Por esta benignidade imerecida é que fostes salvos por intermédio da fé; e isto não se deve a vós, é dádiva de Deus. Não, não se deve a obras, a fim de que nenhum homem tenha base para jactância. ¾ Efésios 2:8, 9.
E |
MBORA o cristão não esteja debaixo da lei, isto não faz nem deveria fazer dele alguém sem lei. Pelo fato de estar sob a graça de Deus, sua liberdade da sujeição à lei deveria resultar, não na falta da justiça, mas numa justiça superior, uma justiça da parte de Deus, baseada na fé, no amor e na verdade, em vez de na obediência a um código religioso. Do mesmo modo, ser ele salvo à base da fé ao invés das obras deveria resultar, não em inatividade, passividade ou apatia, mas numa atividade superior, fluindo daqueles mesmos fatores.
Em ambos os casos, a diferença está na força motivadora. O espírito com que se faz as coisas é que é a chave da superioridade encontrada na liberdade cristã. É a diferença entre fazer algo com um sentimento de compulsão e fazê-lo espontaneamente, numa ação livremente praticada e de coração. A fé e o amor genuínos têm de brotar do indivíduo, e as ações de fé e amor têm de ser motivadas pelo íntimo, e não em resultado de pressões externas. O encorajamento, e mesmo a exortação, podem ser fatores positivos, benéficos; mas a pressão para amoldar-se a uma programação de atividades específicas atua contra esta motivação sincera.
Quanto mais estruturada e sistematizada é a programação e maior é a pressão externa aplicada, menos oportunidade haverá para que a fé e o amor se expressem espontaneamente. Estas oportunidades ficam, em muitos casos, essencialmente restritas. A qualidade e a natureza da motivação para quaisquer obras e ações que daí resultam precisam ser examinadas.
Qual é situação existente na organização religiosa das Testemunhas de Jeová neste respeito? A organização Torre de Vigia afirma crer no ensino bíblico de que somos salvos pela fé, não pelas obras. Mas será isto o que ocorre na prática? Já vimos a grande ênfase que se dá à submissão à autoridade centralizada, com a lealdade a ela e a suas diretrizes sendo igualadas à lealdade a Deus e a Cristo. Que efeito tem isto no modo como as Testemunhas de Jeová em geral encaram seu serviço a Deus, a Cristo e ao seu semelhante? Será este um efeito saudável, ou será, em última análise, algo que vai contra o princípio bíblico que agora consideramos?
Na maioria dos países as Testemunhas de Jeová são conhecidas pelo empenho em levar sua mensagem de porta em porta. As publicações da Torre de Vigia chamam regularmente a atenção para as centenas de milhões de horas gastas mundialmente pelos seus membros nesta atividade, que resultam na distribuição de centenas de milhões de exemplares de literatura. Alegam, assim, esmerar-se em seguir o exemplo de atividade dos cristãos do primeiro século, não só no zelo como no método utilizado ¾ as visitas de porta em porta ¾ e que isto é evidência de que eles, de todos os que professam o cristianismo, são os verdadeiros proclamadores atuais das boas novas.
Não há dúvida quanto ao fato desta atividade. A questão mais importante é: por que as Testemunhas de Jeová, qual comunidade religiosa, se empenham nesta atividade de testemunho público? É algo que decidiram fazer individual e livremente em resultado de uma convicção verdadeiramente pessoal, tendo o amor e a fé como a força motivadora que determina como, quando e até que ponto se empenharão nesta atividade? Está o encorajamento que recebem da organização livre da pressão coercitiva, seja explícita ou sutil? Ou, em vez disso, são os adeptos levados a sentir que o zelo na obra programada pela organização terá um efeito decisivo quanto a Deus conceder-lhes a salvação, de modo que se alguém deixa de dar forte apoio a esta programação é induzido a um incômodo sentimento de culpa?
Seja qual for o grau individual de genuína motivação das pessoas dentro dessa comunidade ¾ e sem dúvida nela existem algumas pessoas amorosas e motivadas de coração ¾ qual é a situação no que diz respeito à comunidade como um todo? Qual o espírito que predomina e qual o sentimento característico e a atitude gerada pela mensagem e pelas diretrizes da organização?
As evidências que respondem a estas perguntas partem de dentro da própria organização.
Normas e pressão de origem humana
Vê-se uma ilustração do espírito dominante dentro da organização na atitude demonstrada pelo Corpo Governante das Testemunhas de Jeová com respeito a certa matéria que fora originalmente elaborada para um livro, um comentário bíblico sobre a carta de Tiago.
O comentário fora redigido principalmente por Edward Dunlap, ex-secretário da escola missionária da Torre de Vigia, chamada Gileade, e um dos principais colaboradores do dicionário bíblico Ajuda ao Entendimento da Bíblia (agora intitulado Estudo Perspicaz das Escrituras). O próprio Ed Dunlap era uma Testemunha muito ativa. Durante os últimos cinco ou seis anos em que residi no complexo da sede de Brooklyn da Torre de Vigia, ocupei quartos próximos ao dele, e cada manhã de domingo, praticamente sem exceção, podia-se ver Ed e sua esposa dirigindo-se à estação do metrô, para ir à congregação Canarsie e participar com outros membros dela no “serviço de campo” em grupo. Neste aspecto ele era consideravelmente mais exemplar do que muitos membros do Corpo Governante.
Demonstrando que não acreditava num cristianismo passivo e apático, Ed Dunlap apontava, na introdução do seu comentário bíblico, que a carta do discípulo Tiago refutava o conceito de que a fé e as obras fossem, de fato, mutuamente excludentes, ou “que bastava ao cristão ter uma fé puramente intelectual.” E prosseguia dizendo daqueles que fechavam os olhos para o valor das obras:
Isto desconsideraria qualquer necessidade de a fé afetar o coração, e negaria que a fé tivesse poder para induzir alguém a mudar de personalidade e vida, e fazer algo a favor de outros, numa expressão positiva desta fé. Persistindo nessa idéia, eles ficariam iguais àqueles de quem Paulo disse que tinham “uma forma de devoção piedosa, mostrando-se, porém, falsos para com o seu poder.”¾ 2 Tim. 3:5.
