Introdução
O objetivo deste trabalho é tentar identificar como determinados autores, através de seus pensamentos manifestos em suas obras, influenciaram a formação de inúmeras correntes ideológicas da modernidade, dando base à fundação do Estado moderno e ao desenvolvimento de diferentes concepções de Estado e de como este deve manifestar-se. Procuramos, através de pequenas dissertações sobre as doutrinas filosóficas defendidas por Morus, Maquiavel, Hobbes, Locke e Espinosa, demonstrar a origem de muitas das teorias e práticas presentes na sociedade atual e que foram a base das revoluções que trouxeram, e dizemos isso com base na divisão histórica tradicional, a humanidade para os tempos modernos.
Thomas Morus (1478-1535)
Em sua obra A Utopia descreve o relato que lhe teria feito um viajante, Rafael Hitlodeu, sobre suas viagens pelo novo mundo, onde teria conhecido a ilha de Utopia, sociedade que ele descreve como sendo a única merecedora de ser chamada república, por não existir propriedade privada e por o interesse público estar em primeiro lugar. A partir daí e em toda obra podemos notar a freqüente manifestação de idéias que posteriormente seriam reunidas e aprimoradas nos escritos socialistas.
Retiramos do livro a seguinte passagem:
Quanto a crer que a miséria do povo seja uma garantia de segurança e de paz, a experiência prova suficientemente que esse é o maior dos erros. (...)Quem é o mais apressado em subverter o estado de coisas existente, senão o que está descontente com sua sorte? Quem se lança mais temerariamente no caminho da revolução senão o que nada tem a perder e espera ganhar com essa mudança?”
Essa passagem remete-nos imediatamente à doutrina marxista (elaborada posteriormente, no século XIX) e sua teoria de revolução socialista que deveria ser realizada justamente pelas pessoas insatisfeitas com a condição em que se encontravam, no caso o proletariado (classe característica da sociedade industrial). A teoria marxista, como sabemos, foi a base do Estado socialista implantado em determinados países no século XX. Mas as bases do socialismo econômico lançadas por Morus não param por aí. Segue mais uma passagem do livro:
(...) parece-me que onde existe a propriedade privada, onde todo o mundo avalia as coisas em relação ao dinheiro, dificilmente é possível estabelecer nos assuntos públicos um regime que seja ao mesmo tempo justo e próspero; a menos que você considere justo que as melhores coisas caibam às piores pessoas, ou que julgue bom que todos os bem sejam partilhados por uns poucos...
De maneira clara percebemos a relação desta passagem com a crítica socialista à sociedade desigual e à propriedade privada (base da desigualdade socioeconômica). De uma maneira geral, o livro critica os mesmos valores que o socialismo, como a honra social gerada pelo poder econômico e a ganância pelo lucro pessoal. Podemos mais uma vez detectar muitas das características do Estado socialista implantado em partes do mundo no século XX e até mesmo do comunismo objetivado por muitos, na obra de Thomas Morus, reconhecendo assim a importância deste autor e de suas concepções para a formação de uma doutrina de Estado muito importante e presente na modernidade (doutrina socialista). Na passagem que se segue, mais uma vez retirada do livro A Utopia, Morus discursa de tal forma que poderíamos confundi-lo com um socialista ativo do início do século XX: "Mas os operários! Eles penam dia após dia, sobrecarregados por um trabalho estéril e sem recompensa, e a perspectiva de uma velhice sem pão os mata. O salário cotidiano não basta sequer para suas necessidades(...)".
Nicolau Maquiavel (1469-1527)
Em vez de argumentar sobre um Estado ideal, em sua obra O Príncipe, defendeu a conquista e manutenção do poder pelo governante, que segundo sua virtude de administrar o acaso realizaria seus objetivos. Ele afirma que a obrigação suprema do governante é manter o poder e a segurança de seu país e para isso deve utilizar todos os meios disponíveis, já que os fins justificam os meios. Uma de suas grandes contribuições ao mundo moderno está em examinar a realidade tal como ela é e não como se gostaria que ela fosse. Ele simplifica também a classificação das formas de governo, resumindo-as a apenas duas: principados e repúblicas, gerando uma aparente contradição sobre onde se encaixariam os "Estados intermediários" (que sofrem com a instabilidade) e o “Estado misto” do qual Maquiavel é defensor por sua estabilidade, dizemos aparente contradição pois os “Estados intermediários” oscilariam sempre entre principados e repúblicas, e o “Estado misto” seria uma república complexa formada por diversas partes que apresentam relações de concórdia contrastantes entre si. Maquiavel propõe também a compreensão profunda da história que ajudaria a prever e prevenir acontecimentos típicos. De uma forma geral, esta doutrina exprime e lança uma nova visão da história , uma visão moderna, onde a desordem e a desarmonia são o preço a se pagar pela manutenção da liberdade. O Estado misto torna-se uma solução para um grande problema: o conflito entre interesses antagônicos, e ganha espaço nas concepções modernas. Não é difícil enxergar a contribuição de Maquiavel para as diferentes ideologias de formação do Estado moderno. Com sua teoria de “os fins justificam os meios” e exposição de medidas que ele considera necessárias em determinados momentos para manter o poder (medidas que por muitos seriam consideradas imorais), sua obra serviu como legitimação de investidas políticas de vários governos e ainda inaugurou um estudo político da realidade baseada na investigação histórica, que serviu de guia em certas situações pelas quais os Estados passam, sobretudo em conselhos políticos para a manutenção do poder.
