A Rocha

Fanfic por Ana-chan

 

O mundo dos sonhos o acolhia como uma criança no útero da mãe. Sabia que estava dormindo como se não dormisse há dias. Queria continuar assim, ah... Como queria! No entanto, a despeito do silêncio perfeito, podia sentir o cutucar incômodo em seu rosto e uma sensação úmida e desagradável que escorria pelo pescoço em intervalos regulares. Aquilo o sacudia de seu prazeroso devaneio, forçando-o a abrir os olhos. A claridade nunca havia sido tão cruel. Estava deitado no chão duro, apenas peças de roupas e algumas moedas valiosas separavam seu corpo nu da pedra lisa.

Só então foi capaz de atinar com o motivo daquele despertar prematuro e indesejado. Uma goteira havia se formado bem em cima de seu rosto. O pinga-pinga continuava intermitente, irritante... De certo algo capaz de interromper seu sono mesmo estando tão acabado.

Ele ergueu o corpo e olhou para o lado. A imagem se formou devagar, a princípio fora de foco, irreal demais para se acreditar. Kurama estava estendido ao seu lado, de bruços. Até aí, só poderia ter estranhado o fato de ter sido o primeiro a acordar. Porém, ao lado de Kurama havia mais alguém deitado. As asas negras jamais deixariam que se confundisse. Era Kuronue o youkai esticado ao lado de Kurama.

Seus olhos se arregalaram por um momento. Se afastou, sentando-se e abraçando as pernas. Ainda estava trêmulo de sono, com uma leve pontada de frio, sentindo-se tão perplexo que não sabia o que pensar a despeito do cenário ser bastante óbvio. Três youkais nus, deitados um ao lado do outro, entregues ao sono. Seus cheiros misturados no ar, impregnados em sua própria carne... O que mais poderia ser?

Não lembrava de nada.... A não ser da Rocha.

Olhou de lado mais uma vez... Não sabia sequer como havia chegado naquele lugar, embora soubesse estar no ponto de encontro. Mas como? Como aquilo poderia ter acontecido? Mais estranho que não sentia repulsa... Talvez apenas surpresa e incredulidade. A imagem dos youkais deitados , tão quietos... as marcas no corpo do youko... fios prateados misturando-se as mechas negras dos cabelos que só então podia ver livres das tiras de couro. Como eram belos... E ainda assim, não se recordava.

Enterrou a cabeça entre os joelhos, buscando no fundo do raciocínio conturbado uma resposta. Algo que justificasse o desatino da noite anterior. Mas as imagens pareciam querer fugir de sua mente. Espremeu os olhos. Tinha que se lembrar...
 
 
 
 

A noite anterior

 

O frio intenso parecia tirar uma camada de sua pele a medida que avançava pela floresta. O cabelo há muito já estava ensopado por uma mistura de suor e chuva. Sentia-se cansado ao extremo, o corpo moído, os pensamentos confusos. Ainda assim, mantinha a cadência de passos trêmulos em direção ao ponto de encontro.

Yomi parou ao atinar que em sua fuga, havia deixado o proveito do roubo pra trás. Quanta estupidez! Kurama certamente o consideraria um perfeito idiota.

“Então vocês querem entrar na Rocha?” Ele lembrou da voz, as sutil ironia na expressão do youko ao deparar-se com os seis voluntários “ Espero que saibam o que estão fazendo. Ainda está em tempo de desistir...”

“Não temos medo de desafios, Kurama-sama” exclamou um dos ladrões.

Tolos... A lembrança da última reunião se fazia clara então. Tanta euforia por conta de algo que só poderia trazer infortúnio. Não, Kurama não os havia enganado. Lembrava-se de todos os avisos. A Rocha não era um labirinto, como muitos acreditavam. Era um cofre. Um cofre dotado de magia própria. Contra o poder  da Rocha não se pode lutar. “Entrem. Vão em frente” ele disse “peguem o que puder, mas evitem objetos pesados demais. Sigam até o fim do corredor, até a saída. Não olhem para os lados. Ignorem vozes, ruídos, chamados e, sobretudo, reflexos. Dentro da Rocha os reflexos são mortais.”

“O que eles mostram, Kurama-sama?” perguntou um impertinente.

“Não sei ao certo. Mas não tentem saber.”

“Dizem que é o futuro.”

“Dizem que é o dia da sua morte...”

“Não importa. Apenas façam como eu disse.”

Ele avisou. Kurama jamais havia jogado pra perder e seus subordinados jamais haviam perecido por falta de aviso ou planejamento. No entanto, era um atirado, achou que seria fácil, afinal, Kurama havia estado lá antes. E se Kuronue, aquele peso morto, era um dos voluntários, não poderia ficar pra trás.