. . . Tiago de modo algum estava dizendo que as obras em si podiam trazer a salvação. Não podemos inventar devidamente uma fórmula ou desenvolver uma estrutura pela qual possamos elaborar a nossa salvação. Primeiro precisa haver fé. Conforme Tiago salienta de maneira clara, as boas obras provêm espontaneamente do coração, com a motivação correta de ajudar as pessoas por amor e compaixão. A vida de Jesus é uma ilustração disso. A lei seguida pelo cristão é a “lei dum povo livre,” não um código de lei semelhante à lei mosaica. (Tia. 2:12; Rom. 2:29; 7:6; 2 Cor. 3:6) É a lei divina que está escrita no coração do cristão. ¾ Jer. 31:33; Heb. 8:10.1
Tinha sido bem difícil conseguir que o Corpo Governante todo concordasse com a recomendação do Departamento de Redação para a elaboração de um comentário bíblico, não só da carta de Tiago, mas qualquer comentário. Por alguma razão, certos membros pareciam achar isso uma iniciativa arriscada, expressando fortes reservas ou sentimentos negativos em relação ao projeto.2 Embora tendo sido eventualmente aprovado, publicado e incluído por algum tempo no programa de estudo da organização, este comentário (o único comentário bíblico produzido pela Sociedade) deixou depois de ser imprimido. Algo que ajuda a explicar o motivo foi uma decisão tomada com relação ao livro numa das reuniões do Corpo Governante.
No parágrafo seguinte ao dos pontos já citados, o livro, conforme escrito originalmente, prosseguia dizendo:
Conforme Tiago mostra, nenhum cristão devia julgar seu irmão, nem estabelecer normas humanas que ele deve seguir, embora possa incentivar o irmão e estimulá-lo a obras excelentes; e pode até mesmo repreender seu irmão, havendo um motivo bíblico definido e prova bíblica para aquilo que diz. (Tia. 4:11, 12; Gál; Heb. 10:24) Ao se realiza-rem obras corretas, devem ser executadas sob a orientação da consciência. O verdadeiro cristão não fará nada mecanicamente, nem precisa dum código pormenorizado de regras. Tampouco realiza suas obras devido à pressão de outros. O apóstolo Paulo destaca estes fatos em Romanos, capítulo 14. Portanto, quando alguém tem genuína fé viva, as obras excelentes seguir-se-ão razoavelmente. Serão obras boas, que Deus recompensará, porque são realizadas por devoção de coração. Mas, quem tentar obter a justiça por meio duma estrutura minuciosamente definida do que se deve fazer e do que não se deve fazer vai fracassar. Tal “justiça” é dos homens, não de Deus.
Assim era este parágrafo (da página 7) conforme originalmente aprovado pela Comissão de Redação do Corpo Governante, depois enviado para a gráfica de Brooklyn da Torre de Vigia e finalmente impresso em centenas de milhares de cópias. No entanto, além dos membros do Corpo Governante e de outras poucas pessoas, nenhuma Testemunha chegou a ver este texto, nem o encontrou em seu exemplar pessoal do livro. O motivo é que devido à oposição de certos membros do Corpo o parágrafo foi reescrito e as centenas de milhares de cópias já impressas foram destruídas, não apenas centenas de milhares de páginas, mas seções de 32 páginas cada.3 Por quê? Os pontos aos quais eles se opunham, e que foram finalmente alterados, são significativos pelo que revelam do modo de pensar dos próprios homens.
Considere este mesmo parágrafo conforme aparece no livro que finalmente foi publicado e distribuído (página 7).
[FOTOCÓPIA DA PÁGINA 7 DO “COMENTÁRIO À CARTA DE TIAGO”]
Conforme Tiago mostra, nenhum cristão devia julgar seu irmão, nem estabelecer normas humanas para obter a salvação, embora possa incentivar o irmão e estimulá-lo a obras excelentes; e pode até mesmo repreender seu irmão, havendo um motivo bíblico definido e prova bíblica para aquilo que diz. (Tia. 4:11, 12; Gál. 6:1; Heb. 10:24) Ao se realizarem obras corretas, devem ser executadas em acatamento da orientação da Palavra de Deus. O verdadeiro cristão não fará nada mecanicamente, nem precisa dum código pormenorizado de regras. Tampouco realiza suas boas obras só para agradar a homens. Portanto, quando alguém tem genuína fé viva, as obras excelentes seguir-se-ão razoavelmente, inclusive pregar e ensinar as boas novas do Reino. (Mat. 24:14; 28:19, 20) Serão obras boas, que Deus recompensará, porque são realizadas por devoção de coração. Mas, quem tentar obter a justiça por meio duma estrutura minuciosamente definida do que se deve fazer e do que não se deve fazer vai fracassar. Tal “justiça” é dos homens, não de Deus.
Certamente que, em si, esta versão final publicada do parágrafo nada tem de errado. A maior parte dela está igual à versão inicial. De fato, alguém poderia imaginar porque os membros do Corpo Governante se opuseram tanto à versão original ao ponto de ordenar a destruição de centenas de milhares de cópias da seção de 32 páginas. No entanto, fizeram-se mudanças sutis, e estas são significativas. Elas permitem compreender o raciocínio e o espírito que dominam muitos membros do Corpo Governante. Considere as mudanças feitas entre a redação original e a que finalmente foi publicada:
Original |
Revisada |
Conforme Tiago mostra, nenhum cristão devia julgar seu irmão, nem estabelecer nornas humanas que ele deve seguir . . . |
Conforme Tiago mostra, nenhum cristão devia julgar seu irmão, nem estabelecer normas humanas para obter a salvação . . . . |
Ao se realizarem obras corretas, devem ser executadas sob a orien-tação da consciência. |
Ao se realizarem obras corretas, devem ser executadas em acatamen-to da orientação da Palavra de Deus. |
Tampouco realiza suas boas obras devido à pressão de outros. O após-tolo Paulo destaca estes fatos no capítulo 14 de Romanos. Portanto, quando alguém tem genuina fé, viva, as obras excelentes seguir-se-ão ra-zoavelmente. |
Tampouco realiza suas boas obras só para agradar a homens. Portanto, quando alguém tem genuína fé viva, as obras excelentes seguir-se-ão razoavelmente, inclusive pregar e ensinar as boas novas do Reino. (Mat. 24:14; 28:19, 20) |
O erro do cristão tentar “estabelecer normas humanas [que um irmão] deve seguir” foi assim alterado para dizer “normas humanas para obter a salvação;” a referência ao papel da “consciência” ao realizar obras corretas foi eliminado, sendo posta em seu lugar a “orientação da Palavra de Deus;” a afirmação de que o cristão não realiza suas boas obras “devido à pressão de outros” foi mudada para “só para agradar a homens;” e todas as referências ao capítulo 14 de Romanos foram cortadas, inserindo-se em seu lugar a referência a “pregar e ensinar as boas novas do Reino,” apesar do fato de que na inteira carta de Tiago o próprio discípulo em parte alguma trata desta atividade de pregação, enquanto fala, de fato, é do cuidado com os órfãos e as viúvas, do respeito pelos pobres, de cuidar dos membros necessitados da congregação e de tratar corretamente os que trabalham, tudo isso em relação a mostrar o que é a genuína adoração cristã e ilustrar as obras da verdadeira fé, da misericórdia e do amor.
