O Beijo da Morte

Fanfic por Ana-chan

 

 

“Pronto... Pode levantar agora se quiser...”

“Sim, mãe.”

“Espere. Antes prometa que nunca mais vai me decepcionar.”

“Eu... prometo.”

“Como?”

“Eu prometo, juro que prometo,” confundiu-se a criança, com a voz esmagada pelo receio de dizer o que não devia.

A expressão séria da youkai suavizou-se, tornando-se levemente cínica. Dedos longos, nos quais reluziam longas unhas tingidas de cor forte, afagaram os cabelos negros, inspecionando as mechas com atenção.

“Sabe que eu não gosto quando ficam assim, não sabe?”

“Sei sim. Vou cuidar melhor, ju...”

“Schhh... Quieto. Sua voz já me aborreceu bastante por hoje. Vá. E que isso não se repita mais.”

O menino saiu da tenda com passos tortos, como se evitasse dar as costas a ameaça que deixara para trás. Seus pequenos olhos violeta custaram a se acostumar com a claridade exterior. Já fazia um bom tempo que não via a luz do sol... Não que sentisse saudade do calor escaldante e daquela imensidão desolada ao seu redor. Por vezes, se consolava pensando que a penumbra da tenda era uma compensação bastante razoável a todo o resto.

Assim que se adaptou à luz forte, ele esticou os braços para constatar o óbvio. Havia marcas profundas neles, talvez até mais do que da última vez. O estranho é que não se lembrava de ter sentido pior do que o habitual. Talvez estivesse ficando insensível. Lembrava de alguém ter lhe dito que isso eventualmente aconteceria, coisa que não lhe desagradaria nem um pouco.

De qualquer modo, já não dava mais tanta importância.

Ele caminhou até o poço, ignorando os olhares constrangidos dos poucos que encontrou no caminho. “Lá vai o pobrezinho... o filho da louca...” Sabia muito bem o que comentavam... Que até no mercado de escravos sua vida seria melhor. Idiotas...

Havia um resquício mínimo de água no fosso, pouca e tão misturada com terra, que certamente não serviria para mais nada se não fosse sua necessidade premente de cumprir o que lhe fora determinado. Se conseguisse encher ao menos meio balde, já poderia ao menos limpar os cabelos. Faria isso, e os amarraria com cuidado para que não sujassem tão cedo. Sim, isso resolveria tudo...

Desceu o balde vagarosamente, achando-o pesado, embora soubesse que estava vazio. Deixou que atingisse o fundo e em seguida o puxou de volta. O contato tão próximo com o líquido tão precioso fez sua garganta doer de secura. Seus lábios tremeram. Embora um tanto barrenta, havia água o bastante ali para resolver seu problema, se sucumbisse à sede, não iria suportar...

Um instante apreensivo se passou antes que o youkaizinho virasse o balde inteiro contra o rosto abatido, sorvendo cada gota de água que se aproximasse de seus lábios.

Errado... estava fazendo tudo errado, tudo.

Mas a sensação... tão gostoso... não podia resistir, não podia...
 
 
 
 

“Vocês me envergonham!!” bradou o youkai corpulento, de pele corada e cabelos desgrenhados.

Os youkais ajoelhados diante dele abaixaram a cabeça, testas ainda mais coladas ao chão, numa posição propositadamente humilhante. Não podiam reclamar do tratamento, é verdade. Estavam com muita sorte. Por muito menos, Roushin já havia mandado arrancar a pele de alguns. Possivelmente ele só estava preocupado demais para isso no momento.

“O que eu devo fazer com inúteis como vocês?”

A porta rangeu. Nenhum dos jovens aspirantes se arriscou a sair de posição para satisfazer a curiosidade. No entanto, todos tinham um bom palpite do que, ou melhor, de quem se tratava.

Um jovem de longos cabelos negros entrou na sala ampla, com passos calmos e uma elegância natural característica de poucas espécies do Makai. Seus olhos, extremamente frios e distantes, não escondiam o brilho vitorioso, de que dava vida à expressão plácida, um tanto apática até. A pele pálida, contrastava com o traje negro, sem qualquer detalhe de outra cor, que realçava a forma esguia, uma tanto indefinida de youkai adolescente. Sua aparição fez com que um enorme sorriso surgisse nos lábios de Roushin, um sorriso não correspondido, mas nem por isso menos afetuoso.

