Não sei se vocês sabiam, mas eu sou giffe. Incrível, porém verdadeiro. Eu mesmo também não sabia, só soube há alguns meses. O jornal me comunicou, no dia em que me pediu uma colaboração extra.
— É o seguinte — disse um dos meus numerosos superiores hierárquicos. — Estamos organizando um caderno especial e cada uma de nossas griffes vai escrever um artigo para ele. Então nós queremos que você...
— Eu? Como assim, griffe?
— Griffe, griffe! É uma palavra francesa. A França é um país que fica... Deixa pra lá, tudo bem, griffe, gê-erre-i... Ah, desculpe, esqueci que para você é diferente. Um momento, vou chamar um intérprete.
— Guê-rê-i-fê-fê-é — soletrou o intérprete, momentos depois, traduzindo para baianês o incompreensível alfabeto do resto do país, absurdo que continua a vigorar, quando todo mundo sabe que o certo, por exemplo, é pê-fê-lê e não o bucodestroncante pê-éfe-éle.
Depois desse salvatério, o telefonador me explicou, com grande paciência, o que queria dizer, ao atribuir-me a condição de griffe. Não entendi direito e cheguei a pensar que, no futuro, poriam meu nome nos fundilhos de calças, bermudas e, com alguma sorte, calçolas*. Até hoje não sei bem o que griffe quer dizer em relação a jornal, mas, pelo tom de voz daquele que me fez a revelação, creio que é uma distinção elevada. E devo confessar que — vanity, thy name is writer — fiquei satisfeitíssimo e pensei mesmo em comunicar o fato a meus pares (meus ímpares, aliás, eis que lá todo mundo sabe tudo muito mais do que eu), numa sessão da Academia, mas uma crise de modéstia me impediu. Não contei nada nem à minha turma de boteco, achei que podia ser mal interpretado — ninguém fica tomando chope e dizendo que é griffe.
O engraçado é que, a partir daquele dia, qual bola de neve, minha griffe começou a crescer. Em São Paulo (parêntese paulista: alguns cariocas estranham, mas eu adoro São Paulo, que sempre me tratou bem melhor do que mereço. Me perco de cinco em cinco minutos, mas há sempre um paulista amigo para cuidar de mim e uma turma de paulistas amicíssimos para almoçar comigo, esplendidamente, durante umas três ou quatro horas de cada vez todos os dias, grande São Paulo!), em São Paulo, dizia eu, inauguraram a Livraria Ubaldo, vejam vocês. Convidado para a solenidade, compareci emocionado e espero que a livraria esteja muito bem, mandem noticias.
Pouco tempo depois, estive na Bahia, onde o imbatível jornal A Tarde publica esta coluna. Fui fazer uma palestra, à qual compareceu meu professor e amigo Jorge Calmon, na ocasião ainda diretor da Tarde. No final, ele veio falar comigo, batemos um papinho curto sobre os velhos tempos e ele, sempre um fidalgo, me cumprimentou pelas crônicas.
— É — disse eu, ansioso por me exibir junto aos conterrâneos em redor. — Lá no Sul, eu sou griffe.
— Mas aqui também! Você é griffe nossa, com chamada na primeira página todos os domingos!
— Fico muito contente, mestre. Nada como ser griffe em nossa própria terra.
— Pois é! Você, sabe que, depois que passamos a publicar sua coluna, a circulação subiu oito por cento?
— Quero minha parte em dinheiro — disse eu.
— Está um lindo dia hoje, não é verdade? — disse ele.
Não cessou aí a expansão de minha griffe. Faz poucos dias, o intimorato empresário da cultura Emílio Bruno me telefonou, dizendo que estava mandando um carro me apanhar em casa. Fui apanhado e o rapaz que dirigia o carro não quis adiantar nada sobre a surpresa que me haviam reservado. Lá chegado eu, o Bruno me conduziu numa turnê da livraria que ele estava abrindo nos dias seguintes, em Ipanema. Livraria não, espaço cultural, negócio grande, onde pretende promover eventos o ano todo. E aí, depois de mais um pouco de suspense, ele me levou ao cantinho onde se localiza — adivinharam — nada mais nada menos que o charmoso Café Ubaldo! Agora sou nome de café, em breve namorados e amantes dirão "encontro você às oito, no Café Ubaldo", a que glória maior pode aspirar-se?
— E tem mais — declamou Bruno, com dramaticidade calabresa. — Ali, naquela prateleira, vai haver sempre uma garrafa de uísque com seu nome, exclusivamente para você! Todos os dias, 24 horas por dia!
— Te voglio bene — disse eu, os olhos marejando.
Retornado à casa, ufano e de peito empinado, dirigi-me ao renomado boteco Tio Sam — pernil incomparável, rabadinha com agrião cordon-bleu —, para comemorar com alguns amigos. Adentrei, encontrei meus co-botecanos de sempre e também o bravo luso Chico, proprietário e gerente do estabelecimento.
— Bons olhos o vejam — disse ele. — já estava preocupado, achei que não vinha mais hoje, até pensei em telefonar, para saber o que se passava.
— Ora, Chico, você sabe que todo dia eu venho aqui, nem que seja para dar bom-dia.
— Mas, é claro que sei, emboramente, Deus seja louvado, nunca somente para dar bom-dia. O senhor não pode deixar de vir, o senhor é griffe da casa!
Meu cansado coração de artista sentiu um baque. Agora, griffe do Tio Sam! Que fizera eu, para merecer consagração tão avassaladora, uma honraria atrás da outra? Alguém lá em cima gosta de mim, sou obrigado a concluir. Diante de tudo isso, claro que não posso ignorar as oportunidades abertas. Por enquanto, o uso de minha griffe sai barato ou de graça, respectivamente para jornais e botecos do meu coração. Mas doravante as coisas vão mudar, este mundo é muito incerto e não se pode bobear, escritor ganha pouco e o conselheiro come. Examino propostas. óculos, sandálias de dedo, pentes para bigode, xampus para carecas, copos Ubaldo? Claro, o céu é o limite. Sorry, periferia.
* já expliquei aqui que a palavra certa para "calcinha" é calçola, de uso ainda corrente, entre as baianas não-colonizadas. Como a memória da brasileira é curta, veio-me forçado a esta nota de pé de página. Calçolas de todo o Brasil, uni-vos na defesa de nossa cultura!
Esta crônica foi publicada no livro "O Conselheiro Come", Editora Nova Fronteira, 2000.