O que isto revela? É verdade que nenhum cristão tem o direito de estabelecer normas humanas “para obter a salvação.” Mas por que quiseram os membros do Corpo Governante limitar a questão a isto, e por que se opuseram à versão inicial que ampliava o assunto para quaisquer normas humanas que um irmão “deve seguir”? O motivo evidente é que durante décadas tem sido exatamente prática da organização criar tais normas humanas e insistir que todos se apeguem a elas, sendo que, muitas vezes, deixar de acatá-las resulta em desassociação.4 (E pode-se dizer que, quando se pune alguém com a desassociação por não acatá-las, a norma estabelecida torna-se, de fato, algo necessário “para obter a salvação.”)
O cristão, de fato, realiza obras corretas “em acatamento da orientação da Palavra de Deus,” como reza o texto modificado do livro. Mas por que eliminar do assunto a “consciência,” conforme a versão original? Em última análise não exerce a consciência da pessoa um papel vital quanto a decidir de que modo ela realizará certas obras, e até em ter convicção pessoal quanto a que obras específicas são as “obras corretas” e em harmonia com a Palavra de Deus? Então, por que a mudança? É porque durante décadas a organização destacou, não um cristianismo que reflete a firme convicção pessoal, mas um cristianismo que se distingue pela conformidade organizacional, em que a autoridade centralizada determina aos seus membros qual é exatamente a “orientação da Palavra de Deus” e que “acatamento” devem mostrar. O próprio exercício da consciência pessoal é visto como algo que deve ser controlado pela organização.
É verdade também que o cristão não realiza boas obras “só para agradar a homens.” Mas o que é que geralmente faz alguém sentir-se inclinado, e até sob compulsão, a agradar a homens? Não é a pressão, aplicada de vários modos, pressão do grupo, pressão baseada num sistema de recompensas, pressão do medo de ser visto como alguém que não corresponde às expectativas? Já que esta pressão está na raiz do problema de ‘agradar a homens,’ por que omitiu-se da versão original a referência à “pressão”? Quando se considerou este trecho, Jaracz, membro do Corpo Governante, recomendou esta mudança, dizendo achar que a “pressão pode ser algo bom.” E durante décadas a organização impôs pressão a seus membros, pressão para empenhar-se em atividades específicas da organização e para corresponder às normas humanas estabelecidas por ela, dando pouca ou nenhuma consideração à questão de a consciência individual da pessoa motivá-la a fazer isso ou não. Um dos meios principais de exercer esta pressão tem sido o uso da folhinha de “relatório de serviço de campo,” que toda Testemunha deve preencher mensalmente (incluindo o trabalho de porta em porta e atividades relacionadas) e entregar à congregação para anotação no “Cartão de Registro de Publicador,” mantido num arquivo que é examinado pelos anciãos e pelos “superintendentes de circuito” visitantes.
Será este o ponto de vista de alguém que deseja fugir à prática das “obras corretas,” que é deficiente em zelo ou orgulhoso demais para empenhar-se em certas atividades enfatizadas pela organização? É deste modo que o assunto é apresentado nas publicações da Torre de Vigia. Portanto, o livro de 1988 Revelação ¾ Seu Grandioso Clímax Está Próximo!, página 45, fala de:
. . . alguém [que] critica a maneira de Jeová mandar realizar sua obra, e apela para o espírito de a pessoa não gastar a si mesma, por afirmar que nem é bíblico, nem necessário ir de casa em casa com a mensagem do Reino. A participação em tal serviço, segundo o exemplo de Jesus e dos seus apóstolos, os manteria humildes; mas, eles preferem separar-se e folgar, talvez apenas ocasionalmente lendo a Bíblia como grupo particular. (Mateus 10:7, 11-13; Atos 5:42; 20:20, 21)
Um artigo na revista Despertai! de 22 de maio de 1990, sobre “Cinco Falácias Comuns” utilizadas na argumentação, alista a primeira como “Atacar a Pessoa.” Nas páginas 12 e 13 diz que:
Este tipo de falácia tenta refutar ou desacreditar um argumento, ou uma declaração, perfeitamente válido, por meio dum ataque irrelevante contra a pessoa que o apresenta.
. . . Quão fácil é rotular alguém de “burro”, de “louco”, ou de “desinformado”, quando ele ou ela diz algo que não desejamos ouvir. Uma tática similar empregada é atacar a pessoa com uma dose sutil de insinuação...
Mas, ao passo que os ataques pessoais, sutis ou não tão sutis, podem intimidar e persuadir, eles jamais refutam o que foi dito. Assim, esteja alerta contra esta falácia!
Foi exatamente esta tática falaciosa que o redator da Torre de Vigia usou no trecho já citado do livro Revelação. Quão fácil é, sem dúvida, rotular uma pessoa como crítica “da maneira que Jeová manda realizar sua obra,” que apela “para o espírito de não gastar a si mesma,” que não é “humilde,” preferindo “separar-se e folgar” quando esta pessoa apresenta evidência bíblica contrária às afirmações da Sociedade. É bem mais fácil fazer uso de rótulos e insinuações do que responder a argumentos bíblicos, que constituem a verdadeira questão.
Que este conceito desdenhoso é falso pode-se ver num outro exemplo, anterior, que foi debatido pelo Corpo Governante. Tinha a ver com os principais meios usados pela Sociedade para assegurar que as Testemunhas gastem regularmente uma parte de seu tempo na distribuição das publicações da organização de porta em porta.
