Confesso a vocês que já estava um pouco nervoso, apesar da violência no Rio de Janeiro. Como — perguntarão vocês — estar nervoso “apesar da” e não “por causa da” violência no Rio de Janeiro? É, realmente parece estranho à primeira vista, especialmente para quem não conhece os outros aspectos da minha presente situação. É que devo viajar à Europa dentro de uns 40 dias e me parecia pouco o material que tinha para levar aos interessados na situação do Brasil. A violência impressiona, especialmente se narrada com vividez e certas tintas carregadas, bem como comparações que todo mundo usa e ninguém se preocupa em conferir, tais como “morrem mais crianças de fome à porta dos hotéis de luxo de Copacabana do que combatentes nas guerras em andamento na África”. Toda hora alguém diz qualquer coisa assim e ninguém discute. Mesmo quando os números não são explicitados, metem medo e ninguém ousa questioná-los. Em qualquer discussão, basta dizer que 3,88% de qualquer coisa são assim para o oponente calar a boca. Porcentagem convence muito e, principalmente se tiver uma vírgula ou ponto, ninguém discute.
Pois é, mas assim mesmo eu estava com medo de decepcionar as platéias que me receberão. Não está um pouco batido, esse negócio de violência urbana? A violência urbana mostrada nos filmes americanos não é muito mais bem acabada e satisfatória? A guerra do Iraque, embora não saibamos nem jamais venhamos a saber quantos matou, não enfraqueceu um pouco a nossa posição? Por outro lado, a insistência de certas emissoras noticiosas em mostrar crianças de outros países morrendo não prejudicará os nossos índices de audiência, mesmo que sejam crianças de lugares para eles contíguos, como o Piauí e a Eritréia ou a Coréia do Norte? Não sei, são dúvidas que sempre afligem os palestrantes brasileiros em visita ao famoso Primeiro Mundo.
Como já tive ocasião de revelar aqui diversas vezes, nem fotografia ou filme convence a maior parte dos desenvolvidos de que aqui, por exemplo, não vivemos entre índios saltitando lepidamente pelas ruas e flechando uma galinha aqui, outra acolá. Quando morei na Alemanha, fiz vários desafetos ao negar que alguma vez tivesse visto um índio pessoalmente, a não ser Juruna, de paletó e gravata (e comendo frango, embora de supermercado e não flechado, que não tem o mesmo gosto). Acabei cedendo à pressão popular e desenvolvendo uma convivência com os nossos primeiros habitantes de fazer inveja a Caramuru, que, aliás, era meu parente. Segundo me dizem, tive ilustres precedentes, tais como Villa-Lobos, que chegou a contar haver escapado por um triz de ser devorado pelos descendentes dos caetés que comeram o bispo Sardinha.
Não tem jeito. Foi brasileiro, tem que manjar muito de índio e conhecer palmo a palmo a Amazônia, pois, apesar de eles saberem, por leitura ou por TV, que cabem várias Europas ocidentais lá dentro, isso não entra direito na cabeça deles e pensam que a Amazônia é uma espécie de bosque vienense tosco e um pouco maior, cortado por regos que lá eles chamam rios. Sempre que volto de viagem, prometo a mim mesmo que vou estudar índios com afinco, mas, uma coisa ou outra aparece e vou deixando-os de lado, para grande apreensão posterior. Desta vez, para dificultar ainda mais as coisas, a violência urbana já não faz tanto sucesso, as crianças sofrem a concorrência de países em pior situação e continuo sem saber nada sobre índios, a não ser o suficiente para mentir não mais do que uns cinco ou dez minutos. Quanto à Amazônia, dizer que só estive em Belém e Manaus, que são cidades, só faz com que eles concluam que já desmataram tudo e eu, como cúmplice presumido, fico com medo de linchamento.
Meu primeiro impulso, portanto, foi recusar o convite. Já não tenho mais idade para ficar inventando e depois decorando nomes como Txu-Txu-Ma-Hãe-Hãe-Toropó, pitoresca tribo que vive às margens de um certo Rio Paxungololó e cuja principal característica é que seus homens nunca andam e só se locomovem carregados pelas mulheres. E, se contar que aqui metralham hotéis e delegacias, além de tocarem fogo em dezenas de ônibus, e o governo diz que os bandidos estão acuados, vou acabar levado a alguma espécie de tribunal para mentirosos que eles devem ter por lá, ou a um hospício, ou às duas coisas.
Mas a providência tem vindo em meu socorro. Não é que a imprensa vem estampando, todos os dias, fotos de tubarões de dentões à mostra, justiçados por uma população atemorizada? Claro, as platéias vão ficar, com toda a razão, a favor dos tubarões, mas isso não tira a emoção da coisa. Eles sabem, por exemplo, que os tubarões controlam a população de várias espécies de animais que comem os mesmos peixes que gente come e, se essas espécies não forem controladas, o peixe acaba por diminuir a ponto de gente passar fome. Mas nós aqui, como demonstração de nossa singularidade, linchamos tubarões, talvez movidos pela frustração de não podermos praticar outras espécies de linchamento. Bandido aqui se dá bem, mas tubarão se dá pior do que em filme de Spielberg.
E, finalmente, bênção das bênçãos, nosso presidente escapou de ser picado por uma cobra! Então é verdade que, além de capivaras e jacarés grassarem soltos pelo Rio, o presidente da República do Brasil tem que ser protegido pelos seguranças de ser mordido por uma cobra, dessas que se enxameiam loucamente em nossas calçadas. Mal posso esperar ver, em letras garrafais e em alemão, o título de uma palestra minha: “Brasil — o trinômio cobra, tubarão e índio”. Acho que, numa cajadada só, fui levado à fama, à aceitação e à síntese de nossa realidade que eles querem tanto que seja verdade e que talvez seja mesmo.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Globo em 04/05/2003.