“Enfim...”

O rapaz limitou-se à um ligeiro cumprimento de cabeça, antes de estender-lhe a adaga suja de sangue, sinal de que o serviço fora feito.

“Impressionante... O que acham, imbecis? Um só triunfou onde um grupo inteiro falhou.”

“Senhor...” começou um dos youkais ajoelhados “Ele nos enganou... Nos mandou para o lugar errado...”

“Como? Karasu...”

“Eles iriam falhar de qualquer jeito. E eu gosto de agir sozinho.”

Roushin franziu a testa, mas logo substituiu o semblante indignado por um largo sorriso de deboche.

“Há... Só você mesmo para dispensar ajuda numa missão dessas... Quanto a vocês, podem sair. Serão dispensados por hoje, porque estou de bom humor. Amanhã, assim que o sol nascer, quero todos aqui.”

“Sim senhor.”

Os youkais se retiraram rapidamente, sumindo pela porta como sombras.

“Você não...”

O jovem de cabelos negros se aproximou devagar, deixando-se ser abraçado pelo líder.

“Confesse, fez isso para me impressionar...”

“Fiz pelo prêmio.”

“Será seu. Sabe disso... Ninguém aqui chega aos seus...”

“Quando?”

“Breve... Mais algumas missões, talvez. E você ainda é muito jovem, não...”

O rapaz virou o rosto, desinteressado.

“Ei... Vamos olhe para mim... Sabe que é meu favorito, que ninguém vai tirar o que é seu. Só peço um pouco mais de paciência. Essas coisas tem que ser feitas com calma ou as conseqüências podem ser fatais... Vamos, seja um bom menino...”

Roushin beijou seu subordinado, satisfeito por ter superado aquela desagradável conversa de sempre. Ao menos Karasu não era do tipo que insistia demais. Já não sabia quanto tempo mais iria conseguir enrolá-lo com as mesmas desculpas. Na verdade, tinha consciência que estava errado, que para começar jamais deveria tê-lo feito acreditar que poderia receber o prêmio tão cedo, a despeito de suas façanhas. No entanto, o desejo de agradá-lo havia falado mais alto, sua fascinação pelo jovem que nunca sorria, o estopim de uma mentira que a cada dia se tornava mais difícil de sustentar.

Seus dedos deslizaram pelos cabelos negros, macios como a mais pura seda... tão bem tratados, ao mesmo tempo em que o jovem fechava os olhos, ciente do que lhe esperava.
 
 
 
 

O frescor da água se fez substituir pela aflição, o terror de saber que cedo ou tarde teria que pagar pelo que tinha feito. Havia saciado a sede, mas não lhe restara uma gota sequer para limpar a terra e sangue pisado que haviam se grudado aos seus cabelos, possivelmente compridos demais para um youkai tão pequeno.

Jogou o balde no fundo do poço mais uma vez, ouvindo o ruído seco que sabia ser da madeira contra as pedras do fundo. Puxou a corda com energia, esperançoso...

E quando retornou à superfície, seus olhos se arregalaram de surpresa. Havia algo dentro do balde, e não era nada do que esperava.

O piar fraco, mas nem por isso menos estridente da pequena ave negra o fez olhar para os lados, preocupado com a presença de outras pessoas... Olhou novamente para dentro do balde. Não estava enganado, havia um pássaro lá dentro, encolhido, sujo de terra, com asas penduradas, como se tivessem sido partidas. Há muito não via nada parecido...

Sua primeira reação foi a de atirá-lo novamente para dentro do poço. Não precisava de algo para distraí-lo, já tinha problemas suficientes... Mas uma pontada de curiosidade o fez retirá-lo com as mãos, apenas para olhar melhor a princípio.

Era um bichinho muito do feio, uma espécie de corvo, tão pequeno e frágil que dificilmente serviria para alguma coisa.

O menino ficou em silêncio, apreensivo. Sabia o que tinha que fazer, mas por alguma razão que lhe era desconhecida, não conseguia simplesmente se livrar daquela coisa.

