Vida de artista

(João Ubaldo Ribeiro)

O Leblon deve ter mais escritores por metro quadrado do que qualquer outro bairro do Rio de Janeiro, é uma fartura. Diante disso, um a mais ou a menos não faz muita diferença. Mas, por algum motivo que me escapa à compreensão, o bairro se orgulha em abrigar escritores, de forma que, embora nos termos modestos que o caso recomenda, minha chegada, faz alguns meses, não deixou de ser notada.

O português do boteco da Dias Ferreira foi o primeiro a manifestar-se. Reteve um instante as notas do troco que me entregava, aproximou o rosto do meu e me perguntou, quase cochichando:

— Escritor, pois não?

— Como? Sim, sim. Escritor.

— Ah! — fez ele, inclinando-se para trás e me dando uma olhada de avaliação.

Apesar de a cara não ajudar, a situação exigia profissionalismo, de maneira que estampei o meu melhor sorriso de escritor, enquanto ele, ainda segurando o troco como se não quisesse deixar-me sair, falava com os dois mecânicos que tomavam cafézinho ao lado.

— Escritor. Não é aquele da Venâncio Flores, é outro. Escritor.

Os mecânicos me estenderam as mãos, cumprimentamo-nos, um deles me deu parabéns com uma reverência de cabeça, o português soltou o troco e, até hoje, a glória de quarteirão eleva, honra e consola, quando passo pela porta do boteco e o português sussurra ao freguês mais próximo:

— Escritor!

Sei que corro o risco de parecer gabola, mas a verdade é que minha fama já não se limita à Dias Ferreira. Espraia-se por todo o Baixo, com a natural exceção do pessoal do sereno da Wells Fargo. Sou escritor no açougue, no banco, na delikatessen, na locadora de vídeo e na Cobal. Alguns já me saúdam pelo nome, ou pelo menos tentam. Vou andando pela Ataulfo de Paiva e um gordo simpático grita de dentro de um restaurante:

— Oliveira! Graaande escritor!

— Olá, tudo bem? — digo eu, sabendo que ninguém é perfeito, a felicidade não pode ser completa e o que vale é a intenção.

Naturalmente que toda essa fama traz responsabilidades. Não posso decepcionar o público e tenho de cuidar da imagem. Isto mesmo comento, ao encontrar-me com outro escritor leblonense, este não só muito bom como dotado de uma excelente cara de escritor, embora ele insista em esconder parte dela sob óculos escuros japoneses e bonés franceses. Peço conselhos.

— Você viu como está o Vasco? — responde ele, como se não tivesse ouvido nada. — Você viu como o Bebeto jogou? A Bahia de vez em quando dá uma coisa boa. Jorge Amado, Caetano, Bebeto...

— Zé Rubem, veja as coisas com seriedade. Estamos numa livraria, o pessoal todo já reconheceu a gente. Eles devem estar pensando "olha lá os dois escritores ali conversando, deve ser um alto papo de escritores, prosa elevadíssima", e a gente aqui discutindo futebol?

— Então a gente fala baixo.

— Não, porque com futebol nós dois nos exaltamos. Você sabe que não tem base para falar com autoridade em futebol, você teima numa porção de coisas que não sabe. Por exemplo, sua escalação do time do Vasco em 1949 está errada, mas você teima. Eu me lembro perfeitamente, era...

— Friaça jogou! Friaça jogou! Você não sabe, você era um fedelho! Aliás, ainda é, ainda é! Você pode me ensinar a fazer moqueca, mas futebol você não me ensina!

— Já viu você como a gente grita? Não, futebol não é assunto sério para escritores sérios. Eles vão ficar muito decepcionados.

— Você tem razão, não podemos sair por aí decepcionando as pessoas, não é cristão. Vamos corrigir isso, vamos...

— Era isso que eu queria dizer. Vamos...

—...dar o fora daqui imediatamente e resolver esta questão do Vasco lá na praça — disse ele, me puxando pelo braço. — Você não entende nada nem de futebol nem de vida literária.