Invadenti, invadenti

(João Ubaldo Ribeiro)

Eles estão em toda parte, mas a palavra italiana para designá-los me parece a mais expressiva. Alguns dos sinônimos brasileiros, cujo número deve ir bem além de uma dezena, são também muito bons, notadamente os chulos. Invadente, contudo, é o único que para mim evoca todo o terror sem limites infligido por essas figuras assombrosas, que atacam sem avisar e surgem nas ocasiões e lugares mais inesperados. Os piores, é claro, são os que sitiam cantores e atores, mas os escritores também não sofrem pouco.

Agora mesmo, enquanto escrevo isto, estou em prisão domiciliar. Moro num pequeno edifício de apartamentos cuja área térrea é aberta, de modo que quem estiver em qualquer das ruas que formam a esquina pode ver quem entra ou sai. Ontem, inconformado com a minha honesta explicação de que estava ocupadíssimo e não podia interromper o trabalho sob pena de tudo desandar, ele ficou de plantão lá embaixo. Felizmente, minha mulher saiu antes que me ocorresse a idéia fatídica de sair também e, apesar de ele estar meio embuçado, de chapéu e grandes óculos escuros, logo o reconheceu, por sua barbicha inconfundivel. Com a eficiência que lhe conferem muitos anos de prática, ela disse que eu não estava e provavelmente não voltaria para para almoçar. Em seguida, fingiu que tinha esquecido alguma coisa e subiu para me avisar. Se tocassem a campainha, eu devia manter um silêncio pétreo, porque ele é capaz, como já fez outras vezes, de tocar a campainha por uns cinco a dez minutos, e depois ficar no vestíbulo, numa espécie de tocaia. Hoje ele ainda não deu sinal de vida, mas, em vez de aliviar-me, isto me deixa mais inquieto. Manda a prudência não aparecer lá fora.

Anteontem, ele conseguiu entrar aqui em casa. Minha mulher, mais uma vez, me salvou de um destino pior do que a morte, através de uma série de manobras magistrais, que possibilitaram que eu conseguisse me esconder num quarto, onde fiquei quase meia hora, enquanto ele reclamava da dificuldade em ver-me. Só queria quinze minutos de meu tempo, será que eu não estava em casa mesmo — ele podia correr a casa, para ver se me achava? Ela perdeu um pouco a paciência e disse que, se ele não tinha mais nada a falar, por favor fosse embora. Ele foi, mas aí retornou à carga, como já contei.

Sei que vou perder esta. Uma das características universais dos invadentes é que eles não desistem. Os raros que são derrotados ficam nossos inimigos mortais pelo resto da vida, como já me aconteceu e continua acontecendo. Os que vencem ficam nossos amigos íntimos em pouco mais de trinta segundos, chamam nossas mulheres por um apelido familiar, falam coisas como "você sabe que, entre nós, esse problema não existe", convidam-se para almoçar e bisbilhotam nosso trabalho. E, embora ainda alimente uma murcha esperançazinha em contrário, estou seguro de que, hoje ou amanhã, acabarei na companhia dele, bendizendo os céus por não ter revólver em casa.

As vítimas dos invadentes não podem ter armas ao alcance da mão. Eu, que enfrento problemas morais quando tenho de matar um inseto, talvez já tivesse me tornado um homicida há algum tempo. Como no dia em que um deles chegou a minha casa em Itaparica, numa hora em que eu estava dormindo. Informado disto pela empregada, ele ordenou que me acordassem. Tinha viajado muito para falar comigo sobre uma coisa importantíssima e dispunha de pouco tempo na ilha, não podia ficar esperando. A empregada se recusou e ele, depois de insistir até que ela se exasperou e lhe bateu o portão na cara, veio para baixo de minha janela e começou a gritar. Sei que podem pensar que minto ou exagero, mas nem minto nem exagero. Ele veio gritar debaixo de minha janela.

— Acorda, escritor! Escritor! Acorda, escritor! Isso é hora de dormir? Acorda, o sol está brilhando, o dia está lindo! Alô! Alô, alô! Vamos acordar! Sai dessa cama, sô, eu preciso lhe falar, é importante mas é rápido, depois você volta pra sua cama! Acorda! Alô, alô, uluru-uluru, quereré-quereré, té-té-té-té-tó-tó-tá-tá, toque de alvorada! Alvorada! Acorda! Acorda, escritor! Alô, alô, alô! Eu sei que você está ai, não adianta se esconder! Acorda! Té-té-té-té! Té-té-té-té!

