Kitsune

(parte quatro) 

por Sanae

 

 

 

 

 

O olhar rubro fitou a claridade que transpassava as árvores, piscou algumas vezes e voltou o olhar para seu lado, onde o corpo da criatura mais belo estava exposto, deitado, os cabelos vermelhos, mechas longas que se espalhavam pelo gramado. Tocou com cuidado, para sentir a maciez e levou ao rosto, inalando o perfume suave. Mas ao soltar os fios escarlates, sua mão continuou vermelha, manchadas com o líquido vital de sua adorada raposa, e isso fez com que se apavorasse, sentando como pôde, percebeu que seu corpo dolorosamente lhe retinha os movimentos, mas não se importou, apenas queria constatar a situação de seu amante.

Com todo cuidado, levantou a cabeça de Kurama, colocando em seu colo, retirou cada fio de cabelo e acariciou o rosto machucado, vendo o sangue que marcava a bela boca e seguia até o pescoço, se condenou no fundo da alma, tentando obter reação do ruivo, chamando seu nome, abraçando mais seu corpo, e nada... Nem ao menos se mexia...

“Kurama...”.

Como pôde se arriscar a tal ponto de usar seu mais poderoso golpe? Como dominou o Dragão Negro, não sofreria se o mesmo lhe atingisse, mas, e quanto ao Youko? Agora o resultado do que acabara de fazer estava a sua frente, imóvel, muito ferido. E o pior, não tinha como salvá-lo, nem ao menos saber acorda-lo ele sabia, se é que ele não estava...

“Por Inari! Kurama me responde!”.

Pedras preciosas começaram a se espalhar pelo chão, uma após a outra, indo pousar sobre as roupas do amado, perder-se em seus cabelos vermelhos, uma mais brilhante que a outra... De tão belas, de tão sofridas...

“Era o único jeito que poderia pará-lo, Hiei...”.

O olhar assustado do demônio de fogo pousou na face do dono da voz, e como suspeitou, era de Koema.

“O que faz aqui?” – perguntou baixo.

“Mestra Genkai me avisou”.

Hiei abaixou a cabeça para contemplar o amante, com certeza a velha sabia que isso viria a acontecer, até ele, estava preocupado que a saúde do ruivo afetasse por motivos do biorritmo, não era fácil controlar os próprios sentimentos, caso estes estejam completamente alterados...

“O lado ningen de Kurama é mais fraco que seu lado Youko... Sentimentos... Isso que o deixou fraco...” – comentou Koema.

Hiei não fitou o jovem, apenas suspirou.

“Talvez fosse seu sentimento que o manteve a meu alcance, e que o fez voltar ao que era, mesmo estando ferido...”.

Os dedos ágeis acariciavam a pele fria, admirando os detalhes que nunca se cansou de ver. Ele era belo mesmo estando machucado, os cabelos desgrenhados, as roupas rasgadas... E estava morto... Era muito frágil por ser Youko, as raposas não usam o corpo ou as mãos, usam vegetais para lutarem, pois são sensíveis... A natureza do Makai os fez surgir como belezas e não como rústicos yokais...

“Você veio leva-lo?”.

“Seu espírito não deixou o corpo, mas creio que ele esteja...” – Koema não concluiu a frase, para não tornar a situação mais triste para o amigo.

“Morrendo?...” – um sopro cheio de mágoa, Hiei olhou as próprias mãos, fechando o punho logo em seguida.

Não era sua intenção feri-lo gravemente, mas era o único jeito que deteria o Youko de sumir pela imensidão do Makai, e nunca mais conseguiria trazer sua raposa de volta... Agora se arrependia, talvez fosse melhor deixa-lo ir, mesmo que se separariam, mas seu amado estaria vivo...

“Me deixe sozinho...”.

Koema foi argumentar, mas resolveu não dizer nada, e fez o que achou melhor, deixando-o só com o ruivo.

O Koorime vislumbrou mais uma vez a formosura de ningen, quem conhecera, quem lhe mostrou a amizade, e quem lhe ensinou o que era o amor...Seria isso que estava sentindo, odiando a si mesmo por ser inútil, por não conseguir cuidar de seu amor, da pessoa que mais gostou, o que Kurama sentiu, quando estava quase morrendo? Ambos cometeram o mesmo erro... Esconder os problemas um do outro...

“Kurama... Perdoe-me...”.

 

 

“Kurama...”.

O ruivo lentamente abriu os olhos, sua vista demorou a acostumar com a escuridão, mas logo avistou a figura que o chamava. Sentou-se ainda confuso, perdido no que acontecia, e viu-se com vestes brancas de Youko, mas seu corpo continuava humano.

“Kuronue?”.

Erguendo-se desesperado, foi em direção ao antigo parceiro, mas antes de toca-lo para provar a si mesmo que estava delirando, viu uma pessoa se aproximar, e pela surpresa, era ele, como Youko. Já não entendia mais o que afinal estava acontecendo.

“Se um dia eu morrer... Viva por mim, não se esqueça...”.

“Por que diz isso?”.

“Porque não quero que morra comigo, me deixaria muito triste...”.

“Mas...”.

“Shiii...” – um beijo terno calou a raposa. “Você me pediria a mesma coisa...”.

Apenas se olhavam, se tocavam carinhosamente.

