No relacionamento como público, escritores e jornalistas não são como atores ou cantores. Estes sentem de pronto, pelo aplauso ou pela vaia, se agradaram ou não. Aqueles só de vez em quando sabem se o que publicaram foi bem recebido pelos leitores, através de uma eventual carta ou encontro casual. Assim mesmo, quando a reação é negativa, as pessoas geralmente evitam revelá-la diretamente. Aplaudir ou vaiar é mais fácil, porque se trata de um comportamento grupal. já chegar individualmente ao infeliz escrevinhador e jogar-lhe na cara que o que ele cometeu é ruim fica mais difícil.
Creio, contudo, ser uma exceção, pelo menos parcial, porque tenho críticos severos, alguns deles meus amigos, como o taxista Carlão, exemplar profissional do volante que faz ponto no Jardim Botânico. De modo geral, Carlão gosta do que eu escrevo aqui, mas, de vez em quando, sem muita sutileza, mas amistosamente, opina que "aquela do domingo passado estava meio chata", ou me diz que eu devia estar com azia, no dia em que escrevi isso ou aquilo. Um senhor esguio e de porte altivo, geralmente demonstrando estar com umas duas talagadas no juízo, de vez em quando me detém, ao nos toparmos na rua, para apertar minha mão e cumprimentar-me vivamente. Em compensação, há dias, embora raros, em que apenas me acena de longe e grita:
— Olha aí, a de hoje estava uma desgraça! Foi você mesmo que escreveu? Olha o nível, atenção!
Rio amarelo, prometo tentar caprichar na próxima. Raciocino que, se o sujeito gasta seu dinheiro para comprar o jornal, tem o direito de criticar a mercadoria. Que é que vou fazer, quem sai na chuva é para se molhar e, afinal, estamos numa Democracia e a livre manifestação da opinião é sagrada. Não vou ser hipócrita e dizer que não gosto de elogio e não me chateio com criticas negativas, mas faço um sincero esforço para me comportar com a elegância possível, tanto num caso quanto no outro.
E, quando uma crônica ou artigo dá, digamos assim, ibope, sinto uma espécie de felicidade secreta, entre cartas de aprovação, faxes (precisamos resolver esse plural de fax, palavra que o Aurélio ainda não registra; já que sou o caçulinha, vou perguntar aos mais velhos, lá na Academia) entusiásticos, aplausos em botecos e outras demonstrações. E os ibopes mais altos muitas vezes são uma surpresa completa para mim. Foi o que aconteceu com uma crônica (ou artigo, sei lá; vou também perguntar sobre isso na Academia), publicada há uns dois ou três domingos, em que eu, mencionando a preocupação da mulher do conselheiro Ruy Barbosa com que pagassem pelo trabalho de seu marido, comentava como querem que escritores e similares trabalhem de graça, aqui no Brasil.
Meninos, só vocês vendo. Até hoje chegam mensagens de solidariedade e não somente de escritores e jornalistas, mas de todo tipo de profissional, o que parece indicar que há mais sopeiros e folgados entre nós do que suspeitamos à primeira vista. Jorge Amado, ainda hospitalizado, mandou transmitir calorosas felicitações e afirmou que, doravante, vai enviar minha crônica a todo mundo que lhe pedir para trabalhar de graça — ou seja, algumas centenas, ou milhares, de caras-de-pau. O festejado romancista Antônio Torres me telefonou, para, com a voz embargada de entusiasmo condoreiro, fazer um discurso de aprovação. A bela e também festejada escritora Ana Maria Machado fez a mesma coisa. E mais outros, que os neurônios que já não disparam deletaram (não é assim que se diz, hoje em dia?) da minha pobre memória.
Dois médicos, igualmente indignados, me mandaram cartas, contando como são praticamente forçados a dar consultas grátis. Um deles, cardiologista, deu para variar seus horários de calçadão. Andava de manhãzinha, mas a "clientela" aumentou tanto que ele não podia mais andar, pois tinha de parar a cada minuto, para tomar o pulso de um, receitar um vasodilatador para outro e ouvir sem acreditar um sujeito lhe pedir para levar o estetoscópio e o esfigmomanômetro (medidor de pressão arterial; desculpem o palavrão, mas o Aurélio diz que tensiômetro está em desuso) para a praia, a fim de melhor servir a seus pacientes. O outro não atende mais telefone, porque, na quase totalidade dos casos, do outro lado da linha está um consulente aflito, querendo só o nome de um remedinho para o pâncreas, ou para o fígado, ou para frieira no dedão.
Um pintor, que preferiu não se identificar, disse por fax que não agüenta mais os pedidos de quadros de presente, com promessas de pendurá-los em local de destaque. Também se queixou de que vivem lhe mandando listas de presentes de casamento em que se comunica que se espera dele um ou dois quadros. Chico Simões, o filosófico (escola estóico-pragrnática) proprietário lusitano do celebrado boteco Tio Sam — onde o general Figueiredo inaugurou outro dia a mesa presidencial, com um frugal almoço de carne-seca desfiada, tutu, couve picadinha e pudim de leite —, já perdeu a conta dos fregueses que acham pagar uma formalidade desnecessária. Ele pendurou um quadro-negro com os nomes dos que preferiram desaparecer a pagar ("temos saudades de Fulano, Sicrano e Beltrano", lê-se no quadro, mas o pessoal não se sensibiliza). É a vida, filosofa Chico.
Enfim, fiz grande sucesso. Exceto, é claro, entre a minha clientela de trabalho gratuito, que continua firme. Na semana passada, houve dias em que recebi quatro ou cinco solicitações. Tive que aceitar umas duas, pois era isso ou abater o solicitante a tiros. Bem, é a vida, filosofo eu.
Esta crônica foi publicada no livro "O Conselheiro Come", Editora Nova Fronteira, 2000.