Amargura

Fanfic por Lalachan

 

 

Em meio ao silêncio espectral que reina em meu palácio, eu me levanto lentamente da cama, de repente dominado pela insônia. Em passos firmes e decididos que em nada parecem atestar minha total cegueira física, eu vou em direção à ampla janela, que dá para uma bela varanda.

A noite está fresca... eu sinto seu toque gentil em meus braços nus, mas eu nem ao menos me arrepio, não estranhando o repentino frio que assola meu corpo provocado pelo vento cortante.

Que estranho mar de sensações meu corpo se tornou... Tudo vem a mim mais forte do que jamais imaginei possível, como se amplificado muitas e muitas vezes. De nada adiantam meus olhos mortos... mas não preciso nem um pouco deles. Desenvolvi tanto meus outros sentidos que se houvesse um jeito de voltar a enxergar... eu o desprezaria, talvez.

Chego até o parapeito da varanda. E em meio à noite gelada, eu sinto meu imenso reino...

Gandara.

Meu peito se regojiza de repente com o imenso orgulho que me toma. Construí-a à custa de muito sangue, à custa de muitas vidas... Mas eu consegui. Não posso enxergar com os olhos suas belas torres de metal e vidro, não posso ver as construções de tecnologia avançada demais para estas terras selvagens... mas posso sentir tudo, ver com os olhos da mente, e como ela é linda...

Tenho meu reino. Sou o senhor destes domínios. Tudo aqui funciona com perfeição impressionante... exatamente como sempre sonhei.  Sei que o povo daqui está satisfeito. Enquanto o restante do Makai está envolto em total caos, aqui a ordem impera. Minha ordem...

Então... se finalmente tenho tudo que sempre ambicionei... o que será esse corpo estranho dentro de mim, me tirando o ar e o sono, me induzindo a buscar o ar frio da noite para ser testemunha da minha estranha aflição?

Eu tenho aqui tudo o que qualquer ser vivo sempre sonhou em ter... de repente até mais. Mas eu jamais terei a única coisa que realmente importa para mim, a que sempre importou.

Você.

Meus olhos se apertam com firmeza, mas sei que não há chance de lágrima alguma surgir neles. Se eu ao menos soubesse como chorar... talvez toda essa amargura, toda essa dor pudesse ser aliviada um pouco pelo consolo passageiro das lágrimas. Mas eu não posso... Assim como meus olhos estão secos, assim também parece estar meu coração.

A dor...

Minha velha conhecida... Ela volta a abraçar minha alma com suas asas negras. Faz tanto tempo que não sinto em sua plenitude, tanto tempo que não sinto suas garras pegajosas, frias tocarem e gelarem meu coração de youkai. Tanto tempo mergulhado no ódio, nos pensamentos de vingança... eu realmente havia me esquecido como é sentir dor.

Mas você a trouxe de volta... você me fez lembrar, naquele dia, quando nos despedimos, depois do Torneio do Makai ter finalmente terminado. Eu passei séculos e séculos dominado pelo ressentimento e pela mágoa, mergulhado nas trevas do ódio que me consumia dia e noite... Esses sentimentos fortes e avassaladores foram meu ponto de apoio, meus alicerces, foi o que me deu força e coragem para perseguir o sonho quase impossível de me tornar incrivelmente poderoso só para poder estar um dia novamente em frente a você. Enquanto me concentrava apenas no ódio, podia me esquecer do que havia por debaixo dele... e conseguia ir sempre em frente no meu caminho torturado e solitário.

Foi preciso estar novamente frente a frente com você, te ter próximo a mim para poder compreender realmente tudo o que estava dentro de mim, tudo o que sempre procurei mascarar, principalmente para mim mesmo.

Tanto tempo se passou... mas ainda tenho tudo vívido em minha mente, como se tivesse acontecido ontem. Consigo ainda recordar o toque de seus lábios nos meus, a textura de seus cabelos cor de prata em meus dedos, seu olhos dourados sempre sedutores e famintos... a paixão, o desejo feroz que nos guiava e consumia durante todo o tempo em que estivemos juntos.

Também estão presentes os momentos ruins... as brigas, os desentendimentos, a minha arrogância e pretensão... e a sua traição final. Depois de tudo o que compartilhamos, tudo que passamos juntos, eu havia me tornado um obstáculo desagradável e insignificante...como um inseto que precisa ser esmagado com rapidez.

Este foi o momento da dor maior... aquela que me secou por dentro aos poucos e me emprestou a frieza necessária para poder suportar a idéia terrível de que na verdade você nunca me amou. Não da forma que eu te amei. Nunca, nunca...

Eu jamais te revelei meu amor... E não seria agora que o faria. De que adiantaria? Estas palavras você nunca ouviu e nunca ouvirá. Elas são comos sementes jogadas ao vento, destinadas a nunca germinar.

Eu tento buscar o ódio dentro de mim novamente... anseio por me refugiar naquele sentimento sombrio porém tão mais confortável... Mas não consigo. É impossível depois de ter te encontrado novamente... mesmo você estando sob uma forma tão diferente. Isso não fez a menor diferença para mim, pois eu podia sentir você, seu eu verdadeiro, seu you-ki poderoso, contido, mascarado dentro do corpo humano e frágil. Mas era você. Depois de tantos séculos...era você na minha frente, e tudo o mais perdia a importância.

Mas além de te sentir tão próximo eu senti também seu you-ki tomado pelo amor... Mas amor por outra pessoa, que não eu. Um amor tão grande e verdadeiro que conseguiu te transformar, te mudar... De uma forma como eu nunca consegui.

Quantos eu não mataria...quantos mundos eu não atravessaria...O que eu não faria para ser o objeto de sua afeição, de seu amor... Sentir em você seu sentimento por outro ser me fere muito mais do que mil espadas, do que mil golpes nos meus olhos... Eu pensei que já estava calejado pelo sofrimento, pela velha dor... mas me enganei mais uma vez. Como tenho me enganado a vida toda.

Ao invés da tão sonhada e acalentada vingança, tudo o que consegui foi te deixar partir no final... Ir livre como você sempre foi. Para os braços do outro que ocupa seu coração. Para os braços de outro que não sou eu, e nunca poderá ser.

Parece ironia do Destino...  Fantasiei tanto tempo sobre o momento em que seria mais poderoso que você... e parece que o Deus do Destino me ouviu. Mas na hora do ajuste de contas, tudo que consegui foi descobrir que jamais seria capaz de me entregar à vingança. Percorri um caminho tão longo só para olhar para dentro de mim mesmo.

Todo o ódio, todos os sentimentos ruins se evaporaram e deixaram lugar para a única coisa que já foi verdadeira em minha vida. O amor que sinto por você.

Eu nunca vou me conformar... mas tenho que aceitar meu destino. Te deixei ir porque na verdade nunca te possuí. Nenhum poder, nenhuma arma, nenhuma palavra poderá jamais mudar isso. Tudo o que me resta é essa dor que sempre estará comigo...

Eu não posso chorar. Mas minha alma pode... Meu coração chora por dentro em silêncio, ele sangra continuamente em um ferimento que jamais poderá ser curado. Não enquanto eu viver...Não enquanto a imagem de seu rosto estiver presente em minha lembrança.

Onde quer que esteja... Leve, sem saber, minha alma em suas mãos.

Eu vou te amar para sempre, Kurama.

 

Fim

 

 

 


Esta fic é dedicada a minha querida amiga Ana-chan (Yomi no Miko). Aninha: Você não está sozinha no seu amor pelo Yomi! ^_^ Palavra de "menina estranha"...

Maio/1999

lalachan_yyh@yahoo.com.br


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