Sobrou para mim

(João Ubaldo Ribeiro)

Depois que entrei para a Academia, tive algumas surpresas a respeito de nós, imortais. A primeira foi meio chata. Foi quando, pouco depois de imortalizado, me deu um treco no coração e fui parar numa UTI. Provou-se cabalmente que o epíteto é só de brincadeirinha e, mesmo que não fosse, já gastei mais da metade de minha imortalidade, somente com essa experiência. A segunda coisa, que já contei aqui, foi que acadêmico tem que saber a grafia e o significado de absolutamente todas as palavras e, quando revela não sabê-los, instala-se um clima de desmoralização. Durante essa última Copa, fui perguntar aos meus colegas de crônica esportiva qual era o gentílico de Camarões (até hoje não sei, esqueci), responderam que o acadêmico ali era eu e me deram uma vaia. Nunca mais perguntei nada e agora só viajo levando o Aurelinho escondido na bagagem de mão.

A terceira coisa é que os acadêmicos são uma espécie de polícia da língua, encarregada de formular regras aterrorizantes e agir como o Santo Ofício contra os que a ofendem. Todo mundo acha que a Academia é um órgão público com essas e outras funções igualmente desagradáveis e que (pelo menos na opinião dos encanadores, gasistas e prestadores de serviço diversos que vem aqui em casa) os acadêmicos ganham uma graninha esperta para fazer esse trabalho.

A Academia, como qualquer acadêmico lhes dirá, é na verdade um clube. Fechadinho, com prestígio, mas um clube, que só tem as obrigações que impõe a si mesmo e as responsabilidades que aceita. Não pertence ao governo, não é fiscal da língua e, quanto à remuneração, que tampouco vem do governo, o nosso operosíssimo presidente, dr. Josué Montello, assessorado pelo nosso dinâmico tesoureiro, dr. Alberto Venâncio Filho, pretende, em futuro próximo, que o jetom pago por sessão semanal seja suficiente para custear o táxi do imortal que mora longe, como é o meu caso. (Sim e aproveito a oportunidade para dizer que, apesar de muitos acadêmicos gostarem de um uisquezinho, não se serve uísque na hora do chá, nem dr. Josué tem uma garrafinha malocada na gaveta. Sei que não adianta, porque já peguei a fama, mas esclareço mais uma vez que a idéia do uísque não é minha, é do confrade dr. Marcos Vilaça, DD presidente do Tribunal de Contas da União. Admito que me solidarizei com a sugestão, na companhia de muita gente boa, como a confreira dra. Lygia Fagundes Telles — que é também da Academia Paulista e lá rola um uisquezinho —, mas a idéia foi bem-humoradamente ignorada pela nossa maioria discretamente conservadora.)

E, finalmente, agora que o Senado aprovou novo acordo ortográfico, naturalmente sobrou para nós. Ou pelo menos sobrou para mim, segundo minha intensa experiência recente, em botecos e salões, estes poucos, aqueles muitos. Alguns acadêmicos estão envolvidos com esse acordo, mas não a Academia como instituição. Não sei quantos acadêmicos são a favor da nova mudança, mas tenho certeza de que alguns a abominam, entre os quais este que modestamente lhes fala. Contudo, os responsáveis, ao olho público, somos nós. Mais uma vez a tremebunda Academia muda uma porção de coisas na maneira de grafar as palavras e mais uma vez obriga todos, sob as penas da lei, a aprender e empregar uma ruma de novidades.

Desde que me entendo, já peguei não sei quantas reformas (ainda alcancei muitos livros na orthographia antiga, na biblioteca de meu pai). Para que tantas reformas, que só geram confusão, prejuízos para muitos e lucro para poucos? Quando aboliram o circunflexo diferencial, eu era editor-chefe de um jornal e foi uma luta para explicar ao pessoal que a reforma não obrigava a escrever "voce" em vez de "você". No tempo em que eu era professor, se indicasse um livro em ortografia um pouco mais antiga, muitos alunos, que já não eram, como a maior parte dos brasileiros, esses leitores todos, se queixavam de dificuldades. Meu também confrade (e compadre) dr. Jorge Amado, que é mais velho do que eu — não em resistência física, mas somente em idade mesmo —, há muito tempo que ficou de saco cheio disso e, depois de escrever, manda alguém "botar ou tirar os acentos e outras frescuras nesse negócio". Amigo de José Aparecido, ele está provavelmente a favor do acordo, mas a verdade é que para ele é fácil, porque ele vai continuar se lixando para as novidades.

Como disse o igualmente confrade dr. Antônio Callado, esse é um assunto detestável. Por que têm que ficar mexendo na língua? Por que têm que legislar a língua o tempo todo, repetindo algo que já se tornou cíclico? Sei que vão dizer que o inglês é uma língua dominante, não sei o quê, mas ninguém legisla inglês e as normas do bom uso da língua são extraídas dos bons escritores, através de dicionários privados ou de manuais de redação. Eles nunca precisaram dessa legislação e nunca vão precisar. Além disso, existem inúmeros "ingleses" pelo mundo afora, cada um com suas idiossincrasias e todos se entendendo muito bem. Os ingleses da Inglaterra escrevem com our uma porção de palavras que os americanos escrevem com or (labourlabor, humourhumor etc.) e essa é apenas uma das muitas diferenças — uma das mais espetaculares sendo o gosto inglês de grafar gaol a palavra que os americanos grafam jail.

Nunca tive dificuldade em entender um livro português, a não ser quando escrito em gíria ou em linguagem extremamente regional — mas isso acontece com os próprios portugueses. Morei em Lisboa, lia os jornais, escrevia para jornais, conversava com todo mundo e entendia tudo. Um livro meu, escrito em itapariquês, esgotou lá duas tiragens em um mês. A mesma coisa se passa com meus amigos portugueses em relação ao Brasil. Saramago é sucesso de vendas entre nós. Mas temos de mudar, assim como querem mudar a bandeira, o hino e mais tudo o que puder ser mudado, não sei em nome de quê.

Fizeram aí uma estatística e disseram que as mudanças só vão afetar três por cento das palavras escritas. Como a estatística é a arte de mentir com precisão, pergunto se essa porcentagem não será maior em relação, não a todas as palavras da língua, mas às mais usadas. Pode ser que as mais usadas sejam afetadas numa porcentagem bem maior. De qualquer forma, lá se vai gastar grana em dicionário novo, lá se vai jogar CD-ROM fora, lá se vão fazer fotolitos novos, lá vem bagunça novamente, enquanto as mudanças não são assimiladas. E o pior é que, se a História é professora, daqui a alguns anos farão novas mudanças, já é uma tradição. Como Callado, também gosto do meu confrade dr. Antônio Houaiss, mas não gosto nem um pouco das mudanças. E, como Jorge Amado, acho que vou arranjar alguém para botar ou tirar as frescuras indicadas. Tremei, editorias!