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HISTÓRIA DA FILOSOFIA MODERNA |
Quarta Unidade - SÉCULO XX: | |
As críticas mais fortes ao liberalismo e a teoria da justiça universal defendida por autores que pregavam uma concepção de Estado neutra, capaz de ser aplicada a todas as sociedades humanas, partiram de filósofos de diversos matizes. Nomes como Michael Sandel, Michael Walzer, Alasdair McIntyre e Charles Taylor destacaram-se como aqueles que delinearam as principais vertentes contrárias à postura etnocêntrica da maioria dos filósofos modernos. O alvo inicial das críticas foi a teoria da justiça construída por John Rawls, mas logo a discussão se ampliou até atingir toda a modernidade. Nesse sentido, o multiculturalismo aliou-se à corrente pós-modernista, que por vezes caia em um relativismo cultural insustentável. A idéia do comunitarismo, a saber: a proposta de um modelo de organização da sociedade apoiada em laços sentimentais e em uma tradição comum; não foi exatamente uma criação original desses autores contemporâneos. Historicamente, tal noção remonta ao livro Gemeinschaft und Gesellschaft (Comunidade e Sociedade, 1887) do sociólogo alemão Ferdinand Tönnies (1855-1936), mas também pode ser encontrada no conceito de república concebido por Hannah Arendt em sua vasta obra política. De um modo geral, o comunitarismo se opõe à fragilidade das relações sociais baseadas no contrato e exigências de reciprocidade que visem atender os interesses egoístas dos indivíduos, que acabariam transformado o convívio social em simples trocas de favores entre sujeitos isolados uns dos outros. As versões de comunidades contemporâneas procuraram resgatar o ideal de sociedade humana aristotélica, ou tomista como em McIntyre, ao mesmo tempo em que denunciavam o fracasso do projeto moderno de convívio adotado pelos liberais. Para poder inaugurar o ataque ao liberalismo, Sandel considerou que essa forma de conceber a política estava centrada na noção de justiça, equidade e direitos individuais fundados em princípios que priorizam o dever em relação aos bens buscados por cada um. Na visão de Sandel, esse tipo de fundamentação comportava um erro conceitual. O liberalismo político falhava, justamente por prometer princípios neutros impossíveis de ser atingidos. Isto porque, a defesa liberal de um sujeito que se sente obrigado a cumprir seus deveres, antes de qualquer coisa, não é condizente com a concepção que as pessoas têm delas mesmas. A justiça não poderia ser um conceito desenraizado da sociedade no qual o sujeito sentisse algum dever moral por cumprir. (...) A justiça não pode ser primária no sentido deontológico [noção de dever e retidão dos direitos], porque não podemos coerentemente nos olhar como o tipo de seres éticos deontológicos - seja kantiano ou rawlsiano - que nos é exigido. (...) Para atender ao sujeito deontológico situado de Rawls, propriamente reconstruído, nos movemos além da deontologia para uma concepção de comunidade que marca os limites da justiça e localiza a incompletude da idéia liberal (SANDEL, M. Limits of the Justice, introdução, p. 14). Todo o problema conceitual da definição de justiça centrada no direito de um indivíduo estaria no fato da noção de justiça não depender do sujeito, mas ser um valor que só poderia ser resgatada de instituições sociais e não de um ser racional isolado. Michael Walzer, por sua vez, atacou também o aspecto exclusivista de uma única concepção de justiça, que por ser uma construção humana, poderia ser realizada de várias maneiras distintas. As questões que são postas pelos problemas de justiça distributiva podem ser respondidas de várias maneiras diferentes - por mérito, necessidade ou predestinação, por exemplo. Em Esferas da Justiça (1983), Walzer defendeu que os princípios de justiça podem ser plurais e ter várias formas. Além disso, os bens sociais diversos deveriam ser distribuídos entre as pessoas de maneiras diferentes, segundo a sua pertinência. As diferentes concepções de bens resultam sempre das condições históricas e culturais de cada sociedade (1). Sob o conceito de igualdade complexa, Walzer defendeu a idéia de harmonia das esferas diferentes das sociedades. A igualdade complexa pareceria mais segura se pudéssemos descrevê-la mais como a harmonia que como a autonomia das esferas. Mas as distribuições e os significados sociais são harmônicos só neste sentido: quando entendemos porque um bem tem certa forma e é distribuído de certa maneira, também entendemos porque outro bem tem de ser diferente. Precisamente devido a estas diferenças, o conflito entre demarcações é um conflito endêmico. Os princípios adequados às distintas esferas não harmonizam uns com os outros, e tampouco os esquemas de conduta e de sentimento que geram. Os sistemas de benefícios e os mercados, os cargos e as famílias, as escolas e os Estados são operados em arranjo com distintos princípios, e assim deveriam sê-lo. Os princípios têm que ser abrangentes ao largo das diversas companhias de