Ele colocou o animalzinho no chão, procurando se concentrar no que tinha que fazer. Lançou o balde mais uma vez, apenas para se certificar que não havia mais nada o que fazer ali.

Puxou de volta, sentindo-o pesado. Imaginou com grande desgosto que pelo jeito só podia ser mais alguma ave imunda. Vai ver a família inteira havia caído ali...

No entanto, seu balde veio com água pela metade, um tanto suja, é verdade, mas sua admiração foi tanta que teve que tocar a superfície com os dedos para acreditar.

Se sentou, com o balde a sua frente. Estava salvo...

Ouviu um pio.

“Tudo bem, você merece...” pensou, ao mesmo tempo em que levava um pouco do precioso líquido até o bico do pobre animal.
 
 
 
 

Um bater de porta alto se fez ouvir, estragando o momento para um, acrescentado nada para outro. O youkai mais alto ainda relutou em afastar-se do corpo esguio preso em seus braços, mas a insistência das batidas não lhe deixou outra alternativa.

“Que merda...” resmungou entre dentes.

Karasu limitou-se a se afastar um pouco, e fechar os botões da camisa escura calmamente, enquanto o outro relutava em aceitar a interrupção, praguejando sem parar.

“O que é??!!”

Um dos servos abriu a porta, de cabeça baixa...

“Meu senhor... Há uma pessoa lá fora. Ele insistiu para ser anunciado... disse que não iria embora, que foi chamado pelo senhor...”

Roushin colocou a mão na cabeça. Havia esquecido completamente...

“Mande-o entrar, idiota! O que está esperando?!”

“Sim, senhor...”

Assim que o serviçal se retirou, o youkai voltou-se para o jovem ao seu lado, um tanto sem graça.

“Me perdoe... Eu havia me esquecido.”

“Tudo bem. Posso ir agora?”

“Espere um pouco. Há alguém que eu gostaria que conhecesse.”

“Roushiiiiinnnn!!!”

Num piscar de olhos, o recém chegado adentrou o salão e se pendurou ao redor do pescoço de Roushin, na maior demonstração pública de intimidade que Karasu já havia testemunhado desde que entrara para o grupo. Um ultraje, pensou, sem saber exatamente porque. Não era da sua conta de qualquer modo. E depois, era uma garota, provavelmente alguma amante antiga, ou coisa parecida. Alguém totalmente sem importância portanto.

“Karasu, quero que conheça um de nossos melhores aprendizes, bom ex-aprendizes. Bishou, esse é nosso mais novo garoto de ouro.”

“Sim sim! Muito prazer!”

O jovem permaneceu estático perante a mão estendida em sua direção. Não era uma garota? Ex-aprendiz? Então aquela criatura saltitante, com cara de menina era seu veterano? Não podia ser...

Ele retribuiu o cumprimento em silêncio, engolindo a seco toda a sua indignação. O que tinha com aquilo afinal?

“Roushin... Meus pés estão me matando!” disse sorrindo, com olhos fixos no jovem de preto “Acredita que eu tive que andar da vila até aqui? Ah, já desacostumei dessas coisas...”

“Vida mansa, não?”

“He... Nem vem porque até você já quis me dar boa vida, tá?”

“Bishou...”

“Meu quarto ainda existe?”

“Sabe que sim.”

“Então vou tomar um banho e tirar meu sono de beleza, se não se importam. Essa poeira da trilha acaba com os cabelos da gente.”

Roushin balançou a cabeça, divertindo-se com tudo aquilo descaradamente, para horror do youkai ao seu lado. Horror e algo mais, porque por mais que o espetáculo tivesse afrontado sua maneira de ser, não conseguira despregar os olhos daquele estranho nem por um instante. Talvez fosse apenas por seu visual incomum, de feições delicadas e grandes olhos azuis, emoldurados por cabelos cor de sangue, como um véu escarlate de suavidade indescritível.

“A gente se vê... Karasu.”

Aquelas palavras lhe soaram como uma provocação, mas ele continuou sério. Esperou que o outro se retirasse para que ele mesmo saísse, procurando tirar os pensamentos inconvenientes da cabeça. Estava ali pelo prêmio, e não seria um idiotice dessas que lhe distrairia a atenção.
 
