Não sei se esta observação ainda é feita de vez em quando, mas, no meu tempo de criança, os mais antigos diziam muito que o dia é que passa devagar, pois o ano passa depressa. Na época eu não compreendia isso direito e ficava com vergonha de perguntar o que significava. Hoje, ai de mim, entendo perfeitamente e agora me posto diante deste 2003 já quase finado, com apenas 24 dias remanescentes. A gente se distrai e, quando dá por si, lá se foi mais um ano. Ontem mesmo, nós, atuais coroas, estávamos aí pelos 20 anos e acreditávamos em tantas coisas que nem sei mais enumerá-las. Entre essas coisas, estava a fé no grande futuro do Brasil e no da Humanidade, aquele róseo e inevitavelmente glorioso, este embalado pelas conquistas ilimitadas da tecnologia e do progresso, trazendo vida melhor para todo o planeta. E continuamos assim mesmo depois dos 20 anos, pois quem não se lembra da Era de Aquário, que teria entrado em vigência ainda no século passado, com toda a sua carga de fraternidade, paz e amor?
Por mais que isso seja desconfortável, a verdade é que a Era de Aquário até agora não parece ter dado o ar de sua graça. Basta ler um jornal ou ligar a televisão, para ser lembrado de que a espécie humana continua atrasada, rude e primitiva, uma espécie de câncer da Terra, que pode vir a destruí-la e, segundo muita gente, já está destruindo irremediavelmente. Até a neve, diz aqui uma notícia, está sumindo da Europa com o aquecimento global e talvez em breve seja visão somente para alpinistas e esquimós, isto enquanto a temperatura não sobe ainda uns cinco ou seis graus, as geleiras não se derretem muito mais do que já se derreteram e nossa raça, ou grande parte dela, não se afoga sob o mar todo-poderoso que invadirá os continentes. E a paz, situação em que o mundo realmente nunca viveu, permanece uma fantasia distante, entre muros tentando separar ódios, matanças cotidianas e todo os tipos de atrocidades imagináveis.
Quanto ao Brasil, que é feito da grande potência? Que aconteceu com os nossos ideais e ilusões? Lembro uma das últimas conversas que tive com um homem sob todos os títulos admirável, de cuja convivência e amizade sentirei sempre falta, o escritor Antônio Callado. Não faz tanto tempo assim, ele, já seriamente doente mas incapaz de lamentar-se ou praguejar contra a enfermidade que o mataria, falou sobre o futuro, com um travo amargo só perceptível para quem o conhecia um pouquinho mais de perto, como eu. Pessoalmente, achava que já tinha vivido o bastante e relativamente bem, muito bem até, se comparado com a maioria de nossos compatriotas. Lamentava apenas, mas sem revolta, que os remédios que agora o obrigavam a tomar impedissem que desfrutasse de um uisquezinho de vez em quando, ou mesmo um copo de vinho. De resto, não tinha queixas.
Mas o Brasil lhe trazia queixas muito fundas. Era mais velho do que eu, mas tínhamos passado por experiências semelhantes, guardadas as proporções. Ambos éramos escritores, ambos havíamos, cada um de seu jeito e dentro de suas possibilidades, militado por aquilo em que acreditávamos. E, apesar de todas as decepções, nunca perdêramos a esperança. Sem alguma esperança não se podia viver e a tínhamos conseguido preservar ao longo de todos esses anos.
— Não mais — disse ele, depois de um silêncio breve, enquanto o carro em que estávamos deslizava ao longo da orla tão bela da Baía da Guanabara, cujo esplendor ele tirara um minutinho para louvar, como constantemente louvava seu amado Rio de Janeiro. — Não mais.
— Não mais esperança?
— Sim, não vejo mais esperança. Foi difícil chegar a este ponto, mas nos últimos tempos me veio certeza. Não tenho mais esperança. No começo, transferi essa esperança para o Brasil de meus filhos, depois para o de meus netos, depois para as gerações que virão em seguida. Mas agora nem mais isso. Nem esperança para o tempo deles, nem para tempo nenhum. Nós não temos jeito mesmo. E, pensando bem, por que haveríamos de ter? Metemos na cabeça a fé no futuro de maneira voluntarista e cega às evidências, não existe bom futuro nenhum para o Brasil, perdi mesmo a esperança.
Fizemos o resto do percurso sem falar mais nada. Olhei para o semblante dele, tão sereno como sempre, sem mostrar a desilusão que o queimava por dentro. Não era um catastrofista se manifestando, não era um cético ou cínico, era um artista e intelectual superior, falando apenas o que a realidade terminara por impor-lhe. Não queria contaminar-me com sua falta de esperança, disse-me ao despedir-se, esquecesse suas palavras calejadas, continuasse a acreditar — quem sabe os dias vindouros não o desmentiriam?
Não desmentiram, não vêm desmentindo. Não esqueço minha alegada condição de “oásis da imprensa”, que meus bravos leitores já viram mencionada aqui. Mas, como tantas outras vezes, hoje traio de novo essa condição. É difícil mesmo manter a esperança. Acho que consigo, em certa medida, mas de forma bem modesta, como muitos de vocês, talvez a maioria. Agora temos pequenas esperanças, pelas quais nos devemos dar por muito satisfeitos. Um fim de ano tranqüilo para nós e a família, a saúde certinha, a alegria das amizades, o dom do amor e do afeto de que ainda desfrutamos, continuarmos vi-vos e inteiros. Pequenas, despretensiosas esperanças, não extintas no ano que termina e a serem laboriosamente atiçadas no ano que chega. Lembro a história, não sei se verdadeira, do diálogo havido entre Frank Sinatra e sua filha, no que viria a ser o último ano de vida dele. Ela perguntou ao pai o que ele queria de presente de Natal.
— Um outro Natal — responde.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Globo em 07/12/2003.