Thomas Hobbes(1588-1679)
Justifica o poder centralizado através da natureza humana. Segundo ele, o homem por natureza é individualista e mesquinho. O poder absoluto centralizado seria então o produto de um pacto social, de um contrato ou acordo estabelecido entre os homens em condição de igualdade. Por esse contrato, eles renunciavam as suas liberdades naturais, delegando a um soberano o poder de decidir sobre tudo que diz respeito a vida social. A expressão máxima desse poder na prática, foi a monarquia absolutista. A idéia de que todo indivíduo é portador de direitos naturais, inalienáveis formou um novo conceito de cidadania. No século XVIII, essa formulação deu lugar à luta pelos direitos naturais humanos. Mas as influências de Hobbes na modernidade não se limitam a concepção de direitos humanos e de liberdade, a noção de que a função do Estado é manter a paz e o monopólio do uso da violência para preservar os pactos ainda está presente no mundo. Pode-se dizer que Hobbes inaugura o Estado civil moderno, como fruto de um pacto entre os homens, que não podem sobreviver numa situação de cada um por si.
O Estado proposto por Hobbes é um Estado Eclesiástico justamente porque sua sociedade vive em torno de um núcleo religioso. Não há, em Hobbes, uma discordância em relação ao poder exercido pela Igreja, mas, sim, na interpretação que se tem da palavra bíblica. Não é por outro motivo que o Leviatã tem início com a discussão das sensações. Dessas, segundo Hobbes, derivam todas formas do conhecimento humano, através de sua recepção pelos órgãos dos sentidos em sua relação com os objetos exteriores. A própria imaginação deriva de uma sensação diminuída ou reduzida, segundo Hobbes. O Estado moderno, tal como ainda existe na maioria das nações ocidentais, é uma invenção exclusiva de Thomas Hobbes, o filósofo maldito do século XVII. Poucos perceberam, na época da publicação de Leviatã ou Matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil, que estava a se propor uma verdadeira revolução no modo de conceber a organização da sociedade. Ao invés do poder divino atribuído ao monarca tanto por Dante, como por toda Igreja —que graciosamente assumia o papel de avalista do poder secular—, durante a idade média, Hobbes mostrava que a condição frágil da vida humana era a causa determinante da associação em torno de um “homem artificial”, mais forte que todos e capaz de assegurar a paz necessária para que cada um pudesse se manter, sem a preocupação com a luta pela sobrevivência contra um rival semelhante. Por isso, foi acusado de ateísmo e defensor do absolutismo, quando de fato punha a nu a origem velada do poder estatal. A idéia do Estado como um Leviatã, ou homem artificial, foi simbolicamente consolidada quando Napoleão Bonaparte (1769-1821) tomou a coroa francesa das mãos do papa Pio VII (papado de 1800 a 1823) e se autocoroou imperador da França, marcando o rompimento do Estado com a Igreja, que passava a ser um grupo de pressão a mais disputando os favores estatais.