homens e mulheres. (...) A cultura de uma comunidade é a história que seus membros nos narram de modo que todas as distintas partes de sua vida social tenham sentido. A justiça é a doutrina que distingue tais partes. Em toda sociedade diferenciada, a justiça conduzirá a harmonia só se conduzir à separação. Boas redes fazem sociedades justas (WALZER, M. Las Esferas de la Justicia, VIII, p. 328). A trama social se mantém unida pela acomodação de seus domínios sem que uma se sobreponha a outra e com a composição harmônica de seus princípios que evitam o confronto direto. A hegenomia de uma esfera sobre a outra acaba provocando os conflitos que costumam ocorrer nas sociedades mal formadas. Assim, ao contrário do que Rawls havia proposto não seria possível que uma doutrina política fosse capaz de reger por si só toda uma sociedade, sem a colaboração de outras instâncias sociais. Os princípios de uma teoria da justiça como equidade dependeriam então dessa malha consistente e resistente aos desequilíbrios de uma esfera sobre outra. Liberalismo como uma Tradição a Mais Alasdair McIntyre dedicou-se a mostrar que o liberalismo não tinha como sustentar sua pretensão de neutralidade frente a outras culturas. Depois de Além da Virtude (1981), McIntyre completou sua tese de que os liberais formavam uma tradição como outra qualquer no livro Justiça de Quem? Qual Racionalidade?, de 1988. Ao longo da história do ocidente, algumas tradições entraram em confronto entre si, como a tradição aristotélica e a tradição do ceticismo escocês, sem que se tivesse um padrão neutro que decidisse qual delas seria mais adequada para os contemporâneos. Na modernidade, tentou-se solucionar esse impasse moral concebendo indivíduos que estivessem livres da tradição, mas seus critérios universalizantes não tinham como julgar as proposições das tradições opostas. Ao tentar impor uma forma própria de julgamento das tradições, fora das tradições, o liberalismo inauguraria uma nova prática que precisava ser justificada perante as outras, embora isso nunca tenha ocorrido como tal. O liberalismo, portanto, fornece uma concepção específica da ordem justa, que é intimamente integrada à concepção do raciocínio prático exigida pelas transações públicas conduzidas nos termos estabelecidos por uma comunidade política liberal. Os princípios que informam tal raciocínio prático, a teoria e a prática da justiça nesta comunidade não são neutros com relação a teorias rivais e conflitantes do bem humano. Onde são vigentes, elas impõem uma concepção particular da vida boa, do raciocínio prático e da justiça sobre os que voluntária ou involuntariamente aceitam os procedimentos liberais e os termos liberais de debate. O supremo bem do liberalismo é a manutenção continuada da ordem social e política liberal, nada mais, nada menos (MACINTYRE, A. Justiça de Quem? Qual Racionalidade?, cap. XVII, p. 370). Para solucionar o impasse da falta de comunicação entre as tradições, McIntyre propõe que levante as tentativas de se encontrar valor de verdade entre suas proposições de modo excludente. Ao invés de se rechaçar uma tradição por ser considerada falsa sob os padrões de uma outra concepção de boa vida, dever-se-ia entendê-las como sendo interpretações complementares de uma mesma realidade, sob perspectivas diferentes (2). As pessoas ligadas à tentativa de estabelecer o diálogo argumentado entre as tradições precisam proceder de forma a encontrar nestas os seus pontos fortes e fracos, a fim de extrair aquilo que fosse mais adequado ao conhecimento da verdade. [O mediador] deve envolver-se no diálogo entre as tradições, aprendendo a usar a língua de cada uma delas, a fim de descrever e avaliar as outras através dela. Assim, cada um desses indivíduos será capaz de transformar suas próprias incoerências iniciais em vantagens argumentativas, exigindo de cada tradição que ela forneça uma visão de como essas incoerências podem ser melhor caracterizadas, explicadas e superadas. (...) Assim, esses indivíduos farão com que uma tradição de pesquisa lhes forneça um tipo de auto-conhecimento que ainda não possuíam, proporcionando-lhes, inicialmente, uma consciência do caráter específico de sua própria incoerência através de seu esquema matafísico, moral e político de classificação e explicação.