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Uma Teoria da Justiça
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Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
HISTÓRIA DA FILOSOFIA MODERNA

Quarta Unidade - SÉCULO XX:

  • Uma Teoria da Justiça;
Por Antônio Rogério da Silva

O mais importante pensador político do último quarto do século XX nasceu em Baltimore, no ano de 1921. Estudou filosofia moral e política em Harvard e Oxford. Depois de trabalhar em Princeton e Cornell, conseguiu entrar para o departamento de Harvard, em 1959. Um ano antes, no entanto, John Rawls já havia publicado na Philosophical Review (Revista Filosófica) um artigo chamado Justice as Fairness (Justiça como Equidade, 1958), onde seriam lançadas as idéias principais que iriam mais tarde ser o núcleo de sua obra principal. Uma Teoria da Justiça (1971) recebeu várias críticas, mas desde o seu lançamento seus críticos perceberam logo estar diante de um clássico contemporâneo da filosofia política, que passaria a ser referência obrigatória de quem tratasse do assunto, a favor ou contra os pontos de vistas defendidos por Rawls. De uma maneira incansável, seu autor procurou defender e apresentar argumentos que justificassem suas posições liberais, revisando o texto sempre que fosse necessário, até que sentiu a necessidade de colocar sob novos enfoques a concepção de política democrática ocidental que procurava preservar. Assim, surgiram no desdobramento de sua teoria os livros capitais: Liberalismo Político (1993); O Direito dos Povos (1999) e Justiça como Equidade (2002).

Até o ano de sua morte, 2002, Rawls esteve preocupado em tornar clara suas idéias e resolver os malentendidos, típicos de uma obra tão abrangente e renovadora como fora a proposta de fundação da sociedade em princípios de justiças escolhidos em uma situação idealizada, por cidadãos que desconhecessem sua posição na sociedade. Uma Teoria da Justiça procurou apresentar as instituições básicas de uma sociedade, como um projeto que poderia ser sustentado pelos principios que cada um poderia aceitar quando estivesse em uma posição original, dotado apenas de um conhecimento sobre sua condição necessário para estabelecer um acordo geral sobre os bens primários que poderiam obter depois de erguido o véu da ignorância. Dotados de uma racionalidade comum, as pessoas poderiam chegar a uma compreensão sobre o grau de liberdade e riqueza mínimo que poderiam exercer, a fim de manter a estrutura de uma sociedade bem ordenada.

(...) A idéia condutora é antes a de que os princípios da justiça aplicáveis à estrutura básica formam o objeto do acordo original. Esses princípios são os que seriam aceites por pessoas livres e racionais, colocadas numa situação inicial de igualdade e interessadas em prosseguir os seus próprios objetivos, para definir os termos fundamentais da sua associação. São estes princípios que regulamentam os acordos subsequentes; especificam as formas da cooperação social que podem ser introduzidas, bem como as formas de governo que podem ser estabelecidas. É a esta forma de encarar os princípios da justiça que designo por teoria da justiça como equidade (RAWLS, J. Uma Teoria da Justiça, part. 1, cap. 1, § 3, p. 11).

O objetivo de Rawls era ampliar a noção de contrato social defendida pelos autores contratualistas liberais da tradição moderna, Locke, Rousseau e Kant. As escolhas feitas no sentido de uma cooperação social realizar-se-iam em conjunto, por meio de ação comum em que todos estabelecem os direitos e deveres básicos, bem como a distribuição dos bens produzidos por esta sociedade. Todas essas decisões iniciais ocorrem antes da sociedade ser formada, por seres racionais que desfrutam de uma mesma liberdade para determinar os principios de justiça que fundamentarão a sua constituição. Tudo isso acontece em uma situação hipotética tal como o contrato acordado. Embora essas escolhas, de fato, nunca venham a ocorrer como nas condições ideais, o experimento mental serve como hipótese de trabalho para o encontro dos princípios fundamentais de uma sociedade que todos poderiam razoavelmente considerar válidos, independente do lugar que ocupam na vida cotidiana.