Em 1971 estava sendo elaborado um manual da organização intitulado Organização Para Pregar o Reino e Fazer Discípulos. O projeto estava sob a direção de Karl Adams, então superintendente do Departamento de Redação da sede internacional. Era inegável que, nesse período, ele tinha posição próxima a de Fred Franz na sede mundial, sendo encarregado pelo presidente Knorr do conteúdo das publicações da organização. É verdade que, na prática, Fred Franz era a única fonte de “novas luzes” e, exceto nos raros casos de veto do presidente Knorr, ele era o árbitro final em assuntos bíblicos. Não obstante, no dia a dia e com relação ao grosso das coisas publicadas, Nathan Knorr efetivamente apoiava-se mais em Karl Adams que em Fred Franz.5 Ele confiava muito no critério de Karl, e este era inegavelmente uma pessoa mais prática que o vice-presidente. As designações de Karl não vinham do Corpo Governante, mas diretamente do presidente Knorr. O próprio Knorr designava os que deviam redigir os artigos principais (chamados “artigos de estudo”) de A Sentinela. Todas as outras designações de redação para os homens do Departamento de Redação da sede vinham por meio de Karl, e geralmente partiam dele, embora não fosse membro do Corpo Governante nem professasse ser “ungido.” No projeto mencionado, ele selecionou e designou Ed Dunlap e a mim (então membro do Corpo Governante) para trabalhar com ele na elaboração do manual da organização, cada um de nós devendo escrever cerca de um terço da matéria. Vale a pena observar que nós três éramos constantes em participar do “serviço de campo” e assistir às reuniões.
Quando o projeto estava quase concluído, Karl Adams fez uma carta ao presidente Knorr, pedindo orientação em pontos específicos. Embora tratasse do que nós três estávamos elaborando, a carta, de 18 de novembro de 1971, não foi obra conjunta de nós três. O texto era do próprio Karl Klein. Ele era o superintendente do Departamento de Redação designado pelo presidente, e Ed Dunlap e eu éramos seus subordinados nesse departamento. Não estava, portanto, sob pressão alguma para tratar do que tratou ou para apresentar a informação do modo que apresentou. Creio que Karl admitiria honestamente este fato. Observe, então, o que ele escreveu ao presidente Knorr sobre os efeitos que o uso da folhinha de relatório tem individualmente sobre as Testemunhas, conforme apresentada num trecho de sua carta com o tópico “Relatar Serviço de Campo”:
Atualmente relatamos livros, folhetos e revistas colocados, junto com as assinaturas obtidas. O resultado é que, com demasiada freqüência, os publicadores [as Testemunhas individualmente] medem o seu “êxito” em termos de colocações. A literatura é um auxílio maravilhoso para ajudar as pessoas a aprender a verdade, mas os publicadores ficam muitas vezes inclinados a encarar a colocação como o “alvo” deles. Quando encontram alguém que já tem literatura, em vez de concentrar a atenção na obra vital de fazer discípulos, inclinam-se a pensar em termos de que nova publicação eles tenham para poder colocar com a pessoa. [Por quê?] Eles sabem que a congregação vai fazer um registro do que colocam individualmente. Isto influencia o uso que fazem da literatura. Também, o fato de relatarem o que colocam influencia a base sobre a qual os servos [anciãos] tendem a elogiar o trabalho feito pelos publicadores. Não há relatório do amor demonstrado aos outros irmãos, ou de como alguém desempenha as responsabilidades cristãs em seu lar, ou de como manifesta os frutos do espírito, de modo que a tendência é de enfatizar o valor destes números no cartão de registro de publicador além do que se devia.
Poucas Testemunhas discordariam das observações de Karl Adams, pois sabem que é verdade. Karl pedira observações a Ed Dunlap e a mim e nós comentamos especialmente os problemas bíblicos da norma dos relatórios. Alguns destes comentários se refletem no que Karl continuou escrevendo. Seria um erro, porém, presumir que o que ele escreveu não refletia seu próprio pensamento acerca do assunto. Os que o conhecem sabem que ele não é alguém que facilmente aceita opiniões de outros e as apresenta como dele mesmo, especialmente as de seus subordinados. Não apenas são de Karl Klein as palavras que seguem, como também são dele os pensamentos que expressam, pois em sua essência, foi o que ele discutiu conosco. Fiquei, de fato, surpreso pelo grau de franqueza manifesto na carta. Karl escreveu:
Reconhecidamente, todo o nosso arranjo de relatórios de serviço de campo vai além do que a Bíblia exige dos cristãos. Sendo assim, tudo que se fizer quanto a relatórios deve ser feito evitando o choque com as palavras do conselho de Jesus, a saber: “Tomai muito cuidado em não praticardes a vossa justiça diante dos homens, a fim de serdes observados por eles.” (Mat. 6:1) Também, em 2 Coríntios 10:12 Paulo advertiu contra a pessoa exaltar-se por meio de comparações. (Veja também Gálatas 5:26.) No entanto, manter um registro de colocações tende a fazer os publicadores pensarem nesses termos. Com bem se sabe, os servos [superintendentes] de circuito têm desanimado servos [anciãos] congregacionais esforçados por pressioná-los em questões ligadas a seus relatórios de serviço de campo, quando estes estão, na verdade, fazendo tudo para pastorear o rebanho ¾ mas, essas horas, naturalmente, não aparecem no relatório. E, quando discursa para toda a congregação, o servo [superintendente] de circuito enfatiza mais a colocação de 12 revistas por publicador do que a existência de genuíno amor cristão na congregação.
O efeito disto sobre a Testemunha individual? O memorando de Karl Adams afirma:
Este ponto de vista obscurece o apreço da pessoa pelo que a Bíblia realmente diz: Romanos 15:1 refere-se ao fato de que os que são fortes devem auxiliar os que não são fortes. O contexto trata da fé da pessoa. Mas os servos [anciãos] foram treinados para aplicar isto no sentido de ajudar os publicadores cujos relatórios de serviço de campo estejam fracos. E quando usam os textos que falam de “obras excelentes,” como o de Tito 2:14, estão mais propensos a pensar principalmente no que aparece no relatório de serviço de campo, mas a pregação pública da palavra é apenas uma pequena parte do quadro, como mostra o contexto. (Veja Tito 1:16; 2:5; 3:15.)
Com certeza, estes comentários ilustram graficamente que, contrário à revisão feita pelo Corpo Governante no comentário de Tiago, “normas humanas” foram estabelecidas, e que são agora um fator de controle do que a Testemunha individual entende como “orientação da Palavra de Deus.” Estas exercem grande pressão sobre os membros da organização para que se sujeitem a tais normas humanas e busquem cumpri-las, mesmo às custas de obras claramente estabelecidas nas Escrituras. Embora esta carta do chefe do Departamento de Redação tenha sido escrita em 1971, as Testemunhas sabem que pouca coisa mudou; a situação nos anos 90 permanecia a mesma. A única coisa que talvez tenha mudado é que poucas pessoas hoje, provavelmente nem mesmo Karl Adams, se sentiriam à vontade para escrever de modo tão franco quanto ele.