 
 
 

“Arigato”

“Não vai comer?” perguntou a youkai com expressão intrigada.

Não que aquele pedaço de carne mal cozida fosse alguma especialidade fora do comum, mas, pelo que conhecia do menino a sua frente, já era para ele ter engolido tudo de uma só vez.

“Vou guardar... pra depois.”

“Olha, criança, entende que eu não desperdiçaria comida tão boa com...”

“Eu sei. Vou comer... só preciso procurar uma... sombra antes.”

“Assim espero. Agora vá, anda. Não quero que me vejam fazendo isso ou vão pensar que tenho de sobra...”

Ele se retirou apressado, passos largos dando lugar a uma corridinha discreta a medida em que se afastava do acampamento em direção ao que parecia ser o que restara de um muro há muito destruído.

 De uma fresta entre as pedras um bico negro denunciava a presença da ave mal escondida. O menino o tirou de lá com cuidado. Já tinha alguns dias que o mantinha ali, cuidando sempre que podia, já esperava ver alguma mudança... As asas continuavam com aquele aspecto doentio, meio caídas, uma coisa bem diferente do que julgava ser o normal. Se ao menos tivesse alguém para ajudá-lo... mas sabia que isso era tão impossível quando encontrar um cachoeira naquela região.

Ele se sentou, segurando o pássaro com as mãos. Era tão estranho para ele estar se preocupando com algo que não fosse sua própria vida... Não fazia a menor idéia da razão de estar fazendo aquilo. Abdicar de comida e água em prol de um bicho idiota, que desperdício. No entanto, sempre que se decidia em deixá-lo para lá, era tomado de uma vontade inexplicável de vê-lo sair daquele estado tão miserável. Como um desafio, o único que se sentia em condições de aceitar... por enquanto.

Um bater de asas mais enérgico, o fez sorrir. Iria conseguir. Naquele momento, estava certo que sim.
 
 
 
 

Um suspiro, tão profundo, como se tivesse emergido do fundo da alma. Um som de doçura maldita, premeditada, tão cínica e perfeita quanto cada palavra que escapava por entre os lábios de Bishou. Karasu fingiu que não havia ouvido, como sempre, olhos fixos em coisa nenhuma, uma mancha na parede que fosse...

“He...” exclamou o ruivo “E eu que pensava que você fosse um aprendiz...”

Ele rolou sobre os lençóis, até ficar de bruços, de uma forma que seus dorso nu ficasse propositadamente exposto ante os olhos de seu jovem amante.

Tão previsível, pensou Karasu, já acostumado a esse tipo de gracinha.

“Safado... isso é o que você é,” insistiu o outro entredentes, soltando uma sonora risada em seguida.

Karasu continuou na mesma posição, impávido e sereno, como se tivesse acabado de acordar de um sono tranqüilo. Sua expressão em nada se assemelhava ao êxtase estampado na face de Bishou. Sabia que isso o irritava, mas não era sua intenção. Tampouco tinha planos de mudar de atitude. Se estavam ali, a dois centímetros um do outro, se seus dedos se sentiam livres para enroscar-se em uma mechazinha daquele cabelo tão vermelho, certamente não precisavam trocar sorrisos e elogios tolos. Não que Bishou os poupasse. Só não era seu estilo.

“Você é sempre assim?”

“Assim como?” respondeu sem lhe prestar atenção.

“Assim... tão sério.”

“E daí?”

“E daí que não é normal. Você é muito jovem, devia se divertir mais.”

“Não estou aqui pra me divertir, estou aqui...”

“Pelo prêmio, eu sei... Já ouvi você dizer isso mais de mil vezes...” disse, desanimado.

“Está perto. Roushin prometeu.”

“Karasu... você não deveria levar as coisas dessa maneira... quero dizer, assim, como se tudo fosse tão certo. Nem sempre aquilo que planejamos vira realidade...”

“Vou ter o que me prometeram. Não importa o resto. É meu objetivo.”

Bishou olhou de lado, deixando transparecer um pouco de preocupação, mas rapidamente se recompôs, recostando a cabeça displicentemente sobre o braço do rapaz ao seu lado.