A idéia de uma posição original é uma releitura da condição do estado de natureza presente em todos contratualistas, ou seja a situação em que cada indivíduo depende de si para se manter e não há um poder que os obrigue a reconhecer seus pactos e os direitos dos outros. Embora todos reconheçam a falta de correspondência histórica desta situação, existem exemplos perenes do estado natural nas relações internacionais, que não estão submetidas a nenhum governo mundial que obrigue uma nação a cumprir um contrato estabelecido com outra. Porém, a versão de Rawls para a posição original oferece tantas variações das características do modelo tradicional que convém mantê-la apenas em seu estatuto hipotético.

(...) Entre essas características essenciais está o facto de que ninguém conhece a sua posição na sociedade, a sua situação de classe ou estatuto social, bem como a parte que lhe cabe na distribuição dos atributos e talentos naturais, como a sua inteligência, a sua força e mais qualidades semelhantes. (...) [A]s partes desconhecem as suas concepções do bem ou as suas tendências psicológicas particulares. Os princípios da justiça são escolhidos a coberto de um véu de ignorância. (...) Uma vez que todos os participantes estão em situação semelhante e que ninguém está em posição de designar princípios que benecifiem a sua situação particular, os princípios da justiça são o resultado de um acordo ou negociação equitativa. (...) (RAWLS, J. Op. Cit., p. 12).

O véu da ignorância é um mecanismo empregado por Rawls a fim de evitar que contigências sociais, naturais, frutos do acaso, distorçam os resultados distributivos. Funciona como se fosse uma barreira que evita a predominância de interesses pessoais exclusivistas. Todos acordos obtidos sob o véu da ignorância evitam a orientação segundo os lugares que serão ocupados pelas pessoas na sociedade, depois de ter sido levantado o véu. Por conta disso, cada um procura evitar que haja uma distribuição desigual dos bens e das liberdades de atuação. Nessas circunstâncias, os envolvidos devem escolher os primeiros princípios que definirão uma concepção de justiça para aquela sociedade. Tal escolha acontece depois de várias propostas terem sido debatidas. O resultado deve atender a um equilíbrio refletivo que corresponda ao ponto harmonioso das convicções sobre o bem e o mau de cada um. Esse equilíbrio deve ser estável em relação aos choques rotineiros de forças externas (1).

A estratégia maximin tenta impedir o risco de cair abaixo da linha da pobrezaDesse modo, os princípios de justiça escolhidos devem basear-se em dois aspectos: primeiro em relação à liberdade, regulando o direito igual de cada um perante um sistema total de liberdade. Nenhuma liberdade pode ser restrita se não for para beneficiar a liberdade partilhada por todos. Em segundo lugar, as diferenças sociais e econômicas só podem ser aceitas se estiverem garantidos os maiores bens possíveis aos menos favorecidos e tais desigualdade surjam em decorrência do desempenho desigual daqueles que tiveram o mesmo acesso às oportunidades dadas. Assim, os dois princípios básicos que correspondem aos princípios de justiça escolhidos em uma posição original são liberdade e diferença. Tais princípios atendem, entre outras exigências, à estratégia de maximização dos ganhos e minimização dos prejuízos, que na teoria dos jogos é a solução em equilíbrio maximin para jogos de informação imperfeita e incompleta, como os que estão sob o véu da ignorância. As pessoas têm de tomar uma decisão sem saber qual posição ocupam e nem o ganho que obterão. Preferem, portanto, maximizar o menor dos ganhos que possam vir a obter, quaisquer que sejam as possibilidades (2).

A primeira apresentação dos dois princípios é a seguinte:
Primeiro
Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais extenso sistema de liberdades básicas que seja compatível com um sistema de liberdades idêntico para as outras.
Segundo
As desigualdades econômicas e sociais devem ser distribuídas por forma a que simultaneamente: a) se possa razoavelmente esperar que elas sejam em benefício de todos; b) decorram de posições e funções às quais todos têm acesso (RAWLS, J. Idem, part. I, cap. II, § 11, p. 62.