“Não quero outra pessoa, Kuronue...”.

“Não Kurama, ficaria feliz em morrer, sabendo que você encontrará a felicidade, e nunca se esquecerá de mim...”.

Um clarão afetou sua visão, e um calor no corpo lhe subiu até a face, como sendo arrastado para o fundo de um redemoinho, o ruivo gritou se agarrando ao que podia.

 

 

 

“Kurama!!”.

Um par de olhos verde se abriu assustados, e viu o rosto de Hiei, que o olhava cheio de amor, seus lábios expressavam um lindo sorriso. Estava agarrado às roupas dele, prendido em seus braços, e respirou aliviado, sorrindo meigamente para confortar o Koorime.

“Eu estou bem... Itoshi...”.

“Desculpe...”.

“Não foi sua culpa, eu deveria ter falado o que estava acontecendo...”.

Seus dedos se entrelaçaram e continuaram na contemplação muda um pelo outro, como se o fim de um conflito havia chegado ao fim. Querendo apenas apreciar o calor de seus corpos e a satisfação de compartilharem não apenas as coisas boas, mas estariam unidos até mesmo nos problemas mais difíceis...

“Hiei...”.

“Hn?”.

“Ai shiteru...”.

“Ai shiteru mo... Kurama...”.

 

 

A tarde estava gostosa ao retornarem para casa, andando de mãos dadas, pois já não havia quase ninguém nas ruas, e os poucos que ainda trafegavam pelas calçadas, eles não se importavam que olhassem o quanto se amavam, apenas sorriam como se fossem os únicos.

“Como está os ferimentos?”.

“Mestra Genkai tratou muito bem deles, não se preocupe...”.

A visão da casa fez Hiei suspirar.

“Acho que já está seguro agora...”.

Kurama parou em sua frente, com um sorriso malicioso nos lábios, os verdes de seus olhos num brilho encantador, denunciando as más intenções que corria em sua mente. Hiei apenas levantou uma sobrancelha, desconfiado. O ruivo chegou bem próximo, selando seus lábios e sentindo como seu koibito se entregava, ficando unidos num longo e terno beijo, seus braços envolveram ao corpo do outro, enquanto sentia ser tocado nos cabelos, sabia que Hiei ainda estava arrependido do que aconteceu, e aquele beijo demonstrava uma desculpa tímida.

“Não quero dormir sozinho hoje...” – murmurou entre o beijo.

O demônio de fogo sorriu cínico como de costume, seus olhos fitando o do amante, que agora, era quem estava desconfiado.

“Acho que tenho uma solução para isso...” – com um gesto, mostrou ao ruivo um cordão, contendo duas pedras preciosas. “É seu...”.

“Você as derramou...” – Kurama entristeceu. “Por minha culpa...”.

“Quando você acordou...” – com um movimento embaraçoso, voltou a face para o lado, tentando evitar o olhar interrogativo do amante. “Não foi de tristeza foi de... Outra coisa...”.

Kurama agarrou a face ruborizada do youkai enchendo de beijos, estava feliz, afinal, não é sempre que o emburrado amante lhe presenteava, ainda mais um presente tão íntimo e precioso, junto com uma declaração como a que ouviu. Tinha certeza de que a noite ia ser maravilhosa...

“Ei Kurama! Tá me sufocando!”.

O ruivo sorriu, finalmente estava livre do tormento que vez ou outra o perturbava, graças ao Koorime, mas sabia que não conseguiria se livrar de sua personalidade de Youko, este o incomodaria por toda vida, aliás, era sua personalidade também.

 

 

Andando calmamente entre as ramagens verdejantes, o Youko se aproximou do túmulo secreto, tocou com cuidado, para não desfazer nenhuma ramagem que o camuflava. Em suas mãos, um buquê de rosas coloridas, as mais belas que fez brotar. Pousou a oferenda ao solo, perto do tecido envelhecido que restara depois de séculos, e passou o resto do tempo olhando a vegetação, tranqüilo, como a conversar mentalmente com um amigo... Fechou os olhos e sorriu quando uma brisa tocou-lhe a face e foi-se suavemente, como num beijo repentino.

A culpa que trazia em seu íntimo, não existia mais, apenas a saudade de tempos felizes ao lado daquele que um dia conheceu, ainda residia lá no fundo, mas já sabia controlar as tristezas, e não tinha mais motivo para se condenar... As promessas feitas agora seriam cumpridas, sem rancor, sem feridas... Estava em paz consigo mesmo, e traria a paz para aquele que tanto lhe quis bem...

“Viva por mim...”.

“Finalmente entendi o seu pedido, meu Kuronue... Seu amor queria minha felicidade, e não o meu amor... Agora compreendo que para viver, não se pode se abdicar da felicidade, e que a felicidade maior é aquela que encontramos ao lado de outra pessoa... Sempre senti que após a sua morte, você estava sofrendo, tentando me alertar para o erro que insistia em cometer... Eu estava te deixando triste, pois não estava vivendo, e sim me acabando pouco a pouco... Como prometido, de tempos em tempos venho ao seu descanso, e trarei flores, para que se lembre de mim... Assim como lembrarei que te amei...”.

“Ai shiteru, Kitsune...”.

 

 

Fim

 

 


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