“Objetivo, objetivo... Será que não dá pra esquecer isso nem aqui?”

“Você começou a falar.”

“Tem razão,” murmurou, erguendo o rosto até que seus lábios se aproximassem dos dele, “Eu falo demais... e sabe de quem é a culpa?”

“Nem imagino.”

“Sua...” sussurrou, insinuante, ao mesmo tempo em que suas mãos deslizaram pelas costas esguias de seu doce e complicado amante.
 
 
 
 

“É esse o guri?”

“Sim. O nome dele é...”

“Que me interessa o nome. É saudável?”

“Bom, creio que sim. Se não morreu até agora... É bem novinho, tem uns 7, no máximo, lembro de quando nasceu. Estávamos passando pelo...”

“Oh... Corta essa ladainha, youkai. Já disse que não estou interessando. Não há quem reclame por ele?”

“Ele tinha a mãe, uma doida que sabe-se lá o fazia com ele...”

“Eu quis dizer agora,” interrompeu bastante impaciente.

“Ah, agora não. A tenda da mulher pegou fogo e ela foi esturricada. Um horror... Dizem que ela mexia com coisas que explodiam, pode ter sido um acidente... ou talvez não, como a gente vai saber, né?”

“E ele é seu agora?” perguntou o homem, quase resignado.

“Quando nós descobrimos ele, lá perto de um muro velho e...”

“É ou não é?”

“Claro, ele é nosso agora. Minha mulher costumava alimentá-lo, nada mais justo, não?”

“Sei... ele me parece fraco,” disse, erguendo a face infantil pelo queixo, “... e completamente desorientado...”

“Vai passar, senhor! Eu garanto. O acidente foi ontem, vai ver ele ainda está abalado. Se bem que, os mortos que não me ouçam, mas a mulher era o diabo em pessoa. Nunca vi criatura mais estranha em toda a minha vida. Se quer saber, foi uma benção divina para essa criança ter se livrado daquilo. E lhe digo mais, se eu não estivesse tão apertado, até ficaria com ele. É uma belo garoto, minha companheira gosta dele, e quando crescer um pouco mais...”

“Chega! Eu vou levá-lo. Para não ter que ouvi-lo falar mais eu faria qualquer coisa. Venho buscá-lo amanhã bem cedo.”

“E... quanto à minha remuneração?”

“Amanhã.”

“Mas, senhor, é que bem... senhor!!”
 
 
 
 

“Como pôde, Roushin?”

“O que queria que eu fizesse?”

“Que tal ter dito a verdade? Sabe que não pode dar o prêmio a ele. Pelos Deuses... Você não tinha esse direito...”

“Ele não vai conseguir. Fique sossegado...”

“Você deveria tê-lo mandado matar Raizen... Mukuro, ou melhor, os dois.”

“Não seja dramático Bishou. Entrar no Reikai é impossível. Ele não vai conseguir, não está treinado para isso. É um assassino, e não um ladrão.”

“Pois escute o que eu estou dizendo. Mais dia menos dia ele vai entrar por aquela porta com a jóia nas mãos e cobrar a sua promessa. E o que você vai fazer então? Mandá-lo para a morte com mais algum tipo de missão suicida ou liquidá-lo de vez apenas para não ser chamado de mentiroso?”

“Ora, não me amole! Eu sei bem a razão de tanta preocupação...”

“E eu a razão de tanta mentira!”

“Cale-se! Insolente, com quem pensa que está falando? Está abusando da minha paciência... e da minha hospitalidade também.”

“Tudo bem. Não vou mais perturbar você. Já resolvi o que queria, não tenho mais nada para fazer aqui. Só te peço uma coisa, Roushin: resolva isso da melhor maneira que puder, mas não dê o prêmio a ele. Eu sei que ele não vai agüentar. Por favor...”

O jovem abaixou a cabeça e se retirou silenciosamente. Roushin respirou fundo, mas não teve tempo de relaxar. O youki que se fez sentir em seguida lhe era bastante familiar. Sentiu seu peito se contrair de ansiedade. Provavelmente sua conversa com Bishou não havia se dado em particular.

“Saudações, meu mestre.”