Os principios de justiça aceitos por todos que compõem a sociedade, em conhecimento comum, que se refletem nas instituições sociais básicas, constituem as sociedades bem ordenadas. Estas são capazes de promover o bem de todos os seus membros, sendo regulada pelas regras efetivas de uma concepção pública de justiça. A condição de publicidade das escolhas dos princípios de justiça fazem com que sejam excluídas todas concepções de grupos que queiram dominar as outras. E uma vez que as convicções verdadeiras se impõem na formação da sociedade, não haveria espaço para argumentação teológica ou metafísica na defesa dos princípios adotados, bastam apenas as condições cotidianas conhecidas por cada um para justificar suas concepções de justiça (3).

Liberalismo Político e Equidade

Depois de seu lançamento, em 1971, Uma Teoria da Justiça recebeu várias críticas e observações que foram sendo atendidas nas diversas edições subsequentes. Das objeções recebidas, muitas apontaram a inviabilidade do projeto e sua falta de consistência, outras concentraram a carga na concepção fundamentalista da obra que procurava dar destaque às escolhas dos princípios de justiça formadores da sociedade do que às concepções de bem e boa vida que seriam dispensáveis na primeira versão da teoria de Rawls (4).

Para responder os ataques de etnocentrismo, Rawls introduziu novos conceitos, reformulou e deu nova função aos estabelecidos antes. Entre os novos conceitos destacam-se os de consenso sobreposto e doutrinas abrangentes. Com a publicação de Liberalismo Político (1992), ganhou ênfase o caráter político da concepção de justiça em detrimento do metafísico e, por conta disso, a sociedade bem ordenada foi restrita às estruturas democráticas das sociedades ocidentais, sem ser a essência de toda uma sociedade justa em geral. A posição original foi reduzida a um estatuto meramente descritivo de uma situação ilustrativa de uma doutrina política específica e não mais transcendental. Além domais, Liberalismo Político procurou cobrir três lacunas importantes de Uma Teoria da Justiça: a defesa da justiça como equidade incorporou a idéia de consenso sobreposto para garantir sua estabilidade; o pluralismo da sociedade ganhou o reforço da concepção de doutrinas abrangentes, consideradas razoáveis; e o construtivismo político foi reforçado para explicar a faculdade de razoabilidade dos agentes racionais, deixando de lado concepções morais sobre o correto e o justo que passaram a ser distintos politicamente (5).

Rawls admitiu que sua primeira formulação filosófica de sociedade bem ordenada era irrealista e procurou incorporar a essa descrição outras doutrinas que não fossem meramente metafísicas, mas que correspondessem às crenças religiosas, políticas, morais e teóricas diferentes. As doutrinas abrangentes englobam, então, os aspectos da vida humana que vão além da simples consideração dos problemas políticos, mas podem influenciar o tipo de sociedade construída, democrática ou não, de acordo com sua razoabilidade. Diante do fato do pluralismo, Rawls teve de sublinhar as passagens de sua teoria da justiça, a fim de reforçar a idéia de um consenso sobreposto a todas as doutrinas abrangentes que aceitam que uma concepção de justiça governe todas as instituições básicas por um longo período de tempo. Destarte, foi possível contornar os problemas de neutralidade exigidos pela concepção metafísica de uma posição original. Não obstante, os acordo iniciais ainda deveriam seguir os princípios originais, para que pudessem restringir os apelos às reivindicações injustas fora do ambiente da estrutura ideal da teoria.

Importante notar que o conceito de político ao qual a teoria da justiça foi definida, depois de 1985, embora limitasse o domínio da proposta ao consenso sobre os princípios, suas instituições e proteção, permitiu que se mantivesse intacta a estrutura da posição original. Com essa transformação passou-se a encarar apenas os problemas da comunidade política e não de toda forma de associação humana. Toda discussão posterior da teoria da justiça procurou ficar restrita ao âmbito de um regime constitucional analisando seus direitos e deveres para os atores políticos.

