Saddam Hussein num boteco do Leblon

(João Ubaldo Ribeiro)

— Tu viu, cara? É por isso que meu ditado favorito é “nada como um dia depois do outro”. Ou então “o mundo dá muitas voltas”. Tu viu?

— Tu viu o quê? Não vem com essa conversa do Fluminense, porque não tem mais rebaixamento. Tu vai ver o Fluminense. É isso mesmo que tu falou, nada como um dia depois do outro, o Fluminense vai chegar com tudo.

— Qual é Fluminense, cara, deixa de ser alienado, tu só pensa em futebol? Eu tou falando no Fluminense? Não tem nada de Fluminense na televisão. Tu liga a televisão e só pega as notícias do Saddam Hussein. É isso que eu digo, quem te viu quem te vê. O cara era dono de tudo, mandava e desmandava, só morava em grandes palácios, com tudo do bom e do melhor, era o rei, o rei! E agora acharam ele socado num buraco fedido, que nem um tatu. É por essas e outras que eu nunca boto banca, o mundo dá muitas voltas.

— Ah, quer dizer que tu tá acreditando que pegaram ele mesmo.

— Claro que eu tou, tu tá doido? Tu não viu o bicho lá, preso pelos americanos, os americanos fazendo barba, cabelo e bigode nele?

— Vamos colocar as coisas direito. Eu vi um sujeito lá que é a cara do Saddam Hussein, mas não tenho certeza de que é ele.

— Não, não, essa agora foi demais. Tu sempre foi meio lelé, mas agora tem de estar de porre, só pode. Quer dizer que o cara não é o Saddam.

— Eu não disse isso, preste atenção. Eu disse que não posso ter certeza de que vi ele, vi um cara que tanto pode ser ele como pode não ser. Pra começar, ele tinha um zorrilhão de sósias, tu não lembra?

— Maluco, maluco, maluco, tu tá fora de órbita. Não tá vendo que o governo americano não ia fazer uma coisa dessas, tu acha que eles são a diretoria da CBF? Aquilo é uma máquina, eles pegaram o cara, tá dominado.

— Ah, o governo americano não ia fazer isso, não é? Tudo bem, cadê as armas que Bush disse que tinha lá no Iraque?

— Bem, não acharam, mas isso não tem a ver com a prisão do homem.

— Pode não ter diretamente, mas agora tudo indica que era mentira do governo americano.

— Mentira, não, engano. O governo americano não mente assim dessa forma, não pode, aquilo ali é uma sociedade aberta.

— Ah, não mente? E que foi aquela cena do salvamento de uma soldada, com cena de Rambo e tudo? Depois não se viu que era armação?

— Sim, mas esse foi um episódio de propaganda, um episódio isolado. Tanto assim que desmentiram logo depois.

— Desmentiram porque a soldada ficou com vergonha e contou a verdade, senão todo mundo ia continuar acreditando.

— Episódio isolado, não tem nada a ver o trololó com as calças. Tu tá querendo confundir as coisas, tu sempre foi antiamericano, tu é comunista.

— Não sou nada disso, eu sempre fui pelo socialismo sueco, tu tá cansado de saber. Mas também não sou besta.

— Eles fizeram até exame de DNA, verificaram tudo!

— E quem verificou a verificação? Ninguém verificou, nem vai verificar. Eles dizem que pegaram Saddam e pronto, é só o que a gente tem certeza.

— Besteira, cara, deixa de delírio.

— Me diz aqui, o presidente americano chega para o povo dele e mostra como verdadeira uma coisa falsificada?

— Não, não mostra, lá a imprensa é livre, isso você não pode negar. Só se ele for enganado.

— E o peru? E, naquela visita aos soldados, tu não viu o Bush todo sorridente, oferecendo peru assado? Quem fosse comer um pedaço daquele peru ou quebrava os dentes ou no dia seguinte ia entupir o vaso com pelo menos uma pranchinha de surfe. O peru não era de plástico? E ele não sabia?

— Bem, era, era. Mas eu acho normal, é uma questão de propaganda. Na guerra, essas coisas valem, são importantes.

— Pois é, e eleição também é guerra. Eleição, cara! O Bush botou o déficit americano no maior buraco da história, os americanos continuam morrendo e se aleijando no Iraque, como é que ele ia ganhar a eleição, que é daqui a menos de um ano? Pode deixar, que eu mesmo respondo. Prender Saddam deve garantir a eleição, o Bush agora é herói, cara, grande líder da democracia. Eu, por mim, acho essa prisão muito certinha demais, muito no tempinho certo. Tudo bem, pode ser Saddam, mas certeza mesmo nós nunca vamos ter.

— Mas tu acha que um cara ia topar a pena de morte no lugar dele?

— Ô, não tem gente que amarra uma bomba na cintura e explode? Não tem gente que se apresenta para ser comida por um canibal? Tem gente pra tudo, não tem nada que dólar não resolva, tem esquema pra tudo.

— Tu tá doido, cara, tu tá fora da realidade.

— É, pode até ser. E, de qualquer forma, dá no mesmo ser o Saddam verdadeiro ou não, agora é oficial, essas coisas não importam. O que importa é o que as firmas americanas vão papar e o que Bush vai ganhar de votos. E eu não sou antiamericano, como você diz, eu até admiro eles por essas coisas. A realidade está atrapalhando? Então inventa outra, pronto. A coisa mais fácil é providenciar um Saddam preso, na hora da necessidade. Me diz outra coisa: até hoje alguém tem certeza mesmo de como foi a morte do Kennedy?

— É, há dúvidas, mas...

— Pois é, certeza mesmo, e olhe lá, é que o Kennedy morreu. Tudo bem, é o Saddam, fica combinado assim, vamos mudar de assunto, que não adianta nada, nada que a gente fale ou pense adianta. A gente não tem controle nem sobre bolinho de bacalhau. Ô Volta Seca, suspende esse bagulho, isso é bolinho de batatau! Me conta, quem fornece esse bolinho é o pessoal do peru do Bush? Volta Seca, tu sabia que tu é a cara do Saddam, cuidado aí, hem?