— Eu não esperava te encontrar aqui. Tu não sai da cidade no carnaval?
— Saía, saía, tu tá ficando desmemoriado. Já tem três anos que eu não saio, não dá mais. Aqui é tranqüilo, é quase a mesma coisa que o interior. Aliás, é a mesma coisa, besteira sair, muita produção. Não, não, eu tou feliz aqui, tou muito bem.
— Tu não me engana, cara, tu diz que está satisfeito, mas não está, tu bem que queria estar na tua casa lá da praia, fazendo churrasco e encharcando a idéia com os outros viagreiros da tua turma. Que foi que houve, morreu gente? Quando se chega nesta idade, todo dia morre um, eu sei como é que é.
— Não, não morreu ninguém, não é isso.
— Ah, então é alguma coisa mesmo, tu falou que não é isso. Se não é isso, é aquilo; confessa, cara, tu não tá no teu normal.
— Tou, sim, pode crer. Quer dizer, tu não deixa de ter um pouco de razão, eu sinto uma certa falta lá da minha churrasqueira, mas chega uma hora que a gente tem de definir umas prioridades. E minha prioridade agora é ficar aqui, tem coisas mais importantes. É preocupação com a família, cara.
— Mas tua família não ia com você? Eu me lembro tu falando que a Helô adora aquilo lá, era uma festa todo dia.
— E continua adorando e continua festeira. Mas ela também concorda que não dá mais.
— Não tou sacando nada, por que é que não dá mais? Tu não disse que é uma questão da família? E a Helô não é a base da tua família?
— É a base, mas não é a família toda. Tu te esquece que eu tenho quatro filhos, tu não sabe?
— Pois é, e as crianças também não gostam de lá?
— Que crianças? A gente é que chama de crianças, mas a Carla, que é a mais nova, já está com quase dezoito. É, ela diz que gosta de lá, todo mundo diz que gosta de lá, mas ninguém quer mais ir. E aí a gente também não vai.
— Mesmo assim eu não entendo. Com o pessoal já grande, já sabendo se virar sozinho, por que tu e a Helô não podem ir sozinhos?
— Bom, vamos dizer que é uma questão de segurança.
— Não saquei, tu tem medo de que aconteça alguma coisa com eles? Mas com vocês aqui, se tivesse de acontecer, ia acontecer do mesmo jeito.
— Não é isso, é uma questão mais delicada.
— Não pode ser o que eu estou pensando, não vem me dizer que teus meninos... Não, teus meninos são um exemplo, sempre foram, nunca ouvi dizer nada de nenhum deles. Nem mesmo o Serginho, que é assim mais atirado, mas é um rapaz respeitador, muito educado, todo mundo gosta dele. Tu deve estar julgando eles pela tua moral antiquada.
— Não é isso, não é a moral deles. Na moral deles, eles não fazem nada de errado, pelo contrário. Mas tu não sabe o que a gente tem de se adaptar hoje em dia. Se, com a gente em casa, o negócio já fica difícil, imagine com a gente fora. Não é nenhuma novidade, acontece com todos. Tu sabe que os namorados e namoradas hoje dormem na casa da gente, não sabe?
— Bem, é, eu sei, são os novos tempos. Mas não é nada demais, deve dar para administrar numa boa.
— Taí, você usou a palavra certa. Administrar. É isso mesmo, administrar. A gente tem de administrar, tem de prestar atenção. Com a gente em casa, já fica difícil, imagine com a gente fora. Por exemplo, eu não vou viajar com a Helô pra deixar o Tavinho lá em casa. Não tem condição. O Tavinho é o namorado da Sofia, tu sabe, a Sofia, a que vem logo antes da Carla.
— O bicho é folgado?
— Não, é até bom rapaz. Mas não se pode facilitar. Ele parece que já é casado com a Sofia há não sei quantos anos e entorna meu uísque como se fosse doado pelo programa Sede Zero, mas eu não posso falar nada, que as mulheres da casa se revoltam, ele é cheio de chinfras com as mulheres, elas adoram ele. Foi ele que fez a gente se tocar e deixar de ir para a praia no carnaval, foi uma coisinha que ele fez e aí caiu a ficha. A Helô não passou bem da coluna e então, em vez de voltar na segunda depois do carnaval, a gente voltou na quinta. Nós chegamos em casa e sabe o que foi que que a gente viu?
— Alguma esculhambação?
— Nós chegamos aí pelas onze da manhã e, na hora em que entramos no quarto, quem estava lá, deitadão na nossa cama, com a Carla?
— Não!
— Pois é, cara, o Tavinho.
— Pô, eles devem ter ficado numa saia justa legal.
— Ficaram nada, quem ficou fomos nós. Eles até reclamaram, falaram que a gente devia ter avisado.
— Bem, eu reconheço que, do ponto de vista moral de nossa geração, é meio chato. Mas do ponto de vista deles, eles não estão ferindo a moral, tu tem de entender os novos tempos.
— Mas eu entendo, não tem nada de problema moral nisso, tira isso da tua cabeça. Se eu fosse ficar ligado nessa de moral, já tinha pirado há muito tempo. O problema é outro, é defender o meu. Se der mole, daqui a pouco o Tavinho vai requerer usucapião da nossa cama. A moral é nova, mas a esperteza é velha. A filha ele pega, mesmo porque não tem jeito, mas a cama é nossa, aqui pra ele! Não, não, carnaval fora nunca mais, não pode marcar bobeira.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Globo em 22/02/2004.