Não faz muitos anos, falava-se muito na atual conjuntura. Saiu de moda. Hoje tudo sai de moda às vezes em questão de horas, tanto assim que os 15 minutos de fama previstos para todos por Andy Warhol com certeza mudarão em breve para alguns segundos, vamos dizer uns 45. Ninguém se refere mais à atual conjuntura, que, no momento em que a rotulamos de atual, já está superada. Por exemplo, a maior parte de nós tem, se tanto, apenas uma vaga lembrança das principais notícias dos jornais da última semana. Ficar explorando o mesmo fato, por mais importância que tenha, não combina com os nossos dias. Há corrupção, que deve ser denunciada e punida? Sim, há, mas brotam tantas ocorrências a cada instante que é impossível arquivá-las na memória e, assim, consome-se a corrupção de ontem e passa-se à de agora, que durará até a de amanhã. E obviamente ninguém é punido, não dá tempo.
Até os ídolos da televisão agora são produzidos em massa e programados, creio eu, para se autodestruírem assim que seu uso encerrar-se, como na velha série "Missão impossível". Eu mesmo que, não por aversão, mas por outras razões, assisto a muito pouca tevê, tenho enfrentado problemas embaraçosos, nos raros eventos sociais a que compareço, porque mal acabo de decorar, com grande empenho, quem são os mais gostosos e talentosos do dia, irrompem novos, que se ofendem ao patentear-se que nunca ouvi falar neles. Mas não é esnobismo, é falta de capacidade de armazenamento na memória. Peço perdão a todas, mas, na minha já avançante idade, fica difícil registrar a moça cujo traseiro ou cujos pêlos pubianos são os do momento. É meio atordoante, pois a cada hora novas ocupantes dos postos são, para usar uma palavra bem em voga, disponibilizadas nas revistas do ramo.
Mas, pensando melhor, continuamos a dispor de uma atual conjuntura, com características próprias e previsíveis. A primeira delas é a iminência do verão, que ainda não chegou e tem parecido pouco disposto a isso. Já entramos no famoso horário de verão e já lemos as primeiras manifestações a favor e contra ele, como lemos todos os anos. E vêm aí as mesmas reportagens sobre a musa deste ano e as comidinhas saudáveis (tudo capim, no ver de minha geração) com que devemos nos alimentar na estação quente, isto enquanto ainda é admissível comer alguma coisa, eis que os capins têm agrotóxicos e, segundo li outro dia, comer muito de alguns deles equivale a comer as substâncias agressivas ingeridas numa quimioterapia. Os avisos de que a dengue talvez volte com força total começam a aparecer e desta feita o combate será muito mais eficiente. Não será, mas dizer que será faz parte da conjuntura.
E diversos outros aspectos da realidade contribuem para dissipar a sensação desconfortável de que tudo vem mudando depressa demais. Na segunda-feira passada, o Rio de Janeiro viveu talvez a sua mais acirrada batalha campal — a ser conhecida nos futuros livros de História como a Batalha do Acari, evento que marcou a evolução da nossa adiantadíssima violência urbana, ainda sem morteiros e canhões, mas com direito a granadas, utensílio doméstico de uso crescente, e saraivadas de balas em 12 ou 13 carros da polícia. Novidade? Não muito, porque já temos experiência para saber que se trata somente de um episódio da evolução da atual conjuntura, que atual permanecerá, com as subseqüentes declarações das autoridades sobre como isso não pode prosseguir e medidas enérgicas serão prontamente adotadas.
Na área econômica, também permanecemos imersos na conjuntura. O desemprego, dizem aqui as folhas, nunca foi tão alto na América Latina e o Brasil não deve estar mal no ranking. Além disso, com uma legislação "social" que obriga o dono do boteco da esquina aos mesmos ônus que as multinacionais e bancos (ou mais, porque há bancos que não pagam imposto de renda), os trabalhadores não-registrados são talvez a maioria e continuarão a ser. Até porque a instituição de um imposto único, não-declaratório, tida por vários especialistas como ideal, jamais será implantada, pois que fim se daria à vasta estrutura vigente, da oficial à dos despachantes? Quem quer reduzir drasticamente a sonegação e seu séquito de aberrações almeja criar, isso sim, novo e gravíssimo problema social. Irresponsabilidade, portanto, de quem sugere consertar o que parece errado, pois isso acarretaria prejuízos irreparáveis a vastos setores da coletividade.
No dia-a-dia, também há novidades apenas aparentes. Nós brasileiros, por exemplo, estamos nos tornando cidadãos conscientes, já não partimos sempre para o desforço físico, a fim de resolver situações conflituosas. Recorremos aos juizados de pequenas causas, que aceleram a Justiça e representam grande progresso. Há, porém, o pormenor de que esses juizados estão congestionados e processos levam mais de três anos para serem examinados, ou seja, a conjuntura não mudou. E, se não tem havido mais assassinatos dolosos em hospitais públicos, botaram veneno de rato no cafezinho de um colégio público carioca, coisa corriqueira, natural expressão da revolta de algum funcionário ou aluno injustiçado, que jamais será descoberto e muito menos punido, da mesma forma que os passantes continuam podendo ser comidos por um pitbull a qualquer oportunidade. A atual conjuntura, mais uma vez, se mostra intacta.
A não ser, é claro, pelas boas novidades, que os derrotistas não reconhecem. Como as reportagens internacionais sobre a mais recente estrela de nossa pauta de exportações: mulheres decididas a mostrar lá fora, mediante o ingresso de algumas divisas, o que é que a brasileira tem. E o mercado para cursos de sobrevivência na selva, potencial riquíssimo? E a praia de nudismo do Rio, coisa de Primeiro Mundo? A conjuntura permanece e se aperfeiçoa. Virá o dia em que a profissão de catador de lixo será regulamentada (e submetida a taxação, é claro) e se fundarão os primeiros cursos universitários de catador de lixo. Com má vontade é que não se vai para a frente, é o que sempre repito.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Globo em 26/10/2003.