(...) [T]odos esses elementos levam o indivíduo educado no auto-conhecimento de sua incoerência a reconhecer por qual desses modos rivais de compreensão moral ele se considera mais adequadamente explicado (MACINTYRE, A. Op. cit. cap. XX, p. 426). Desse modo, os comunitarianos e os multiculturalistas pensavam estar livres de uma falsa postura neutra e universalista, sem cair em um vale tudo relativista e inconsequente. Os contornos políticos dessa visão pós-modernista da sociedade contemporânea ficaram mais nítidos quando o filósofo canadense Charles Taylor apresentou seu artigo sobre Multiculturalismo e a Política de Reconhecimento, em 1992. Esse trabalho recebeu vários comentários extensos que foram editados em um único volume. Contribuíram para o debate, Jürgen Habermas, Michael Walzer, Susan Wolf e o ganense Kwame A. Appiah. Taylor que chegou a ser representante da província do Quebec, no Parlamento Federal Canadense, lutou pela autonomia da província de língua francesa na América do Norte, enquanto exerceu uma influente carreira de filósofo metafísico e político. Em seu polêmico artigo, abordou o tema das nacionalidades através do enfoque das políticas de reconhecimento dos grupos de expressão minoritários nas sociedades ocidentais. Nas sociedades democráticas o reconhecimento da identidade de forma igualitária se tornou uma conquista em um processo histórico de desenvolvimento da luta pelos direitos políticos. Nesse contexto, a exigência de reconhecimento deparou-se com o princípio de igualdade universal moderno. Tal compreensão da igualdade gerou problemas para as políticas de compensação que passaram a ser vistas como favorecimento imerecido. Uma versão do liberalismo adotou a idéia de que todos cidadãos têm igual dignidade e assim devem ser tratados. Por outro lado, as sociedades liberais deveriam estar aptas a respeitarem os direitos indivíduais e coletivos de associação em padrões culturais diversos. A primeira forma de liberalismo pode ser acusada de ignorar as diferenças culturais no seio das sociedades contemporâneas, firmando-se em um modelo processual, meramente formal de defesas dos direitos humanos, que se quer neutro perante reivindicações particulares. Tudo isto, para dizer que o liberalismo não pode, nem deve, pretender uma neutralidade cultural completa. O liberalismo também é um credo em luta. (...) Contudo, não se deveria ver, aqui, uma contradição. Na política, não se podem evitar as distinções substantivas deste tipo e, pelo menos, o liberalismo não-processual, que eu descreveria, está totalmente disposto a aceitá-lo (TAYLOR, Ch. Multiculturalismo, V, p. 83).
Ironicamente, embora Taylor defenda o multiculturalismo como uma forma de garantir a sobrevivência da diversidade cultural, veio do comunitariano Michael Walzer a defesa mais clara de um liberalismo neutro, o primeiro tipo de liberalismo descrito por Taylor, ao invés de um liberalismo que se preocupasse com a defesa de uma maioria ou minoria específica ameaçada. (...) Não há dúvida que a neutralidade do estado é frequentemente hipócrita, e sempre (...) incompleta. Algumas nacionalidades, uniões sociais ou comunidades culturais correm um maior risco do que outras. A cultura pública da vida americana apoia mais este tipo de vida do que o outro. Para essas pessoas, a sobrevivência é um problema maior do que para as outras. Esta não é só uma questão de história e de números mas também de bem-estar e poder. Por isso, a existência da política contemporânea do "multiculturalismo" é numa da suas formas uma exigência de desafiar o bem-estar e o poder e igualar os riscos. Não tenho a certeza de como isto pode ser feito, mas no seu princípio, pelo menos, é compatível com o Liberalismo 1, ou seja, com um estado neutral para a sobrevivência (cultural) de qualquer pessoa (WALZER, M. "Comentário", in TAYLOR, Ch. Multiculturalismo, p. 120). O comunitarismo e o multiculturalismo levantaram um problema de sobrevivência de culturas típico da sociedade pós-moderna que tinha por um lado de enfrentar a mundialização da industrial cultural e defender os valores individuais modernos que também estavam ameaçados, ao lado de culturas prestes a desaparecerem. Dificuldades de defesa da diversidade cultural estavam relacionadas aos aspectos conceituais que não haviam sido satisfatoriamente resolvidos pelo questionamento levantado ao esclarecimento no século XIX. O conflito entre interesses indivíduais e coletivos. No início da era moderna, a luta do ideal de indivíduo teve de combater a submissão do crente a uma rígida ordem religiosa. No século XX, na passagem da era contemporânea a disputa foi entre indivíduo e sociedade. Aparentemente, a história favoreceu o ideal moderno nas duas disputas. Mas o ser humano teve de pagar o preço de sua atomização e de uma cultura informe sem nenhum valor definido que lhe fosse próprio, mas alimetado por um modelo de desenvolvimento indiscriminado gerado para uma massa corrompida. O indivíduo vence e seu prêmio é a solidão no meio da multidão ameaçadora. Notas 1. Veja WALZER, M. Las Esferas de la Justicia, I, p. 19. | |
Bibliografia | |
BLACKBURN, S. Dicionário Oxford de Filosofia; trad. Desidério Murcho et al.. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. MACINTYRE, A. Justiça de Quem? Qual Racionalidade?; trad. Marcelo P. Marques. - São Paulo: Loyola, 1991. RAWLS, J. Justiça e Democracia; trad. Irene A. Paternot. - São Paulo: Martins Fontes, 2000. SANDEL, M. Liberalism and the Limits of Justice. - Cambridge: CUP, 1982. TAYLOR, Ch. Multiculturalismo, trad. Marta Machado. - Lisboa: Piaget, 1998. WALZER, M. Las Esferas de la Justicia; trad. Heriberto Rubio. - México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1993. |