O chato da idade é que ela não chega de repente, mas vai se infiltrando aos poucos. Atinge-se até mesmo uma fase, onde eu julgava me localizar atualmente, em que não se sabe direito se se é velho ou apenas um tanto coroa, mas ainda admissível em sociedade. No meu caso, eu era até considerado pessimista, porque já me declarava na terceira idade. Que nada, nem a isso tenho direito ainda, me explicaram. Terceira idade é somente depois dos 65. Mas a miserável vem aparentemente devagar, um dia depois do outro e, de repente, você descobre uma colega de turma dando adeusinho com o braço colado às costelas, que é para não agitar aquela banha despencada que se junta a partir do sovaco. Outro dia, quase aos prantos, um companheiro de boteco encomendou um chope grande e, me olhando lacrimosamente, pediu com um gesto que eu esperasse enquanto ele bebia o copo quase todo numa sorvida só e balançava a cabeça com uma tristeza de partir o coração.
Que tinha havido, que podia ser tão grave? A malha médica o pegara outra vez, com ameaças medonhas? Algum parente ou amigo tinha morrido ou passava mal? O Botafogo, time dele, estava ladeira abaixo, não era? Coisas da vida, eu também tinha problemas semelhantes e sou vascaíno depois de tomar 2 a 1 do Flamengo, ele que se consolasse comigo, não podia ser tão grave assim. Ele então pôs a mão no bolso da camisa, fez menção de que ia tirar alguma coisa, mas parou a meio caminho.
— Você tem nojo de dente? — perguntou.
— Como, nojo de dente? Nojo de dente, assim... Bem, não sou dentista nem vivo espiando dente de ninguém, mas... Como assim, nojo de dente? Dentadura, dessas tipo cleque-cleque?
— Nojo de dente, nojo de dente! Você tem nojo de ver um dente natural?
— Bem, acho que não, a não ser talvez se estiver muito estragado, nojentinho mesmo.
— Não, está inteiraço, só tem uma obturação, do tempo de obturação de amálgama de mercúrio.
— Então, acho que não. Mas continuo sem entender, qual é o problema? Você está com um dente seu aí?
— Estou — respondeu ele, com um ar de morador do corredor da morte de uma penitenciária texana, e tirou do bolso uma dessas embalagens de filmes de 35 milímetros, que abriu e lhe despejou o minúsculo conteúdo meio amarelado na palma de uma mão trêmula.
— Pronto, olha aí.
— Ah, sim, isso aí é um dente, não é?
— Claro que é um dente, um pré-molar inferior, olha aí.
— Estou vendo. Você extrai dentes e guarda para mostrar?
— Extraí nada, cara, esse dente caiu da minha boca ontem à noite.
Trágica e comovente história. Ele estava dormindo ao lado da mulher, como fazia há mais de 30 anos, quando acordou com um negócio rolando na boca. Que seria aquilo? Rolou para cá, rolou para lá, acabou pegando o negócio. Não, não podia ser! Tinha toda a pinta de um dente, um pré-molar de que já vivia suspeitando, mas não levara as suspeitas a sério. Acendeu a luz, acordando a mulher e lhe mostrando, com escândalo e revolta, o dente caído. Ela, que nunca gostou de ser acordada de repente, mal olhou e comentou, com imperdoabilíssima indiferença, que era aquilo mesmo, era a idade, dente caía com a idade, sabia ele? E voltou a dormir, deixando-o num poço de angústia e melancolia. Dente caindo no meio da noite! Daí a algum tempo estaria num restaurante fino e lhe caía outro, dessa vez, é claro, dos da frente.
— É — concordei — é a idade mesmo. A gente tem de procurar um periodontista.
— Periodontista? Outro médico?
— Não é médico, quer dizer, é mais ou menos. É dentista, periodontista. Os dentes vão afrouxando no osso e eles fazem umas transas para segurar. Às vezes sai caro pra burro, mas é o jeito.
— Quer dizer que agora eu tenho de freqüentar outro consultório?
— Regularmente. Eu já freqüento.
— E por que não me avisou?
Respondi que não tinha jeito de saber que ele já não ia por conta própria, simplesmente era uma coisa que nunca tinha me ocorrido, periodontistas não são dos assuntos mais abordados em botecos. É verdade, disse ele, por que não degredavam logo os velhos para reservas na Amazônia? Se os índios podiam, os velhos também podiam. A Campanha da Fraternidade, este ano, é dedicada aos idosos e, no entanto, idoso nunca tomou tanta cacetada quanto agora. Eu não havia lido no jornal que um padre botara para fora da missa um idoso em cadeira de rodas porque ele estava atrapalhando? Se um padre, com campanha da fraternidade e tudo, havia feito isto, o que não deve fazer um motorista de ônibus mal-humorado? Talvez até greve pelo direito de atropelar velho chato. Um cara de uma federação atlética aí não disse que um nadador campeão, de 62 aninhos, como eu, só ia era fazer xixi com câncer de próstata na piscina? E mais isso e mais aquilo?
— É, mas a gente tem de reagir — disse ele com firmeza, botando a caixinha do dente no bolso outra vez.
— Não sei como.
— Eu também não, mas pensando se acha. Todo mundo agora não está querendo quotas? Pelo menos uma quota mensal de Viagra e um vale mensal, vale-garota-de-programa — disse ele, para logo passar a contemplar, com uma expressão evocativa, a derrière de uma jovem que passava em direção à praia.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Globo em 22/06/2003.