Porém, mal haviam avistado o lugar e a sensação de mau agouro se instalara em seu espírito. Era uma simples caverna, um cofre, como Kurama havia dito. Mas andar em seus corredores escuros era o mesmo que voltar à infância e ser abandonado em território desconhecido. Teria fugido se não fosse a lembrança, quase uma idéia fixa, de que não poderia demonstrar fraqueza em frente ao líder do bando, sobretudo na presença de seu amante titular.

Então... as memórias pareciam lhe escapar como fugitivas hábeis e escorregadias. Formas se dissipavam. Apenas o frio intenso era real, a vontade de alcançar a segurança, se é que algo assim realmente existia. Chovia no caminho em direção ao ponto de encontro, onde os sete ladrões deveriam se reunir após o ataque. Teve que se arrastar até lá, que puxar pelas pernas. Os cortes em seus braços latejavam e o cheiro de seu próprio sangue o enjoava. Teria lutado dentro da Rocha? De certo... ou se acidentado. De qualquer forma, estava vivo ainda e já podia avistar de longe a entrada em meio a pedras lisas. O túnel que o levaria ao destino final de uma jornada da qual mal se lembrava e já queria esquecer.

Apenas Kurama.

Ataques arriscados sempre resultavam em baixas, mas só ele ter voltado era surpreendente. O youko o olhou confuso, como se vê-lo o tivesse feito hesitar entre o alívio e a certeza de que, de qualquer modo, as coisas tinham ido mal. No entanto, longe de sua imagem lhe trazer conforto ou mesmo satisfação, a figura do kitsune prateado o revoltou por dentro a ponto de desejar que não estivesse ali.

Todos mortos. Cinco youkais poderosos contaminados por sua ambição e sonhos de grandeza, enfeitiçados por sua beleza e aura de superioridade, incapazes de enxergar que eram apenas peças num jogo. Marionetes descartáveis. Apenas isso.

Sentiu que ele se aproximava, o som de sua voz, a suavidade de sua pele. Mas Kurama não era mais o vinho doce que entorpecia seus sentidos e sim o veneno amargo que o mataria lentamente a cada gota.

“Eu vi...” disse, sem saber a razão de lhe dirigir a palavra. Não queria conversar. Queria pagar pelo drink.

“Viu o que?”

“Você.”

“Olhou para os reflexos na Rocha?”

“Não sei ao certo. Acho que...”

“É por isso que voltou ferido e de mãos vazias?” O tom era de desprezo. A distância entre os corpos não era suficiente para que uma brisa passasse entre eles.

“Por que?”

“Eu jamais deveria ter deixado um novato miolo-mole como você entrar na Rocha. Podia ter sido morto, e sua carne apetitosa me faria alguma falta...”

Os lábios se tocaram e Yomi sentiu sua boca ser invadida pela língua quente, perita em cada movimento. Não resistiu. Sua excitação cresceu ao toque do inimigo que desejava destruir. Loucura... Então, foi abandonado. O youko se afastou.

“Youkai estúpido!” Ele cuspiu no chão “Está entranhado com a magia podre daquele lugar até os ossos...”

“Então ao menos um voltou.” A voz vinha do outro lado, perto da entrada. Kuronue não parecia um recém-chegado. Desceu até o centro, onde estavam os outros dois e passou um braço sobre os ombros de youko “Logo ele... Quem diria? Então, Yomi? Boas recordações da Rocha?”

“Fez o que eu falei, Kuronue” cortou o líder, mal humorado, se desvencilhando do abraço.

“Fiz, como sempre. Não há ninguém perdido por aí. Só ele saiu.”

“E você.”

“Sim. Nós dois, não é ótimo? Você é um youko de sorte.”

Kurama olhou para eles por um momento. Fez menção de deixá-los lá plantados mas Kuronue segurou seu braço.

“Indo embora tão cedo? Nem está curioso para saber o que a Rocha contou para nós? Ou será que perdeu o apetite?”

“Ora, foda-se...”

“Olhe para ele, Kurama. Está te devorando com os olhos, e ainda assim, se parece com todos aqueles que você traiu. A mesma mistura de rancor e amor perdido. Isso não te excita?” sussurrou perto da orelha de raposa “O que acha que ele é, Yomi?” continuou voltando-se para o novato “Ah, sim... talvez você esteja se perguntando isso agora... Pode se aproximar, ele não é feito de porcelana como parece... Na verdade, é bem resistente.  Enquanto imagina uma forma de nos deixar aqui só pra manter a pose, mal pode conter o desejo de nos ter ao mesmo tempo... Não é isso, Kurama? Seu ouro e seus brinquedinhos de carne o osso, aqui, reunidos pra te dar prazer.”