A carta de Karl Adams foi trazida pelo presidente Knorr a uma reunião do Corpo Governante. Embora Karl tivesse especificamente sugerido que os membros reservassem tempo para ler e avaliar em particular seu conteúdo, os demais membros do Corpo Governante, com exceção de mim, não tinham visto a carta de antemão, e perderam assim a valiosa oportunidade de pensar em seu conteúdo ou examinar os textos citados e meditar neles. Estes pontos bíblicos, de fato, bem como o conhecido efeito prejudicial da norma dos relatórios entre as Testemunhas, recebeu pouca consideração na reunião e a decisão do Corpo foi de continuar com a prática tradicional da organização. Karl Adams não ficou surpreso. Ed Dunlap e eu também não.
Os tópicos tratados na carta deste superintendente designado da organização, ocupando o posto sensível de chefe do Departamento de Redação, são declarações que não aparecem nas publicações da Torre de Vigia. As preocupações expressas de modo tão veemente em seu memorando sequer são admitidas. Todavia, sua validade é inegável. Embora reconheça a veracidade das observações feitas, a maioria das Testemunhas teriam receio de falar delas abertamente hoje. Fazê-lo seria expor-se a acusações de deslealdade, de falta de humildade e, portanto, de serem orgulhosas demais para empenhar-se nas atividades especificadas pela autoridade central. Como foi dito, duvido seriamente que o próprio Karl Adams (ainda um membro destacado do Departamento de Redação) se sentisse à vontade atualmente para expressar suas opiniões como fez antes, não por ter mudado de idéia quanto à validade de suas observações, mas por causa das desagradáveis conseqüências que provavelmente viriam.
É inquestionável que, de todas as “obras” a que se exortam as Testemunhas de Jeová, a principal é a atividade de casa em casa com a literatura da Sociedade. Nenhum outro serviço é tido como tão indicativo e tão determinante, da lealdade e devoção de alguém a Deus. Quais são seus antecedentes?
Nos primeiros tempos
A evidência é de que fatores combinados de produção em massa e distribuição em massa de literatura tiveram grande papel em fazer desta atividade um aspecto destacado do programa de obras da organização. Durante a presidência do fundador do movimento, Charles Taze Russell, a impressão de toda a literatura da Torre de Vigia era feita por gráficas de fora. Nas quatro primeiras décadas da história da organização, a distribuição de literatura era feita em grande parte por algumas pessoas que davam tratados gratuitos (geralmente em frente às igrejas nos domingos) e por um número limitado de “colportores” que recebiam a literatura com desconto e a vendiam de porta em porta ou do modo que preferissem.
No início da presidência de J. F. (Juiz) Rutherford, a organização implantou suas próprias instalações gráficas. Daí em diante, a Sociedade Torre de Vigia deu ênfase crescente ao “serviço de campo,” isto é, ir de porta em porta oferecendo literatura ao público (não se faz distribuição por meio de livrarias, onde as pessoas procuram livros por iniciativa própria).
Em seu livro patrocinado pela Sociedade, Faith on the March (A Fé em Marcha), A. H. MacMillan, membro do pessoal da sede ativamente associado com o movimento desde a virada do século, descreve a mudança de abordagem que se deu, dizendo:
Russell deixara muito a critério do indivíduo a questão de como devíamos cumprir nossas responsabilidades . . . Rutherford queria unificar a obra de pregação e, em vez de deixar cada indivíduo dar sua própria opinião e dizer o que ele mesmo tinha em mente, o próprio Rutherford gradualmente passou a ser o principal porta-voz da organização. Era deste modo que ele achava que a mensagem podia ser melhor apresentada e sem contradições. Ao mesmo tempo começamos a perceber que cada um de nós tinha a responsabilidade de ir de casa em casa e pregar.
Mostraram-nos que era um arranjo mantido por um pacto. Tínhamos um dever para com Deus, bem como um privilégio e um dever de fazer com que nossos semelhantes fossem informados dos propósitos de Deus. O favor e a aprovação de Deus não seriam ganhos por meio do desenvolvimento do “caráter.” Em 1927 nos mostraram que o modo de cada pessoa servir era por ir de casa em casa. O domingo era especialmente destacado como o dia mais oportuno para se encontrar as pessoas em casa.6
O pensamento e a expressão individuais quanto a ‘cumprir nossas responsabilidades para com Deus’ passaram assim a ser depreciados e ter conotação negativa, e a sujeição à organização foi enfatizada como meritória. O dever do indivíduo ‘para com Deus’ e ‘o modo de servir’ foi claramente delineado: “ir de porta em porta” com a literatura da Torre de Vigia. Os associados da Torre de Vigia (ainda não conhecidos como Testemunhas de Jeová, nome adotado em 1931) logo passaram a referir-se a esta atividade de porta em porta como “serviço,” pois esse era ‘o meio de servir a Deus.’ O termo foi sempre entendido deste modo; se usado em outro sentido ele era especificado, como por exemplo, “serviço de Betel.” Mas “serviço” em si, naquela época, relacionava-se sempre ao trabalho de porta em porta, e nunca a outras atividades ligadas à adoração. Sob a direção da organização este tornou-se, sem dúvida, o modo proeminente de servir a Deus. O adepto da Torre de Vigia que, numa manhã de domingo, passava uma hora ou mais nesta atividade de porta em porta voltava para casa com a sensação de ter cumprido seu dever, seu serviço a Deus ¾ pelo menos por aquela semana.
Rutherford, antes de fazer parte do movimento dos “Estudantes da Bíblia” (Torre de Vigia), mostrara interesse na atividade política. O efeito destes antecedentes pode ser visto na terminologia que se desenvolveu. Já vimos que ele deu grande ênfase à “organização,” de modo que este termo veio a substituir o termo bíblico “congregação” quando se referia à comunidade mundial das Testemunhas, enquanto as congregações eram individualmente chamadas de “companhias.” Exemplos mais significativos, porém, podem ser vistos na criação de termos tais como “campanhas,” para referir-se a atividades especiais de “testemunho” em certos períodos designados. Nestas “campanhas” (em alguns casos chamadas “campanhas divisionais”) grande número de pessoas era exortado a participar e assim contribuir para o impacto da “publicidade” da mensagem anunciada. A folha mensal de instruções para o “serviço de campo” chamava-se “Boletim.” Os que participavam da atividade eram chamados “trabalhadores de classe” (depois “publicadores”) e “pioneiros” e designavam-lhes “territórios” para serem cobertos. Grupos de “publicadores” trabalhavam sob a direção de um “capitão” de serviço de campo.
