Grandeza e decadência da imortalidade

(João Ubaldo Ribeiro)

O sujeito fica um pouco mais velho, pensa que sabe das coisas e descobre, cada vez mais estonteantemente, que não sabe nada. Escrevo isto porque li no jornal que violaram o mausoléu dos imortais da Academia Brasileira de Letras. Como não desconheciam os imortais mortos e não desconhecem os imortais ainda vivos, uma das mais importantes vantagens materiais com que conta o imortal é justamente o mausoléu dos imortais (que não é pago pelo Governo, apresso-me a elucidar). Isto porque o imortal típico, havendo dedicado a vida às letras não de câmbio, costuma morrer sem ter onde cair morto e muito mais sem ter o cum quibus necessário para pagar o alto custo do centímetro quadrado do São João Batista, talvez só um ou dois ienes mais barato do que o kotishibum fiofótico no centro de Tóquio (ou que outro nome tenha a unidade de medida de área japonesa, como sempre fruto da Misteriosa Sabedoria Oriental e melhor do que qualquer coisa nossa).

Devia pasmar-me, mas não me pasmei. Os arrombadores certamente achavam que iam encontrar jóias e pedrarias, esqueletos d'oiro e condecorações cravejadas de rubis. Aqui em casa, eles também pensam que encontram. Não arrombadores, graças a Deus, mas, não graças a Deus, consertadores e prestadores de serviços. Um deles, velho amigo nosso e sempre barateiro, mudou de política, depois de meu ingresso na Academia.

— Agora que o homem foi eleito imortal, não dá mais para cobrar baratinho — disse ele à empregada.

Tenho certeza de que muitos de vocês ficarão surpreendidos e acharão que estou exagerando, para fazer brincadeira. Não estou exagerando. O que lhes conto é a pura verdade, talvez enfeitada por uma hiperbolezinha ali ou acolá, mas a puríssima verdade. E, assim, passo a narrar-lhes algumas das realidades da vida do imortal.

A primeira é que escolares, jornalistas, passantes, garis e, suspeito, até ministros, desembargadores (boa palavra essa, hem? pensem nela de vez em quando) e altos homens da República acreditam que o sujeito realmente não morre, depois que entra para a Academia. Eu, que fui bater numa UTI pouco depois de eleito e sobrevivi (não tanto à condição cardíaca que lá me levou, mas à própria UTI — e já sei que vêm cartas corporativistas por aí, querendo que a gente diga que a UTI é uma beleza e nos transformando em inimigos da pátria porque não concordamos)*, devo ser prova disso. Geralmente é um fã (as fãzas são mais especializadas, limitam-se a discordar ou concordar com nossa aparência em pessoa, geralmente de forma veemente), que nos apresenta ao filho.

— Dá licença, eu sei que o senhor não gosta de ser incomodado e eu não vou incomodar. Mas é que eu estou com meu filho aqui e vi o senhor e não queria deixar passar a oportunidade de apresentar a ele um imortal. Jairinho, meu filho, olhe bem este homem: é um imortal!

— Ali, há-ha, muito prazer, imortal nada, sou um mortal como qualquer um.

— Não, senhor! É um imortal! Olha bem aí, Jairinho, é um imortal! Bebel! Bebel é minha senhora, ela também nunca viu um imortal, só na tevê. Vem cá, Bebel, perde o medo, ele não morde, ele é só imortal!

Depois de Jairinho e Bebel, vêm os dois menorezinhos e Alfredo, o cunhado pernambucano que acha que todo baiano é fresco e só sorri, muito levemente, quando digo que gosto de Ariano Suassuna e meu pai era tiete de Capiba. Ninguém, com exceção de Alfredo, tira os olhos de mim, principalmente Jairinho, assustadíssimo com a minha imortalidade e certamente preferindo a companhia de Freddy Kruger. Asseguro a todos que a imortalidade é uma força de expressão e que cumprirei minha obrigação de morrer vitaliciamente quando a hora chegar, mas não adianta nada, Jairinho e Bebel devem ter pesadelos comigo até hoje. E certamente esperam o filme À meia-noite o imortal virá buscar tua mesóclise, com que delirarão de medo e recearão a igual perda de suas síncopes, aféreses e apócopes.