John Locke (1632-1704)
Pode ser considerado o sistematizador do empirismo.Em si mesmas, a experiência sensível e a reflexão não constituiriam propriamente conhecimento; seriam, antes, processos que suprem a mente com os materiais do conhecimento. As idéias de sensação proviriam do exterior, enquanto as de reflexão teriam origem no próprio interior do indivíduo. A teoria do conhecimento exposta no Ensaio sobre o Entendimento Humano constitui a demonstração de uma tese: a de que o conhecimento é derivado da experiência sensível. As teses empiristas de Locke exerceram grande influência no pensamento ocidental. As teses sociais e políticas de Locke caminham em sentido paralelo. Assim como não existem idéias inatas no espírito humano, também não existe poder que possa ser considerado inato e de origem divina, como queriam os teóricos do absolutismo. Em seu “Primeiro Tratado sobre o Governo Civil” e também no “Segundo Tratado”, ele sustenta que o estado de sociedade e, conseqüentemente o poder político nascem de um pacto entre os homens. Antes desse acordo os homens viveriam em estado natural. A tese do estado natural e do pacto social já havia sido discutida antes por Hobbes como vimos, mas o autor de Leviatã tinha objetivos opostos ao de Locke. A diferença entre os dois resultava basicamente do que entendiam por estado natural, gerando diferentes concepções sobre a natureza do pacto social e sobre a estrutura do governo político. Locke sustenta a tese de que o trabalho é a origem e o fundamento da propriedade. Vivendo em perfeita liberdade e igualdade no estado natural, o homem, entretanto estaria exposto a certos inconvenientes. O principal seria a possível inclinação no sentido de beneficiar-se a si próprio ou a seus amigos. Para evitar a concretização dessas ameaças, o homem teria abandonado o estado natural e criado a sociedade política , através de um trato entre homens igualmente livres. Seu objetivo seria a preservação da vida , da liberdade e da propriedade, bem como a repressão às violações desses direitos naturais. Hobbes achava que a rebelião dos cidadãos contra as autoridades constituídas só se justifica quando os governantes renunciam a usar plenamente o poder absoluto do Estado. Contra isso Locke justifica o direito de resistência e insurreição não pelo desuso, mas pelo abuso do poder por parte das autoridades.
Com suas idéias políticas, Locke exerceu a mais profunda influência sobre o pensamento ocidental. Suas teses encontram-se na base das democracias liberais. Seu Dois Tratados sobre o Governo Civil justificaram a revolução burguesa na Inglaterra no século XVII. De uma forma geral as revoluções burguesas representaram a formação de um novo Estado, com novos participantes do poder político, e uma nova concepção de sociedade que prevalece até hoje. No século XVIII, os iluministas franceses foram buscar em suas obras as principais idéias responsáveis pela Revolução Francesa. Esta Revolução é um marco na história humana e a cronologia tradicional a classifica como marco do início dos tempos contemporâneos, devido à manifestação, neste movimento, de ideais que se tornariam a base do Estado atual.
Montesquieu (1689-1755)
Inspirou-se em Locke para formular a teoria da separação dos três poderes. Inúmeros Estados de hoje em dia apresentam-se segundo esse modelo.
Espinosa (1632-1677)
Defendia que não está no poder de cada homem usar sempre da razão e que o direito de natureza sob o qual nascem todos os homens, nada impede senão o que ninguém tem o desejo ou o poder de fazer. Ele acredita que o processo de governo é elaborado por homens hábeis e astutos que se preocupam com sua segurança e seus negócios e por isso todos os regimes de governo hão de pecar. Daí parte uma grande influência no pensamento de fundação do Estado, a concepção de que por melhor que seja um regime ele apresentará falhas. Para ratificar esse ponto segue uma passagem da obra de Espinosa Tratado Político: “De modo que não creio ser possível determinar pelo pensamento um regime que não tenha sido experimentado e que, todavia possa, levado a pratica, deixar de falhar.” Ele concluiu que os homens estão submetidos às suas emoções, o que torna quase impossível aos homens viverem totalmente segundo os preceitos da razão, por isso, faz-se necessário estabelecer um estatuto civil, outro ponto definitivo na formação do pensamento moderno de sociedade, remetendo-nos a criação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na Revolução Francesa, cuja importância ressaltamos novamente como representando um triunfo das idéias do liberalismo e do iluminismo, que passavam a ser a base dos Estados modernos recém constituídos ou ainda em formação. Segue mais um trecho retirado de Tratado Político:
(...) não se pode de maneira alguma conceber que a regra da cidade permita a cada cidadão viver segundo o seu próprio arbítrio; o direito natural pelo qual cada um é juiz de si mesmo desaparece, portanto, necessariamente no estado civil.
Percebemos mais uma característica da concepção de Estado de Espinosa, ou seja, a idéia de que os indivíduos deixam seu autogoverno ao formar um Estado civil (idéia também defendida por outros autores anteriormente citados). Esta concepção se faz presente no conjunto de características do Estado atual.
Outra importante contribuição de Espinosa para a sociedade dos dias de hoje está numa teoria de formas de governo que diferencia o Estado aristocrático do democrático dizendo que no primeiro o direito de tomar parte do governo depende apenas da escolha, enquanto que numa democracia este é um direito que se tem de nascença ou que vem da sorte, a todos.
De uma maneira geral todos os autores anteriormente citados contribuíram para a formação do Estado moderno com suas concepções de cidadão, poder político, sociedade, direito natural, pacto social, Estado, tipos de governo e etc... Considerando-se que todos eles incluem-se num período em que as discussões filosóficas e políticas estavam sendo retomadas com maior afinco, e dessa maneira se formava um novo jeito de se compreender o estado civil, jeito este que desembocará nas teorias que lapidaram o Estado moderno como o conhecemos.
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