Não há evidência de que o próprio Rutherford participava neste trabalho de porta em porta. Com base em declarações de meu tio, Fred Franz, e de outros que trabalhavam na sede durante a presidência de Rutherford, parece que quando se indagava a esse respeito a resposta era que ‘suas responsabilidades como presidente não lhe permitiam empenhar-se nesta atividade.’ Portanto, o mais que ele podia dizer era: “Façam o que eu digo,” mas não “Façam o que eu faço.”
O livro As Testemunhas de Jeová no Propósito Divino (em inglês) mostra que em 1920 introduziu-se algo novo para ressaltar o foco que então se dava a este trabalho:
A acentuação da responsabilidade de pregar começou em 1920, quando pediu-se a todos da congregação que participavam na obra de testemunho que entregassem um relatório semanal.7
Os intervalos de tempo para entregar relatório daí em diante variaram entre semanal, mensal e quinzenal, mas o destaque dado à atividade de pregação de porta em porta, uma vez iniciado, continuou a crescer. Junto com a ênfase à conformidade organizacional e à uniformidade de pensamento e ação, o destaque à atividade de porta em porta e à entrega de relatórios é um dos maiores legados da presidência de Rutherford, que permanece até o dia de hoje.
Abordagem do tipo empresarial
Com a morte de Rutherford e sua substituição por Nathan Knorr iniciou-se uma nova era de expansão. Ao passo que a presidência de Rutherford teve uma coloração política, a presidência de Knorr refletiu sua abordagem de empresário. (Nathan disse uma vez a Ed Dunlap que se não tivesse seguido uma carreira religiosa ele teria apreciado ser gerente de uma grande loja de departamentos (como a Wanamaker’s, de Nova York.) Ele expandiu e modernizou amplamente as instalações gráficas de Brooklyn e abriu muitos novos escritórios de filiais internacionalmente, expandindo as já existentes e estabelecendo modernas unidades impressoras em muitos dos maiores países do mundo. Sob a direção dele, a Sociedade Torre de Vigia tornou-se uma das maiores organizações editoriais da face da terra. A impressão inicial de uma nova publicação em inglês chegava regularmente a um milhão de exemplares ou mais.
Esta vasta capacidade impressora representava um “apetite” a ser saciado, e eu pessoalmente ouvi Nathan e outros do alto escalão dizerem: “Temos de manter estas prensas ocupadas.” Equipamento parado representava despesa. O meio de manter as gráficas ocupadas era passar adiante o que elas produziam e abrir espaço para publicar mais, geralmente com o “lançamento” de um ou mais novos livros por ano. O escoadouro principal desta corrente de publicações tem sido a atividade de porta em porta das Testemunhas. Junto com as “quotas” de horas que se tinha de cumprir se quisesse ser exemplar, criaram-se “quotas de revistas” para os “publicadores de congregação,” sendo cada um exortado a distribuir 12 exemplares por mês.8
A folhinha de relatório tem sido sempre um meio importante de manter esta atividade num alto nível. A idéia (muitas vezes expressa) de que estes relatórios são necessários para a organização saber como planejar sua atividade de impressão é uma ficção. Nenhuma gráfica da Sociedade depende destes relatórios, pois não se calcula a demanda pelo ‘relatório de campo’ mas pelos relatórios de inventário de seus próprios departamentos de expedição e pelos relatórios mensais de inventário recebidos das filiais.9
Após anotados no “Cartão de Registro de Publicador,” os relatórios individuais de “serviço de campo” são tabulados e compilados todo mês por cada congregação e enviados à sede da organização em Brooklyn ou, fora dos Estados Unidos, a um dos escritórios de filial.10 Cada filial envia a Brooklyn relatórios mensais que tratam principalmente desta atividade de publicação (horas de “serviço de campo,” movimento de literatura, relatórios financeiros relacionados). Estes são compilados num relatório mundial, que é estudado e analisado em busca de sinais de enfraquecimento. Nenhuma outra atividade espiritual ou aspecto da vida cristã é objeto de escrutínio comparável ou preocupação tão constante. O relatório é tido como o principal barômetro da “saúde espiritual” dos membros. Os anciãos congregacionais sabem que números baixos em qualquer aspecto da atividade de “serviço de campo” da congregação serão inevitavelmente trazidos à sua atenção pelos representantes viajantes (superintendentes de circuito e de distrito), cabendo a eles mesmos a responsabilidade de cuidar para que o relatório melhore. O grau em que eles próprios participam nesta atividade muitas vezes determina se conservarão ou perderão o cargo de ancião. As filiais em todo o mundo recebem “visitas de zona” anuais dos membros do Corpo Governante e outros representantes, e estas visitas focalizam especialmente esta atividade de “serviço de campo” e o grau de êxito da Comissão de Filial em promovê-la.
Em vista disso tudo, pode-se entender por que o memorando do chefe do Departamento de Redação, Karl Adams, ao presidente Knorr, e as preocupações nele expressas tinham fundamento. Poucas Testemunhas, porém, imaginam que os pontos abordados nesse memorando de 1971, foram depois muitas vezes mencionados por anciãos ativos e responsáveis, bem como por representantes viajantes preocupados, e que as declarações deles foram trazidas várias vezes à atenção do Corpo Governante ao longo dos anos.
Sobrepõem conceitos da organização aos termos bíblicos
Seis anos após o Corpo Governante ter considerado a carta de Karl Adams, um ancião de Nova Jersey escreveu ao Corpo Governante. Tinha 40 anos de associação ativa, e durante 35 destes anos servira em cargos de responsabilidade congregacional, tais como “servo” ou “ancião.” Sua carta expressava a preocupação quanto à “posição forte, quase exigente, tomada com relação ao ministério externo de ‘serviço de campo.’” Quanto às razões da preocupação ele dizia:
É muito interessante que, em todas as epístolas escritas às primitivas congregações cristãs, não encontro nenhum trecho sobre “serviço de campo” dirigido às congregações. Nenhuma das passagens que tratam de “obras excelentes” enviadas às congregações dão alguma evidência de estarem relacionadas com a atividade de pregação congregacional. E mesmo os textos que são constantemente citados em apoio não dão evidência de estarem relacionados com a atividade de pregação congregacional.