Por fim, Rawls ainda encontrou fôlego ao final da vida para apresentar uma reformulação completa de Uma Teoria da Justiça, preparando o livro Justiça como Equidade, editado por Erin Kelly em 2002. Liberalismo Político fora escrito como uma tentativa de responder às objeções comunitarianas, ao admitir o pluralismo das doutrinas abrangentes. Porém, isso levou à necessidade de reordenar os argumentos da teoria, já que a justiça como equidade não mais servira como doutrina moral abrangente. Agora a justiça como equidade teria de ser defendida como uma teoria liberal ampla que se pretende, no escopo político, atender as críticas de outras tendências concorrentes.

Não fosse a importância teórica de uma obra que renovou a discussão política no final do século XX, trazendo à tona uma construção kantiana do contrato como desenvolvimento de uma fundamentação típica dos liberais jusnaturalista. Não fosse por essa vinculação ousada entre contrato e deveres morais, a abrangente teoria da justiça de John Rawls mereceria destaque pela atitude de tentar montar uma teoria completa da sociedade e defender até o fim sua validade, reconhecendo as contribuições vindas do debates e procurando responder sempre em alto nível argumentativo todos obstáculos colocados. Rawls foi um exemplo de como a filosofia pode contribuir para avançar o nosso conhecimento sobre um assunto quando este parece ter sido esgotado e nada mais resta a ser dito.

Uma sociedade bem-ordenada é estável, portanto, porque os cidadão estão satisfeitos, no fim das contas, com a estrutura básica de sua sociedade. As considerações que os movem não são ameaças ou perigos manifestos provenientes de forças externas, mas se exprimem em tremos da concepção política que todos afirmam. Pois na sociedade bem-ordenada da justiça como equidade, o justo e o bem (...) articulam-se de tal maneira que os cidadãos que incluem como parte de seu bem serem razoáveis e racionais e serem vistos pelos outros como tais, são movidos, por razões relativas a seu bem, a fazer o que a justiça exige. (...) (RAWLS, J. Justiça como Equidade, part. V, § 60.4, p. 288).

Notas

1. Veja RAWLS, J. Uma Teoria da Justiça, part. III, cap. VIII, § 69, p. 457.
2. Para conhecer mais sobre a estratégia maximin e a teoria dos jogos, veja os DAVIS, M. D. Teoria dos Jogos; FIANI, R. Teoria dos Jogos e RAPORPORT, A. Lutas, Jogos e Debates.
3. Veja RAWLS, J. Op. cit., idem, p. 454.
4. Um crítico de primeira hora foi BARRY, Br. The Liberal Theory of Justice, outra crítica comunitariana importante foi lançada por SANDEL, M. Liberalism and Limits of the Justice.
5. Veja RAWLS, J. Liberalismo Político, introdução, p. 23.

Bibliografia

BARRY, Br., The Liberal Theory of Justice. - Oxford: OUP, 1973.

BLACKBURN, S. Dicionário Oxford de Filosofia; trad. Desidério Murcho et al.. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

DAVIS, M. Teoria dos Jogos; trad. Leonidas Hegenberg e Octanny S. da Mota. - São Paulo: Cultrix, 1970.

FIANI, R. Teoria dos Jogos. - Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

RAPOPORT, A. Lutas, Jogos e Debates; trad. Sérgio Duarte. - Brasília: UnB, 1980.

RAWLS, J. Uma Teoria da Justiça; trad. Carlos P. Correia. - Lisboa: Presença, 1993.

_____. Liberalismo Político; trad. Sergio R. M. Báez. - México, DF: Fondo de Cultura Económica, 1995.

_____. Justiça como Equidade; trad. Claudia Berliner. - São Paulo: Martins Fontes, 2003.

SANDEL, M. Liberalism and the Limits of Justice. - Cambridge: CUP, 1982.