O desajustado do Leblon

(João Ubaldo Ribeiro)

Devo ser um prato feito para psicanalistas. Aliás, manda a honestidade confessar que isto não é só suspeita minha, mas dos que convivem comigo. Por exemplo, algum trauma de infância (tudo é trauma de infância, diz sempre uma amiga) faz com que eu me sinta sempre culpado. De quê? — perguntará meu eventual interlocutor. De tudo — responderei com conhecimento de causa. Se o distinto amigo estiver, vamos dizer, com unha encravada e me telefonar para alegar que o culpado sou eu, não precisará falar muito. Qualquer argumento me convencerá de minha responsabilidade sobre a infausta condição e acrescentará nova culpa a meu acervo.

E, ai de mim, não é só por unhas encravadas alheias que padeço, é por muito mais. Agora mesmo chegou de novo a época de me sentir culpado por não ir à praia. Desde eu pequeno que é assim, porque nasci numa ilha, sou baiano e moro no Rio. Como não ir à praia, se é o que todo mundo faz, que tipo de degenerado sou, que aberrações assolam minha alma marginal, que foi que aprontei, para a existência me ser tão madrasta? Não sei, só sei que minha tradição pessoal aponta para alguma coisa errada que devo ter cometido, minhas malfeitorias acabaram por render-me a triste sina de excluído, em tantas áreas que sua enumeração, em letra miúda, talvez tomasse toda esta página.

Venho tentando, ao longo de já tão numerosas décadas de vida, empregar tratamento sintomático contra algumas dessas exclusões. Fui derrotado em todos os casos, mas consegui soterrá-los por meio de pequenos truques e por fingir ignorar o que se passa em volta. Há, todavia, problemas que não podem ser tratados assim e o da praia é um deles. Talvez eu devesse ter me mudado para Belo Horizonte ou mesmo para São Paulo, cujas praias ficam longe da capital, mas a esta altura é muito tarde, além do que, tenho certeza, somente trocaria de culpas, pois a primeira coisa que automaticamente faço é arranjar um monte delas, em toda situação nova em que me ache.

Não, não, o nordestino é treinado para enfrentar a adversidade. E, assim, pela primeira vez trago a público fatos dantes nunca revelados e de cujo dramático desenrolar traço aqui um brevíssimo resumo. Sem testemunhas, na obscuridade dos que lutam solitariamente contra um destino imisericordioso, este que lhes fala não é um desajustado por querer, mas por haver lamentavelmente falhado em seus esforços de integração sociocultural. Sim, neste Rio de Janeiro orlado de praias e mais praias, onde no verão não se pode abrir o jornal sem ver todo mundo junto ao mar, ninguém deve recordar-se de me ter flagrado mais perto dele do que em minhas controvertidas caminhadas pelo calçadão. “É um anormal”, certamente comentarão, “no mínimo tem inveja e rancor contra todos os que se divertem, enquanto rumina seus recalques.”

Grave injustiça. Anormal serei e inveja tenho, mas não rancor, pelo contrário. Pois, durante anos, em segredo e implorando amparo da Providência, tentei freqüentar a praia. Fui à praia várias vezes, aliás, mas jamais consegui intimidade, sempre me senti rejeitado e infeliz. Não, não é a barriga. Antes fosse, pois há muito me despedi de certas vaidades inglórias e porto a barriga com o decoro que consigo arregimentar. Não compreendo a praia e ela não me compreende, há uma incompatibilidade constitucional entre nós, a começar pela areia e pela água.

Tento minha defesa, embora inútil. Por alguma razão, as propriedades físicas da areia se mostram pessoalmente hostis a mim, que fico agoniado só de ver todos em volta à milanesa. Mal ponho os pés na areia, ela se insinua pelo resto de meu corpo como uma serpente granulada, a ponto de me chamar a atenção para partes dele que eu antes nunca havia notado. Todo mundo chega em casa da praia, toma banho e se livra da areia. Eu não. Passo pelo menos uma semana sentindo areia aqui, ali e, principalmente, acolá, o que produz resultados não só incômodos como desgraciosos. Talvez alguém tenha a lembrança vaga de ter visto um sujeito andando aqui pelo Leblon como se estivesse tentando apear de um cavalo invisível, as pernas espalhadas para os lados e a expressão de quem anseia uma boa morte. Era eu, meus caros amigos, depois de uma incursão pela praia, pensando em se não haveria alguma clínica especializada em remoção de areia.

A água também é uma dificuldade. Venho de latitudes morninhas e, quando o mar aqui do Rio me toca os tornozelos, mesmo se meus concidadãos comentam entusiasmados sua bela temperatura, sofro um choque térmico quase letal e, em verdade lhes digo, já cheguei a concentrar-me prolongadamente para dar um mergulhinho e nunca tive coragem. Para mim, é a mesma coisa que sair de cueca para um passeio entre os pingüins da Antártida, sei que não sairia vivo da empreitada.

Resta o que com toda a certeza deve ser grandemente enriquecedor, mas me falta sensibilidade para desfrutar. Ou seja, me besuntar de protetor solar (que também, mesmo os altamente aperfeiçoados e quiçá usados pela Gisele Bündchen, nunca desgrudam de minha pele até uns dez dias após a aplicação) e deitar-me ao sol durante horas. Dizem-me cá que se trata de uma poderosa carga de energia positiva e de harmonização entre a Natureza e o eu interior. Mas minha rudeza primitiva impede que eu perceba tais encantos e, em alguns minutos, aceito qualquer outra proposta, inclusive emigrar para o Sudão.

Não, não há defesa, há somente um apelo à caridade e à compreensão de alguma alma caridosa. Até porque, mesmo depois desses duríssimos embates, voltarei à carga. Este ano tento novamente a praia, quem quiser verá. Espero um tapinha de encorajamento nas costas. Vai ser fácil me reconhecer. Serei aquele de escafandro azul, ali perto do salva-vidas.