Como um exemplo: a publicação usada na Escola do Ministério do Reino [um curso para anciãos], na página 44, fala sobre os anciãos tomarem a dianteira na evangelização. Em apoio cita-se 1 Pedro 5:2, 3. Mas embora o texto de fato encoraje os anciãos a serem exemplos para o rebanho, em parte alguma menciona a obra de pregação, nem mesmo por inferência. O “exemplo” a que se referem . . . aparentemente se relaciona com as coisas incluídas nos versículos, isto é, “pastorear,” ser “espontâneos,” fazê-lo “não por ganho desonesto,” e “não dominando sobre o rebanho,” etc. Prosseguindo, o texto faz referência à “sujeição,” e à “humildade mental” . . . o texto usado em apoio de modo algum trata deste assunto.
Seguindo esta linha de raciocínio, o livro cita Efésios 5:15, 16 e 1 Tessalonicenses 5:12, 13, para provar que os irmãos se beneficiam quando observam os anciãos “trabalhando arduamente” na pregação do Reino no campo. Mais uma vez, as palavras “trabalhando arduamente,” que aparecem no último texto, e “comprando o tempo oportuno” conforme aparecem no primeiro, não fazem nenhuma referência à pregação de campo externa. Em vez disso, o incentivo parece ser com relação ao serviço e exemplos internos da congregação.11
A carta dele tratava do ensino bíblico em Primeira aos Coríntios, capítulo 12, onde há diversificação de dons espirituais e variedade de ministérios, todos apresentados como desejáveis e importantes. Este ancião então externou o que muitas Testemunhas refletivas sentem mas têm receio de expressar, dizendo:
Isto não quer dizer que a pregação do Reino seja errada ou desnecessária hoje. Mas em vista destes fatos, devemos fazer empenho tão evidente nesta direção ¾ tornando isto a coisa principal diante dos irmãos, como temos feito? Devemos estar tão estruturados a ponto de colocar certos alvos para os irmãos e fazer todo tipo de arranjos para feriados e períodos de férias, e de jogar sobre eles, de outras maneiras, uma responsabilidade implícita não especificada nas Escrituras (sem falar no corpo de servos que deve fazer arranjos, encorajá-los e liderá-los neste aspecto)? Deveria ser nossa função constantemente pressionar nossos irmãos, sutil ou expressamente, em nosso esforço sincero de propagar a mensagem do Reino? Na realidade, isto é o que tem sido e está sendo feito.12
A carta chegou a uma das reuniões do Corpo Governante. O autor era um ancião antigo, fiel e ativo, e dera base bíblica para sua preocupação. A atitude demonstrada pelo Corpo Governante foi típica. Fizeram-se perguntas acerca do próprio homem, se algum dos membros do Corpo o conhecia (um ou dois deles o conheciam), qual era a reputação dele, e a carta foi devolvida ao Departamento de Redação para ser respondida. Não houve praticamente discussão alguma nem da matéria da carta nem do principal, as razões bíblicas delineadas. Aquilo simplesmente não era o que a autoridade queria ouvir.
“Cargas pesadas” ¾ por que são pesadas?
Ao ler tais cartas, vêm à mente as palavras de Jesus quando falou dos líderes religiosos de seus dias: “Amarram cargas pesadas e as põem nos ombros dos homens, mas eles mesmos não estão dispostos nem a movê-las com o dedo.”13 Recordo que uma vez achei difícil entender que Jesus descrevesse as tradições impostas pelos fariseus e outros como um “fardo” penoso. Muitas das tradições envolviam coisas simples como lavar as mãos, pratos e copos. Outras simplesmente exigiam não fazer certas coisas, como refrear-se, no Sábado, de determinadas atividades que as regras tradicionais dos líderes religiosos classificavam como “trabalho” ou labor.14 O que havia de tão penoso, então, em se lavar as mãos ou se refrear de certo trabalho?
Analisando a questão, porém, tornou-se claro que o fator realmente penoso era que a justiça deles estava sendo julgada nesta base. Não era meramente fazer ou não fazer que causava este peso tão opressivo. Era ter de ajustar-se aos padrões de homens imperfeitos, padrões que eram impostos pela autoridade eclesiástica.15 Era estar constantemente conscientes que não sujeitar-se resultaria em sua devoção a Deus ser posta em dúvida, resultaria em serem vistos como fracos na fé e na justiça, como pessoas carnais, não espirituais. Se fossem conscienciosas, isto seria doloroso. Isto os estorvava e restringia no exercício de sua consciência. Ficavam presos a um arreio humano, com relação a servirem a Deus. Por se submeterem a isso, o serviço que devia alegrá-los tornou-se uma carga enfadonha presa em seus ombros, carga da qual jamais pareciam ter alívio. Que contraste, então, com o convite feito pelo Filho de Deus:
Vinde a mim, todos vós que estais cansados sob o peso do fardo, e eu vos darei descanso. Tomai sob vós o meu jugo e sede discípulos meus, porque eu sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para as vossas almas. Sim, o meu jugo é fácil de carregar e o meu fardo é leve. ¾ Mateus 11:29, 30, Tradução Ecumênica.
Qualquer um que aplique estes princípios bíblicos à situação existente entre as Testemunhas de Jeová acabaria sendo julgado pela organização por querer esquivar-se da obrigação de participar da “pregação do Reino,” sendo acusado até de “apostasia.” No entanto, de modo paralelo, não é que a atividade de ir de porta em porta seja em si uma ação tão pesada (de qualquer modo, a maioria das Testemunhas faz isso de modo bem rotineiro). Tampouco é o simples ato de preencher uma folhinha de relatório mais difícil do que lavar as mãos antes de comer. O fardo está no significado que a organização atribui a estas coisas, o modo como são utilizadas como indicadores da sinceridade da devoção a Deus. E o testemunho dos próprios representantes da organização demonstram que os princípios bíblicos certamente se aplicam.