“Vo...” Ele quase falou.... quase se esquivou. Estava tudo bem delineado em sua mente, a necessidade de se livrar daquela cena, ainda que aqueles dois não estivessem em seu juízo perfeito. Yomi tudo bem, mas até Kuronue? Era demais... Porém, o toque firme em seu baixo ventre o fez estremecer a ponto de engolir as palavras. Não se apercebera o quanto o fato de estar pela primeira vez entre os dois atiçava sua lascívia. Podia ser loucura, pura falta de vergonha, mas aquela era uma oportunidade única. Espremeu os olhos, deixando-se cegar pelas sensações. Mordeu o lábio, a última tentativa de manter o controle, mas os dedos hábeis de Kuronue encontraram facilmente um modo de dobrar sua resistência. O movimento o fez prender um gemido. Sua cabeça se inclinou para trás, e sem que desse conta, deixou-se amparar pelo ombro de Kuronue. Sentiu Yomi se aproximar... Estaria tudo aquilo acontecendo ou seria apenas mais uma alucinação causada pela magia da Rocha?

A mão que o estimulava subiu até segurar seu pescoço. Foi substituída pelos dedos de Yomi que rapidamente se desvencilharam da roupa branca, revelando o sexo ereto, pulsante, nada condizente com a irritação que ainda tentava inutilmente demonstrar.

“Por que resistir?” murmurou o youkai alado, o hálito quente contra a pele sensível perto da linha do maxilar “Fingir que é um lorde quando não passa de uma raposa selvagem a fim de uma boa trepada?”

Ele se manteve de pé. Ao menos isso. Talvez Kuronue estivesse certo, mas que se danasse. Ainda era o melhor ladrão do Makai, o mais famoso, o mais bem sucedido. Podia ter os youkais que desejasse a um estalar de dedos, os mais belos, os mais raros... Nenhum como eles.

As mãos de Yomi em torno de suas coxas, os lábios naquele vai-e-vem incessante, a língua hábil fazendo aflorar cada centímetro de prazer, arrebatando seus sentidos a medida que cada movimento o deixava mais próximo do gozo. Outro par de mãos firmes, não as de Yomi, em seu peito, livrando-o das vestes, beliscando sua pele, mantendo sua nuca em contato com o ombro nu, o torso firme que sustentava seu peso a medida que o ato o compelia a se retorcer de prazer.

Estava cedendo facilmente, e qualquer sombra de resistência já não mais podia ser notado em seu semblante ridiculamente corado. Seria então a ralé da ralé, a que tem em momentos assim seu único sopro de liberdade. Na noite da caça, era sua vez de ser o brinquedo.

“Melhor agora...” Foram as palavras que ouviu depois que suas pernas cederam e antes que sua boca fosse invadida pelo beijo do youkai de asas negras. O gosto era amargo e doce, salgado, a medida que minúsculas gotas de suor se fundiam ao sabor O paladar típico de Kuronue, talvez ainda mais intenso ao se sobrepor à doçura dos lábios de Yomi. Queria sorver cada instante, ou até mesmo morrer por falta de ar, pois jamais voltaria a beijar seus belos youkais ao mesmo tempo. Gozou naquele espaço morno e macio, a boca que agora clamava pela sua própria, adicionando novas nuances ao sabor. Escorregou para o chão, devagar. As moedas de ouro grudando na pele úmida de suor, enquanto os movimentos dos três corpos espalhavam os montinhos antes tão bem organizados.

Mal notou quando seus amantes, antes rivais, agora dividiam a tarefa de acariciá-lo como se tivessem ensaiado por dias a fio. Queria usar o último sopro de auto-controle para olhar para eles, admirar seus corpos perfeitos, guiá-los para o interior de seu corpo, sentir-se coberto por um véu de ébano, tocá-los, provar daquele prazer único e inigualável. Nem mesmo em sonhos fora capaz de tê-los juntos, suas criaturas imperfeitas, estúpidas, que acendiam seu desejo, que guiaria para a morte... Para... a ... morte.

Já estavam a caminho.

Era isso que havia esquecido então? Ao vencer o poder da Rocha pela primeira vez, a escuridão, o vazio... A falta de lembranças. Por isso voltara lá. Seus lindos brinquedos teriam visto a verdade então?

A dor preencheu a última lacuna de consciência, apagando aquela última lembrança. Mas esta logo se converteu em prazer, tesão, esquecimento, êxtase...

