É verdade: eu não trabalho

(João Ubaldo Ribeiro)

Tenho relutado muito em aceitar a dura realidade, convicção da própria família. Na opinião de todos os que sequer mal ouviram falar em mim, quanto mais dos que conheço de perto, eu não trabalho. Está aqui, fanada e marronzinha, vítima dos tempos, minha primeira e única carteira do Ministério do Trabalho. A cara de fato não faz inspirar muita fé nem na minha diligência nem na minha inteligência, embora eu não tivesse bigode na época, o que me acrescenta hoje, na foto do passaporte, um pouco a aparência de contrabandista de maconha ou seqüestrador de avião, que podem não ser ofícios lícitos, mas pelo menos são trabalho, imagino eu.

Claro, nem sempre foi assim. Quando eu tinha 17 anos, meu pai, democrata público e autocrata doméstico, me convocou a sair e me botou para trabalhar num jornal, em Salvador, sem, obviamente, fazer nenhuma sondagem de opinião quanto a meu ponto de vista sobre o assunto. Eu vivia tirando umas notinhas boas em redação no colégio e ele achou de testar aquilo. Metido a redigir bem, que fosse ser jornalista, no tempo em que os colegas bem mais antigos ainda usavam caneta para escrever as matérias e era feio não se empregar o plural de modéstia, quando o autor se referia a si mesmo. Meu jornal era moderníssimo e, embora eu nunca tivesse encarado um teclado de máquina na vida, fui obrigado a assumir um, onde minha primeira matéria, de menos de duas laudas, levou umas quatro horas para ser escrita, entre suores frios e a certeza de que meu pai já estava com minha passagem só de ida comprada para a Sibéria, no caso de fracasso na tentativa.

Sim, dessa época em diante trabalhei um pouco, não se pode negar. Fui até professor e, premido por duras exigências financeiras em conseqüência de um namoro acima de minhas posses, cheguei até, de paletó e gravata, a vender livros (melhor vender do que escrever, creiam em mim), no tempo em que as pessoas deixavam alguém entrar em suas casas para vender livros, ou qualquer outra coisa. Ficava meio cabreiro, até porque nunca soube vender nada, mas ia lá e cumpria. O sertanejo era antes de tudo um forte e eu lia sempre, na “Seleções do Reader’s Digest”, que vários livreiros e editores zilionários americanos haviam começado suas carreiras assim.

Mas chegou o dia em que resolvi, de novo meio no estilo “Seleções”, viver do que achava que sabia fazer direitinho, ou seja, escrever. Não viver de escrever livros, coisa para três ou quatro gatos pingados em todo o mundo, mas de escrever o que pintasse. Nas fases mais duras, até receita de espaguete e bula de remédio, não enjeitava nada. Até hoje, tem gente que pensa que, além de não trabalhar, vivo de livros, ao que respondo que, da grana que a distinta amiga ou o simpático cavalheiro pagam ao livreiro, o escritor leva dez por cento, após uma certa espera. Isso mesmo, dez por cento, embora todo mundo ache que leva tudo. Para não falar que escrever livros não dá trabalho nenhum. Eu sou massageado às nove da manhã por uma especialista tailandesa, saboreio um breakfast igualmente exótico, viro um gênio do mercado e dito à Miss Jenkins, minha secretária inglesa, inúmeras páginas magistrais, que logo se publicarão, venderão mais que pão quente e acabarão por me afogar em dinheiro.

O resto do tempo sobra para quê? Para o consumo de quantidades industriais de uísque de cinco milhas a garrafa, charutos de dois mil dólares e altos papos com quem quer que esteja em notoriedade no momento. (Preciso, aliás, responder aos telefonemas da Giselle Bündchen urgentemente, já está ficando chato a moça telefonar e eu não retornar, ela só quer um autógrafo). Sim, e finalmente a parte principal do dia, que é examinar o que, carinhosa e afetuosamente, chamo de “meu expediente”.

É pouca coisa. O carteiro que passa aqui deve me odiar, porque está virando gradualmente o corcunda de Notre Dame. São alguns originais, chegados de todo o Brasil, para minha “leitura e encaminhamento”, como sugerem muitos dos autores. Ou seja, eu largo qualquer coisa que possa estar não fazendo no momento, agarro avidamente aqueles originais, leio-os sem conseguir parar para respirar, saio às janelas para proclamar novo gênio literário, publico o livro em uma das minhas editoras, ele vende aos milhões, o autor passa a ser disputado pelas melhores mulheres do mundo e negocia os direitos para Hollywood por 120 milhões de dólares. Não importa que cheguem cinco ou seis originais num dia só, dá tempo para tudo isso, é minha função mesmo e, além disso, adoro bancar o agente literário, é a profissão mais mole do mundo, depois da de escritor.

Em seguida, vêm as cartas. Antigamente, eu passava o sábado e o domingo respondendo às cartas. Achava chato ignorá-las ou responder com cartas pré-escritas, como faz muito escritor que eu conheço. Mas agora não tem mais jeito, agora o sábado e o domingo não dão — e o resto da semana também não, embora ninguém acredite nisso, porque não faço nada. Fiquei metido a besta de repente e, além disso, como desincumbir-me dos meus compromissos diários em colégios, faculdades e entidades diversas, inclusive (sic) hospitais? E grupos escolares, onde eu faria a felicidade eterna (até a hora do recreio) de uma porção de pequerruchos cujo ideal de vida é apertar minha mão e me beijar como só criança sabe beijar?

Olho para cima aqui neste gabinete, contemplo parte da montanha de coisas que acabo de mencionar, e suspiro. Apareceu um probleminha novo, formigas no computador. É, não vou poder fazer nada disso de que falei, virei um monstro insensível e ocioso e agora vou me dedicar a matar essas formigas. Sofrerei reprimendas do Ibama? Sofrerei mais o quê? Ah, nós, escritores e monstros sagrados, não temos que nos preocupar com essas coisas bobas, Miss Jenkins cuida do resto. Ou será que Miss Jenkins não deveria também cuidar dessas formigas? Na Bienal agora, terei sido informado sobre se secretárias inglesas matam formigas de computador, porque, se matam, nem isso mais eu vou fazer.