O cumprimento foi cínico, num tom meio debochado, o que não era característico de seu pupilo.

“Karasu. Que bom vê-lo de volta,” dissimulou.

“Também estou feliz por voltar...”

“E... correu tudo bem, em sua jornada?”

“Nem tudo. Você tinha razão, o Reikai não é fácil. Tive alguns contratempos.”

“Não se chateie por isso, meu rapaz. Você é o melhor mas tem que ter paciência. Há muito eu precisava conversar com você sobre...”

As palavras lhe faltaram quando identificou o objeto que Karasu tirou de uma sacola. Não havia dúvidas... era ele, o kokoro, diamante em forma de coração, um dos tesouros mais bem guardados do Reikai. Se não o estivesse vendo bem diante de seus olhos certamente não acreditaria.

Sua mente dava voltas. O que faria então? O que?

Foi quando o jovem se aproximou, num movimento ágil, e o abraçou por trás. Seus dedos cravaram-se no rosto do youkai sem piedade, forçando-o a ouvir seu sussurrar.

“Não estou brincando, Roushin. Quero o que me prometeu agora. Minha paciência já acabou.”

O tom de voz era baixo, mas firme. Roushin hesitou, se surpreendo completamente intimidado por algo que nem sabia se era de fato uma ameaça. Ainda que fosse, Karasu era apenas um aprendiz, não podia, não devia ter esse poder sobre ele.

“Está brincando comigo, garoto,” cortou, afastando-se “Eu sou...”

“Eu sei quem você é e francamente, não estou interessado nisso. Eu roubei, matei, trepei e o diabo por esse prêmio e ele me pertence por direito. Diga o que disser, essa é a verdade e, ao menos que queira que esses pobres bajuladores que vivem aqui saibam que sua palavra não vale nada, vai cumprir o que me prometeu agora.”

Roushin sentiu as palavras se enrolarem na garganta. Podia derrubá-lo facilmente, puni-lo por tamanha ousadia, mas o brilho malicioso nos olhos violeta que o encaravam furiosamente parecia ter o condão de travar-lhe os sentidos. Só então ele percebeu o que talvez qualquer imbecil ao seu redor já tivesse enxergado há muito tempo. Karasu não era um garoto qualquer, talvez nem sequer fosse um garoto... A verdade é que não sabia nada sobre ele, nada... Como pôde ser tão cego?

“Karasu, me escute,” acalmou-se, mudando de estratégia, “Você ainda não está pronto, acredite em mim. As conseqüências podem ser terríveis.”

“Estou pronto. Muito mais do que pensa.”

“Vai se destruir...”

“Não é problema seu.”

Roushin chegou mais perto e abraçou-o suavemente, como se tivesse em mente algum outro tipo de persuasão. Karasu aceitou o toque com a frieza habitual, desinteressado mas cauteloso.

“Não sabe o que me pede...” murmurou o youkai.

“Eu sei o que quero.”

“Pois bem...”

Lentamente Roushin aproximou seus lábios para um beijo que Karasu ainda hesitou em aceitar. No entanto, assim que o contato se intensificou, o jovem percebeu, um tanto tarde, que não se tratava de um beijo comum.

Um grito de pavor cortou o ar, ressonado pelas paredes de pedra da fortaleza. Do quarto onde estava, Bishou, pôde ouvi-lo tão alto quando se estivesse bem ao lado. No entanto, não chegou a se assustar. Continuou o que estava fazendo, certo de que não havia nada que podia fazer. Estava consumado. Sabia que acabaria assim, que não poderia ter evitado...

Um par de lágrimas solitárias deslizaram por seu rosto. Bishou deixou-se sentar ao mesmo tempo em que seus ouvidos voltava a ser brutalmente massacrados pela nova sucessão de gritos, sons de luta... Seu lindo pássaro dos olhos de ametista estava morrendo, agonizando em mente e espírito enquanto ele se arrumava para partir.

Mas não havia nada que pudesse fazer...
 
 
 
 

“Então você se escondeu aqui?”

O menino continuou como estava, sem esboçar a menor reação. Já estava assim antes, e nem a aproximação do estranho o fez se mexer.