As mãos que tocavam, que passeavam por toda sua pele, os dedos que exploravam seu interior, investigando os pontos mais sensíveis, incessantes, que se esbarravam vez por outra, a vibração emanada pelo prazer proibido. Mas não haviam barreiras que não pudessem ser derrubadas numa noite como aquela. E Kurama estremeceu sob o peso dos corpos, as investidas ritmadas, firmes, em sua entrada latejante, por vezes dormente, deliciosamente machucada pela rudeza das estocadas, o revezar do corpos... O gosto da pele, do suor, do sangue que chegou a arrancar de um deles em uma dentada mais profunda. A excitação de sentir que, ainda que em breves momentos, deixava de ser o centro das atenções...

Seus lindos brinquedos ganhavam vida própria afinal. Tomavam as rédeas do ato carnal, o direito de relegá-lo ao frio do chão sempre que chegavam a tola conclusão de que precisava de alguns instantes para respirar. O direito de exauri-lo a ponto de privá-lo dos acordes finais.

Talvez só restasse o vazio então. Seu velho conhecido, o mesmo que amparou da última vez, e que lavaria toda as lembranças cruéis, dissolvendo-as como névoa.

Estava tudo quieto agora. O calor permanecia, o torpor, formigamento... O contato de seu corpo cansado entre os dois, agora completamente imóveis, se não fosse pela respiração ritmada, em cadência quase musical. Yomi... podia sentir os minúsculos chifres espetando suas costas, o rosto, que imaginou tão relaxado, os cílios perfeitos, fechados, o braço envolvendo sua cintura, o ar que expirava quente, num soprar constante contra sua pele. Kuronue, bem a sua frente, ao alcance de seus olhos, se tivesse forças para abri-los...

E mesmo assim, pode enxergar o azul profundo de suas íris, os fios negros cobrindo parte do rosto. Parecia tão real, como se estivesse mesmo olhando para ele. Mas só podia ser um sonho. Tudo aquilo. Só um sonho.
 
 
 
 

O dia seguinte
 

Nada. Absolutamente nada. Não havia um resquício que fosse, uma imagem... algo que o ajudasse a entender. Ergueu o rosto, sentindo-se menos pesado, tomado pelo desejo súbito de deixar aquele lugar antes que os dois acordassem.

No entanto, olhos azuis o encaravam, frios, mas não distantes. Kuronue havia acordado. Sentiu-se ruborizar, mas não moveu um músculo, ao menos esse gosto não daria a ele. Queria manter a naturalidade mas estava petrificado ante a figura, agora ainda mais impressionante do youkai alado então desprotegido de sua armadura negra. Os cabelos longos, despenteados, a pele lívida onde se podiam ver marcas de arranhões, o mesmo padrão que tantas vezes já decorara suas costas e coxas.

Kuronue nada disse. Se levantou, vestiu-se vagarosamente, voltando aos poucos a ser a figura coberta de cinza e negro que tanto já alimentara seus sonhos vingativos. Mal deu conta quando ele se ajoelhou bem a sua frente, talvez por ele ter recolhido uma peça da roupa de Kurama bem diante de seus pés descalços.

“Não se lembra de nada, não é?” Ele indagou com sua voz rouca, num tom amável, que julgou ser reservado apenas para o líder.

“Não entendo o que aconteceu aqui... se é que aconteceu.”

“Não se preocupe.” Yomi estremeceu ao toque leve em seu rosto “Nada aconteceu...”

“Por que me trata assim? Somos inimigos. Sonhei que tinha morrido dentro da Rocha” retrucou Yomi, sem tampouco repelir os dedos ainda permaneciam suaves contra o rosto cansado.

“Como eu poderia ter morrido na Rocha se eu nem sequer entrei nela?”

“Não? Mas...”

 “Não há nada lá que eu precise conhecer... Agora eu tenho que ir. Descanse mais um pouco. Nada pode te acontecer nesse lugar.”

Sentiu os lábios dele sobre os seus, leves, como o toque de uma pétala. Nada pôde dizer ou fazer, ainda que soubesse o que. Simplesmente, assistiu enquanto ele se afastava, carregando o corpo inerte do youko como quem se encarrega de uma criança exausta em fim de festa.

Tocou os próprios lábios, como se pudesse extrair deles a confissão que Kuronue neles depositava, em seu último beijo. O segredo de morreria com ele, e se perderia para sempre após aquele amanhecer.

O sono pesou novamente sobre ele. Deixou-se estender sobre o solo ainda quente, sucumbindo ao torpor que uma goteira idiota havia interrompido. E antes de partir, apenas uma última imagem, bem no fundo de seus pensamentos: a Rocha maldita, onde não deveria ter entrado. Ao menos, um consolo. Quando acordasse novamente nem mesmo ela estaria lá.

 

Fim

 

 


(Em comemoração ao dia 24 de novembro de 2002 da Hiei & Kurama Yaoi ML)

 

Novembro/2002

yomi_no_miko@yahoo.com


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