A janela era baixinha e as mãos em concha que ele usava para fazer reverberar sua zurraria junto às persianas tinham tal efeito que acordei com a certeza de que me haviam soprado uma tuba ao pé do ouvido. Sobressaltado, fiquei sentado na cama algum tempo, enquanto os gritos aumentavam em quantidade e variedade. Que fazer numa situação destas, chamar a policia? Melhor enfrentar o destino e abrir a janela.

Diante de mim, um senhor de boné, mostrando os dentes num sorriso alvar, como se não tivesse estado berrando como um possesso havia segundos. Então era eu mesmo? Eu mesmo em pessoa? Mas era uma satisfação enorme me conhecer pessoalmente, uma das ocasiões mais felizes de sua vida. Que eu desculpasse a gritaria, mas ele sabia, pelas minhas crônicas, do meu temperamento folgazão, sempre disposto a uma boa brincadeira. E, além disso, era uma questão importantíssima, muito importante mesmo, pelo menos para ele. Ia pegar o avião para o Rio daí a algumas horas e tinha que cuidar desse assunto. Muito bem, que importantíssima questão era essa?

— O seguinte — disse ele, com um sorriso ainda mais pacóvio do que o anterior. — Eu não podia voltar para o Rio e dizer a minha senhora que tinha passado aqui por este fim de mundo onde nunca mais vou pôr os pés, sem ter apertado sua mão. Minha senhora também é sua grande admiradora, ela não ia me perdoar. Venha de lá, é uma grande honra!

As secretárias eletrônicas, que considero antipáticas, embora essenciais à sobrevivência, ajudam um pouco, mas às vezes falham cruelmente. A minha não tem um dispositivo para limitar o tempo do recado, ou seja, o telefonador pode falar até o limite de duração da fita, que é de meia hora. Achei que a ausência de limite de tempo amenizaria a frieza da máquina. Continuo achando, mas agora não quero mais saber de máquinas amenizadas. Sim, sim, sei que cada vez mais posso passar por mentiroso, mas houve quem já falasse, inclusive lendo poemas e trechos de prosa, durante toda a duração da fita.

E, agora que já me conformei em arriscar-me a ser tido como pouco fiel à verdade, posso contar que uma vez, ainda em Itaparica, fui perseguido dias a fio por um rapaz que fazia cabriolas à minha frente, enquanto eu caminhava. Se eu parava, ele passava a fazer discursos políticos, em que citava trechos enormes de meus livros. Eu voltava a andar, ele voltava às cabriolas alguns passos à frente, como uma espécie de saltimbanco-arauto. Cheguei a pensar que terminaria por acostumar-me àquela companhia, como os bichos de curral se acostumam às moscas em torno de suas cabeças. Mas ele sumiu, tão repentinamente quanto aparecera. Depois eu soube, embora não tenha entendido direito, que ele fazia aquilo porque uma vez, não sei onde, me convidara para sua mesa e eu recusei.

Neste momento, minha mulher desce para ir ao supermercado e aguardo ansioso seu relatório sobre a situação lá embaixo. Ela volta, diz que não o viu. Com a alegria exultante dos que recuperam a liberdade perdida, comunico que vou descer para dar uma volta na praça. Ela me pede que espere um pouco. Tem que sair outra vez e é preciso que alguém fique em casa para receber as compras, que serão entregues daqui a pouco. Sai, espero alguns minutos, toca a campainha da porta de serviço. Deve ser o entregador do supermercado. Mas não se pode baixar a guarda e espio cautelosamente pelo olho mágico. Meio penumbroso, lá fora. Veio um sujeito cujas feições não posso distinguir bem. Mas carrega um pacote à altura do peito e, Deus seja louvado, não tem barba. Portanto, é o entregador. Abro a porta, não é o entregador.

— Olá! — diz o ex-barbicha, entrando imediatamente. Parece que raspar barba me deu sorte, finalmente encontro você em casa! Este pacote aqui são uns originais que eu trouxe para você ler, é coisa rápida, não vai lhe tomar tempo nenhum, você vai adorar. A gente vê tudo enquanto toma um drinque, finalmente a gente tem essa alegria de se encontrar para um papo, um drinquezinho... Este daqui é um poema em prosa, titulo provisório "Retalhos do mim enquanto eu", acho que com isso eu... Retalhos do mim enquanto eu, sentiu, eu acho que essa substanficação do pronome oblíquo, sentiu, em contraposição à objetificação do nominativo, sentiu, é rápido, você lê aqui, fique à vontade, isto aqui é a sua cara, parece que foi você que escreveu, sentiu, você vai adorar, é o tipo da coisa que você adora, eu...