Finalmente, imortal não usa sandália de dedo e sabe o Aurélio de cor. Como sempre, aprendo isto dolorosamente nos botecos do Leblon que insisto em freqüentar. Desde que cheguei por aqui, noto que olham muito para meus pés. Achei uma tara normal. Lá em Itaparica, por exemplo, o pessoal é muito ligado em olhar para uma área das moças que o horário não permite mencionar — por que não pés de escritores no Rio? Cultura é cultura. Mas, não, são minhas sandálias de dedo. Descobri depois (juro a vocês que isto é verdade, não tem nem a hiperbolezinha) que recebi cartas me censurando, tanto de mulheres quanto de homens. E depois que uma senhora, numa esquina da Aristides Spínola, me puxou imperiosamente pelo braço, me fez diversos elogios ríspidos e disse que não se admitia um homem de meu quilate — um imortal! — de sandália de dedo fora do ambiente — e olhe lá! — de meu quarto de dormir.

Dei para ficar muito sensível a olhares de reprovação a meus pés, voltava para casa sempre queixoso. Mas, como só uso sapatos nas duas ou três vezes por ano em que saio dos limites do Leblon, persisti, na esperança de que se acostumassem. Mas me dei mal: nenhum teimoso se dá bem nos botecos do Leblon, ou, pensando bem, em qualquer boteco. Cheguei ao Bracarense, pedi um chope, Benjarnim me chamou pelo nome, o companheiro ao lado ouviu.

— É o imortal? — perguntou ele, dando uma olhada de esguelha para meus pés.

— Sou. Quer dizer, acho que sou.

— Acha que é, não; é. Eu sei que tu é imortal, deu no jornal. Tu chegou bem a calhar. Nós estamos tendo uma discussão aqui.

— Ali, é? Eu sou Vasco, há-ha.

— Não, não é de futebol, não, os intelectualistas pensam que o Brasil é um pais essencialmente ludopédico, não assiste razão a vocês, tem brasileiro que não suporta futebol, não sei se tu sabia. Não, não, é uma questão de grafia. Ninguém melhor do que um imortal pra esclarecer isso.

— Não tenho certeza, eu...

— Modéstia, modéstia, é coisa simples, é uma questão degrafia. É o seguinte: "vaisesica" é com esse ou com zé?

— Vai o quê?

— Vaisesica.

— Você podia soletrar para mim?

— Se eu tou pedindo pra me dizer se é com esse ou com zê eu ia poder soletrar? Quer dizer que tu não sabe como é que se escreve "vaisesica"? Se ainda fosse um vocábulo de baixo calão, eu compreenderia. Mas um termo da filosofia hindu, uma palavra...

Desculpei-me, que é que ia fazer, nunca tinha ouvido nem lido esse famoso termo da ainda mais famosa filosofia hindu. Ele foi compreensivo, até atencioso, disse que essas coisas acontecem etc. Mas, ao me afastar, ouvi sua voz comentando o acontecido. já vira tudo neste mundo e agora também já vira um imortal que não sabia se uma palavra era com esse ou com zé, o que já foi aquela Academia, o que hoje é, tu sacou a sandália dele? C’ést dur, c’ést dur d’être immortel.

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(*) Primeira nota de pé de página pela qual não peço desculpas: se a UTI fosse coisa boa, haveria necessidade de entidades para defendê-la? Mas não adianta dizer isto, porque eles vêm com o exemplo da vacinação, Osvaldo Cruz, não sei o quê. O vírus da varíola foi varrido da face da Terra, pelo menos até o dia em que o dr. Iéltsin precisar de mais dinheiro e quiser vender o estoque da Rússia, senão ele solta. As UTIs continuam dando de quatro a dúzias de mil dólares por dia, cada uma. São um esforço pela vida. Dos donos delas.