“Muito bem, sei que entende o que eu digo, então, não me obrigue a ser enérgico. Você me pertence agora. Estamos de partida. Quero que levante daí e me siga sem choramingar. Odeio... O que é isso?”

“Meu pássaro,” respondeu um fio de voz.

“Ótimo, você sabe falar... Pois trate de soltá-lo de um vez.”

“... Ele não voa.”

“Azar o dele, então. Deixe-o aí.” O youkai se virou “E não me faça vir aqui buscá-lo novamente, ou eu te farei em pedaços.”

O menino viu o homem se afastar, ciente de que não tinha alternativa. De fato, estava mais do que acostumado a não ter alternativas, e ameaças definitivamente não lhe soavam como novidade. Podia até dar de ombros se quisesse, pagar para ver... Mais ou menos pancada na sua vida não ia fazer grande diferença, ainda mais que já tinha tempo que não sentia mais nada... Ele desligava e tudo bem.

“Gomen nasai,” murmurou para a pequena ave, colocando-a no chão.

Ele ainda deu uma olhada ao redor antes de virar-lhe as costas.
 
 
 
 

“Quero entrar!”

“Já disse que não...”

“Não pode me impedir!”

Roushin abaixou a cabeça. Bishou estava certo, não podia. Podia mandar que fosse impedido, mas não podia fazê-lo por si mesmo. Não depois de tamanho desgaste.

“O que pretende fazer? Está tudo acabado...”

“Ele está morto?” perguntou, com a voz insegura.

“Não... Conseguimos deter o processo a tempo. Mas creio que ficará imprestável. Um pena... Não queria que tivesse sido assim...”

“Por que deu o prêmio a ele?”

“Eu tive que ceder. Sinto muito.”

“Miserável...”

“Não me consta que tenha ajudado a evitar isso... Nem sequer estava aqui quando ele perdeu o controle... Não seja hipócrita, Bishou. Se dependesse de você, ele agora seria um lindo youkai enlouquecido, loiro e morto.”

“... Tem razão. Eu não fiz nada... Sou tão culpado quanto você...”

“Onde pensa que vai?”

“Já disse. Quero vê-lo.”

“Não... Espere até amanhã. Não vai gostar do que vai ver se entrar agora. Depois, ele pode não te reconhecer, ou tentar te atacar... está descontrolado. Não...”

“Por favor.”

“Não vou poder te ajudar... Estou cansado.”

“Não vai precisar. Ele gosta de mim, tenho certeza que tudo vai correr bem. Quero fazer algo por ele, talvez levá-lo comigo...”

“Entre de uma vez, Bishou, mas não fale tolices.”

O jovem empurrou a porta vagarosamente. Respirou fundo. Ainda estava em tempo de fazer a coisa certa.

“Karasu...”

A principio tudo que viu foi um sombra negra sobre o chão, imóvel como um objeto sem vida. Se aproximou, reparando nos tubos que partiam da cabeça, indo diretamente para um tipo de máquina, uma geringonça horrenda de que já havia ouvido falar. Um contentor de youki. Karasu havia sido ligado a uma dessas, o que não devia lhe causar surpresa, já que havia recebido o maldito prêmio, uma quantidade descomunal de energia que jamais poderia controlar.

Ele se ajoelhou ao lado do corpo estendido. Havia uma máscara cobrindo quase todo o rosto, do queixo até o nariz, deixando de fora apenas os olhos entre-abertos, foscos, de olhar parado como o de um cadáver. Os tubos que o prendiam à máquina partiam da tal máscara. O conjunto era simplesmente grotesco, seu adorável amante, tão jovem e belo reduzido àquela forma apática.

“Karasu... eu sinto tanto,” murmurou, hesitando em tocar a mecha negra, levemente entremeada por fios dourados, estendida bem a sua frente “Eu nunca devia ter permitido que isso acontecesse, nunca... Você é só uma criança, eu tinha que ter impedido... Não queria que a diversão acabasse tão cedo para você...”

Olhos violeta se mexeram vagarosamente, buscando a fonte da voz melodiosa, que proferia consolos e desculpas em tom choroso, quase dramático. A medida em que o lindo jovem de cabelos vermelhos tomava forma diante de sua visão embaçada, aquelas palavras de dor e arrependimento o apunhalavam como facas, despertando seus sentidos...

