Porrada também é cultura

(João Ubaldo Ribeiro)

Arriscando-me a provocar reações gozadoras, conto uma história velha, que provavelmente é piada, mas me foi passada como verdadeira, quando eu ainda era criança e morava em Aracaju. É sobre um coronel do interior, pai zeloso de uma linda filha única. Um belo dia, o coronel, com a cara enfezada, mandou chamar um de seus súditos de confiança e lhe disse:

— Antero, eu estou precisando de um servicinho seu.

— Pode dizer, coronel, o senhor sabe que é Ele lá em cima e o senhor aqui embaixo.

— É o seguinte: eu soube que tem um sujeitinho aí que apareceu na cidade, vindo não sei de onde, que está arrastando a asa para minha filha.

— Mas, mas... Mas é muita ousadia! Um descarado qualquer, que ninguém sabe de que buraco saiu? Com a filha do senhor? Mas é muita ousadia mesmo, um cabra safado desses tem de receber uma lição.

— Pois é, isso mesmo. Então vamos acertar: eu lhe pago quinhentos contos para você dar uma surra nesse bexiguento.

— Pode deixar, coronel, eu vou saber tudo direitinho a respeito dele, vou espiar ele e depois volto aqui, para dizer ao senhor se preciso de mais gente pra ajudar na surra.

Passaram-se dois dias e Antero voltou ao coronel, com ares reticentes.

— Coronel — disse ele —, já fui espiar o homem, já vi o bicho.

— E então? Qual é a dificuldade?

— O senhor desculpe eu lhe dizer coronel. Posso dizer?

— Desembuche logo!

— Coronel, o senhor me desculpe. Se o senhor mandar, eu providencio, mas aquele homem não agüenta uma surra de quinhentos contos, não.

Pois é. Não me contaram o resto da história, mas acredito que o coronel compreendeu e como, bondosamente, não queria mandar matar o infeliz, deve ter acertado uma surra aí de uns cem, duzentos contos. Com isto, pretendo exemplificar como a porrada faz parte da cultura nacional, ao contrário do que gostamos de crer e propalar sobre nossa índole pacífica. (Parêntese técnico: como fui criado com muito rigor e respeito às senhoras, hesitei bastante antes de usar essa palavra, inclusive no título, porque ela consta como chula no Aurélio e este é um jornal de família. Mas me lembrei do que se lê toda hora hoje em dia e resolvi modernizar-me. Está aí mesmo a candente discussão sobre a exibição da bunda do Gerald Thomas, a tal ponto que não duvido que alguma instituição crie o prêmio Bunda do Ano, que, da primeira vez, certamente será conferido ao controvertido traseiro em pauta. Não posso continuar no tempo em que se usava, por exemplo, o extinto verbo “noivar”, em frases como “eles estão noivando na sala”. Hoje ninguém noiva, transa-se em casa mesmo, curvemo-nos perante a realidade.)

Sim, dizia eu, a porrada é um elemento sempre presente em nossa cultura e receio que sempre permanecerá conosco. Tive um avô que foi também coronel do interior e que, segundo testemunhos não sei se verdadeiros, costumava mandar exemplar quem se comportava mal ordenando que dessem uma ou duas dúzias de bolos de palmatória no safado — meu avô era muito benévolo e jamais mandaria dar uma surra de quinhentos contos em ninguém. Até hoje, me garantem que esse tipo de providência é rotineiramente tomado por nosso imenso Brasil afora e o nosso método de investigação policial por excelência continua sendo baixar o sarrafo no suspeito, só não sabe quem não quer.

Deve ser por essa razão que a tradição do romance policial não existe em nossa literatura, a não ser por uma exceção aqui ou ali, o que somente, como se diz, confirma a regra. O nosso romance policial, para ser autêntico, teria como herói um detetive cujos principais dilemas seriam, com variantes conhecidas, valer-se do pau-de-arara ou aplicar uns choquezinhos elétricos nos suspeitos, o que acabaria por tornar os romances um pouco monótonos. Muitos alienados gostam de chamar isso de tortura, mas não tem nada de tortura, tortura é coisa da Inquisição, coisa que a gente vê no cinema, não a ação comum da autoridade policial. Nós não torturamos, nós investigamos de acordo com nossa tradição.

E não estamos sozinhos no emprego desses métodos. Desconfio até que exportamos algum know-how na matéria, pois o que dizem é que os americanos, por exemplo, que, segundo se comenta, já nos deram aulas sobre a matéria, agora resolveram adotar de vez a porrada como meio de obter informações, não só de estrangeiros como de cidadãos americanos mesmo. Dizem que até foram mais longe e, contrariando os princípios de que tanto se orgulham, mantêm gente presa sem culpa formada ou qualquer indício que não simplesmente palpites. E essa gente apanha na cadeia, como sempre se apanhou na cadeia, aqui no Brasil.

Claro que, diante de padrões que chamaríamos civilizados, são de escandalizar fatos como o ocorrido com o chinês, aliás cidadão brasileiro por escolha, detido no Aeroporto do Galeão (não vou meter o nome do Tom nesta história). Mas, diante do que se passa todo dia nas prisões brasileiras e também em estrangeiras, não há nada o que estranhar. Só na ficção um suspeito não toma pelo menos uns tabefes ao ser interrogado, excetuados, é claro, os suspeitos com boa condição social, brancos, ricos e cheirosos. Tanto assim que não é a primeira vez que uma coisa dessas acontece no aeroporto, não será a última e tudo acabará sem que se prove a culpa de ninguém. Aliás, há um culpado, sim. O culpado foi o chinês, que não agüentou uma surrinha de trinta mil dólares.