É interessante como certos assuntos chamam a atenção de todo mundo e ninguém de fato sabe nada sobre eles. No Brasil, há de existir gente que entende de soja transgênica, nos diversos aspectos do problema, desde os que envolvem a criação de seres transgênicos até as conseqüências que seu surgimento e disseminação podem trazer. Mas é um grupo minúsculo e sem uniformidade de convicção, pois, segundo depreendo do que leio por aí, há os que entendem e são a favor e os que também entendem e são contra. E, claro, os militantes de um lado acham que o grupo oposto está errado e vice-versa. Ou seja, de verdade, verdade mesmo, ninguém deve entender muito bem, nem que seja por falta de dados confiáveis, notadamente sobre os efeitos causados no meio ambiente e nos organismos que consomem os transgênicos.
Isso não é ajudado pelos constantes vaivéns da misteriosa comunidade que a mídia aglomera sob o nome de “cientistas”, pois um dia ela diz uma coisa, outro dia diz coisa diferente ou oposta. Em relação à saúde, temas aparentemente pacíficos sofrem contestações inesperadas. Faz uns meses, por exemplo, li o artigo de um médico que se opunha vigorosamente à realização de exercícios físicos, por constituírem séria ameaça à saúde. Tenho testemunhas, não é possível que somente eu leia esse tipo de coisa. E não é preciso ir tão longe, pois creio que todo mundo sabe da recente descriminalização do ovo, embora relativa, e da menos recente criminalização da antes louvada margarina, agora considerada maior vilã do que a ainda condenabilíssima manteiga.
Hoje em dia, um médico diz a seus pacientes (ou fregueses, como talvez seja mais apropriado considerar os antanho chamados pacientes, pois, do jeito que a medicina vai, paciente não tem mais médico, é freguês de um ou vários médicos — não ofendendo a todos, como sempre) que, por exemplo, fazer reposição hormonal é muito bom para preservar a vitalidade, enquanto outro a considera uma porta aberta para tumores da próstata nos homens e das mamas nas mulheres. Acabo de ler no jornal que descobriram que os filtros solares recomendados por dermatologistas não adiantam, ou adiantam muito pouco. Nada de preocupante, pois amanhã, a depender das circunstâncias, os filtros voltarão ao topo dos preventivos, como têm estado ultimamente.
Os “cientistas” não formam uma comunidade à parte do resto da Humanidade, como a mídia — palavrinha que detesto, mas à qual já me rendi — parece pintar. São gente como nós, e a ciência não é um corpo de conhecimento coeso e inequívoco. É, ao contrário, palco de batalhas às vezes furibundas, a respeito de quem tem razão quanto a um número infindável de fenômenos, dos naturais aos sociais. Os cientistas, como qualquer ser humano em todas as áreas, não estão acima de certos interesses, que vão da glória ao dinheiro. Provavelmente — pois, se isso não se desse, eles não seriam humanos — há entre os cientistas um percentual de picaretas e aproveitadores comparável ao de outras categorias. Daí estarem freqüentemente comprometidos com um desses interesses, ou com ambos, a ponto de, em muitos casos documentados, falsificarem ou distorcerem dados, somente para adequar suas hipóteses à realidade ou ao que lhes pagam para comprovar. E há gente empenhada, por todos os tipos de propaganda, no sentido mais lato do termo, em nos provar a pertinência de “estatísticas” equivalentes a “cem por cento das pessoas que têm ou tiveram câncer bebem ou bebiam água todos os dias”, que, em guisas variadas, engolimos todos os dias.
Para mim, que, como a maior parte de vocês, não sou cientista (já passei por cientista político, mas me safei a tempo), o debate sobre a soja transgênica que temos presenciado não me ensinou absolutamente nada. Sua contribuição, a meu ver, foi mostrar de novo o curioso fato de que, no Brasil, experimentamos a situação esquisita de às vezes termos dois presidentes da República, um viajando ou doente, outro exercendo o cargo. Fica montada uma farsa que tem lá sua piada, em que o presidente em exercício é uma espécie de mentirinha, entre viagens a Mombaça e episódios como o da assinatura da medida provisória sobre a soja. O presidente em exercício não queria assinar a medida, mas devia, porque encarnava somente uma brincadeirinha. Como não era nem é presidente, acabou aprovando um ato que desaprovava.
De resto, como já se disse algumas vezes, o debate sobre a soja transgênica virou ideológico. Salvo melhor juízo, a soja transgênica é de direita, a natural é de esquerda. Ninguém faz idéia do que realmente se trata, mas vai na trilha dos políticos com quem costuma concordar. E, por aí marchamos, assistindo bestamente a decisões que podem afetar de maneira radical nosso futuro, sem saber nada sobre elas, a não ser que Fulano é contra e Beltrano a favor. Poucos se preocupam com nossa futura dependência das empresas produtoras de sementes, no que, aliás, há até certa razão, porque todo dia ficamos mais nas mãos da Microsoft e ninguém dá bola. E como as plantas transgênicas são imunes a muitas pragas, também não se sabe se sua introdução acarretará distúrbios ecológicos graves, pois o inseto que come a planta é também comido por certos pássaros, que são comidos por outros predadores e por aí vai, nas conhecidas cadeias da natureza.
Mas não faz diferença apoiarmos os transgênicos ou não. Cada vez faz menos diferença o que pensamos, até porque o que pensamos é por seu turno cada vez mais dirigido. Estão chegando os chips que serão implantados em gente. No começo, para rastrear os seqüestráveis e também presos em liberdade condicional (interessante, essa semelhança), além de vários outros usos, inclusive médicos. Aí, mais dia menos dia, surge o Programa Nacional de Identificação Eletrônica, que botará um chip em cada um e controlará a vida de todo mundo. Para que, então, nos preocuparmos? Seremos o que “eles” quiserem. Política e ciência só interessam a políticos e cientistas, não é verdade?
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Globo em 05/10/2003.