“Karasu... Está me ouvindo?”
 
 
 
 

Mais um pio... outro e outro. Eram como pedidos de socorro que martelavam sua mente, impedido-o de seguir em frente.

O deserto aquela hora do dia era mais quente que o próprio inferno, o sol ameaçava cozinhá-lo, seu novo mestre estava a sua espera. Não podia hesitar mais...

Ele voltou.

“Não posso levar você comigo, não entende?” pensou, fitando o animal que se arrastava ao chão em meio a pios desesperados “Você não aprendeu a voar... não posso fazer mais nada.”

A ave parou de se mover mas os ruídos persistiram, desolados, como o choro de uma criança perdida.

“Pare com isso! Pare!” gritou em silêncio. Não podia suportar mais...
 
 
 
 

“Pensou que eu estava morto?”

A voz lhe soou diferente abafada por aquela máscara. Quase irreconhecível. Vê-lo erguer-se do chão o assustou mas, mesmo assim, abraçou-o com força, ignorando máquinas, tubos e o que mais houvesse. A energia que emanava de seu interior era aterradora... como se seu corpo por si só pudesse ser capaz de explodir o mundo.

“Está vivo... quase me matou de susto. Estou de partida, mas vou voltar... Vai tudo ficar bem agora...”

Mãos macias percorreram suas costas, subindo, envolvendo mechas de seu cabelo... Ainda era o mesmo, Bishou sabia que sim. Estava sendo abraçado também, com força. Talvez houvesse uma chance de consertar tudo.

“Ficar tudo bem? Mas é claro que vai...”
 
 
 
 

Os piados cessaram. O silêncio do deserto voltou a reinar e uma estranha calma apoderou-se de seus sentidos. Estava acabado, e havia sido tão melhor assim... Seu lindo pássaro de asas quebradas estava salvo enfim, para sempre.

Ele colocou o corpo arruinado sobre o chão de areia. Esticou as asas com cuidado, embevecido com o resultado. Jamais pensara que fosse ver algo tão belo... Sem vida seu lindo corvo não era mais defeituoso. Havia lhe salvado da existência medíocre, e com ela toda a dor de um corpo deformado e inútil... Sim, como era perfeita sua ave morta. Podia admirá-la por horas, se houvesse tempo.

Um sorrido discreto surgiu no canto de seus lábios. Ele se levantou, e caminhou de volta para o acampamento, calmo, como se nada de novo estivesse a sua frente. A imagem que o encantara ainda estava viva em sua mente, e nada mais lhe importaria então.

Estava feliz...
 
 
 
 

Ele estendeu o corpo adorável sobre o chão, cuidadoso para que os lindos cabelos cor de sangue não ficassem embolados. Tão lindos... Enfim, seu para sempre, jovem, belo e, melhor de tudo, silencioso, calmo... Perfeito. Teve ímpetos de beijá-lo, mas sabia que não podia privar-se da máscara... não ainda. Mas seus dedos podiam passear pela pele macia. Tão perfumado. A cada instante que passava sentia que o amava cada vez mais...

Ergueu-se um pouco, para admirá-lo melhor. Mal podia acreditar... Bishou, o youkai mais belo que seu olhos já haviam visto, todo seu, para sempre.

No entanto, sabia que não podia ficar ali muito mais. Alguém acabaria entrando... Gente imunda, que jamais entenderia a perfeição que só a morte poderia conceder.

Ele puxou os tubos, arrancando-os de uma só vez. Os olhos, agora vivos de visão aguçada, felina, ainda fixos sobre o paraíso aos seus pés.

No entanto, não resistiu em tocar mais uma vez aqueles cabelos tão irreais... Uma despedida daquele que agora levaria para sempre dentro de si. Seu apenas.

“Adeus, meu querido... Sua beleza e suas lágrimas vão estar sempre comigo... até o fim. Só tem uma coisa que você realmente não entendeu... uma pena...”

Ele se levantou, batendo de leve a poeira de suas roupas.

“... para mim, a diversão só está começando.”
 

Fim

 

 


 

Novembro/2002

yomi_no_miko@yahoo.com

 


voltar