar impostos, taxas e multas para não fazer nada ou quase nada, garantir o que é mínimo para qualquer governo e sem o qual ele não existiria nem para o velho Hobbes (estou com preguiça e sem espaço para biografá-lo aqui, mas era um inglês de temperamento e convicções não muito democratas), ou seja, segurança? Para que diabo temos governo, se não temos segurança? É para cada um aprender a atirar e sair atirando a qualquer provocação? É uma tentativa de incentivar a religiosidade do povo, fazendo com que rezemos toda vez que um filho ou filha volte de uma festa ou da aula, porque o Fundão é mais perigoso do que o Iraque? O Estado foi constituído para preencher necessidades como os serviços públicos e, principalmente, em seu sentido mais lato, a segurança. Que segurança? É PM metralhado, é bala perdida, é barco afundado, é ônibus incendiado, é mocinha estuprada, é epidemia de tudo quanto é tipo, é assombração em cima de assombração, por todos os lados! E eu pergunto, no meio dos carneiros entre os quais me incluo, embora berre: ainda não chega? Que é que estão esperando, que a bandidagem e a criminalidade se institucionalizem de vez? Que é que faz esse governo?