Declarações de anciãos conceituados e ativos
Em 10 de fevereiro de 1978, a Comissão do Departamento de Serviço enviou cartas a vários anciãos respeitados em diferentes partes dos Estados Unidos. Pediam que comentassem certos assuntos, inclusive os efeitos dos arranjos existentes de serviço de campo. Alguns destes tinham sido representantes viajantes (superintendentes de circuito e distrito) da organização mas eram agora chefes de família, e havia interesse em saber como encaravam as coisas na sua nova posição. Em muitos casos, seus comentários foram do tipo que a maioria das Testemunhas de Jeová só expressaria para amigos de confiança, para não serem rotulados como “não-espirituais” e “desleais.” Tenho plena certeza de que se estes homens não tivessem sido especificamente convidados a expressar seus pontos de vista pelo Departamento de Serviço, eles teriam hesitado bastante em fazê-lo.
Um ancião dum estado do nordeste dos EUA, que fora membro da equipe da sede, em resposta às perguntas do Departamento de Serviço, incluiu estas declarações acerca do uso da “folhinha de relatório”:
Muitos irmãos de fato se ressentem do requisito de relatar as horas, que se transforma, dum ato muito pessoal de adoração, numa entediante rotina organizacional. Se alguns partricipam na atividade de porta em porta ou outras atividades meramente para relatar horas, então este relatório provavelmente não valha o papel em que é escrito. Se o publicador participa no serviço devido a seu amor a Jeová e às “ovelhas,” e devido à alegria que sente neste ato pessoal de adoração, ele certamente continuará então a praticá-lo sem a “pressão do relatório.”
Se estamos apoiando um certo número de “publicadores” devido à “pressão” do relatório, que valor então tem o relatório? Se abandonarmos a prática de relatar horas e constatarmos que muitos largaram o serviço de campo, devemos nos perguntar primeiramente quão sincero e útil era o serviço deles neste respeito.16
De um estado do sul veio a resposta de outro ancião. Este, quando jovem, fora pioneiro durante todas as férias do secundário. Entrara no “Serviço de Betel” após se formar (aos 16 anos), e ao deixar este logo entrou no “serviço de pioneiro,” daí no “serviço de pioneiro especial,” tornou-se superintendente de circuito, depois superintendente de distrito, e na ocasião em que escreveu, estava no trabalho de “circuito substituto” para a organização. Conforme diz: “Por todos os padrões eu era considerado um ‘homem do campo.’ Para mim, o campo é mais fácil que arregaçar as mangas e lidar com os muitos problemas exaustivos que temos.” Agora, já pai de dois filhos, ele escreveu:
Grande número de publicadores [Testemunjhas] que conheço dizem sentir-se constantemente culpados por não fazerem mais na atividade de campo. Muitos bons cristãos que provavelmente fazem de modo realista tudo que podem, vivem com abjeta culpa. Acham pouca alegria em suas vidas. O serviço tornou-se tão complexo, tão altamente estruturado e organizado que que muitos acham que não estão servindo a Deus a menos que vão à reunião para o serviço de campo, batam às portas com um sermão (sim, sermão) e coloquem literatura. Seu êxito ainda é medido em números devido ao sistema de relatórios, apesar de todos os esforços contrários . . .
Com a impressão mental de que o serviço tem de ser altamente estruturado, esquece-se a modalidade natural e gratificante de serviço, o testemunho informal na vida diária da pessoa e/ou as visitas às pessoas que se conhece. Nossos irmãos em geral consideram, de certo modo, que apenas falar sobre o Reino não constitui um serviço real, verdadeiro. Não se valoriza a simplicidade . . .
Cada vez mais publicadores questionam a razão da existência do cartão de registro de publicador, e, nos últimos anos, acho cada vez mais difícil justificá-lo biblicamente. Deve-se admitir que isto resultou numa série de problemas firmemente arraigados . . . Em grande parte, o padrão de medir o cristianismo por horas/colocações é ainda estabelecido por superintendentes viajantes que são quase que exclusivamente orientados para o serviço de campo.
Podemos fazer os publicadores ir ao campo por meio de apertos de mão, um pouco de pressão, um pouco de indução ou apelo aos sentimentos de culpa, e todavia a dua experiência nos mostra que isto não os torna espiritualmente fortes . . .
Igualmente revelador é este trecho da reação de um ancião de Saint Paul, Minnesota, que escreveu:
Outro problema que existe mas do qual não se fala abertamente é o conceito que os irmãos, em geral, têm dos superintendentes viajantes e dos de Betel [a sede internacional]. Como servi no trabalho de circuito por vários anos e agora sirvo como ancião em uma congregação, vi ambos os lados. Mas há sentimentos muito fortes de que os superintendentes viajantes e os irmãos de Betel, incluindo o Corpo Governante, “não entendem os problemas da pessoa comum da organização.” Acha-se que estes irmãos vivem “protegidos” e que as decisões são tomadas por homens que não estão realmente a par dos problemas. Existe a forte impressão de que estes irmãos “têm tudo nas mãos,” “não trabalham para ganhar a vida,” “não sabem do que se passa,” etc. A luta para se manter é um tremendo fardo sobre os irmãos, e aquilo que recebem como conselho não é visto como espiritualmente estimulante, mas como o conselho vindo de uma organização de homens sentados em Betel, que não são realistas e não avaliam as pressões da vida diária por não sentirem tais pressões. Mais uma vez, não se fala abertamente deste tipo de coisa, mas ela existe . . .
Um memorando de 29 de dezembro de 1976, enviado à Comissão de Serviço do Corpo governante por Robert Wallen, secretário dessa comissão e dos Escritórios Executivos, ilustra a validade da citação anterior, além de levar a questão um pouco mais longe. Robert Wallen escreve:
Muitos de nós, inclusive eu mesmo, já que tenho o privilégio de estar ligado a alguns assuntos de serviço aqui em Betel, que dizem a outros o que fazer, como gastar tempo no campo, ir de casa em casa, em revisitas e estudos bíblicos, verificamos que não conseguimos fazer aquilo que pedimos que nossos irmãos façam. Podemos desculpar a nós mesmos por causa de nossas designações em Betel. Mas se vamos julgar outros à base de um cartão que mostra quanto tempo eles gastam no campo, temos de estar dispostos a ser julgados pelo mesmo cartão, pelo mesmo padrão. Pergunto-me se temos receio de que, se não julgarmos desta forma na questão das horas, absolutamente nenhum serviço de campo será feito, porque precisamos de “alvos” como incentivo para fazer as pessoas pregarem . . . Jesus disse que a “verdade vos libertará.” Ele disse que seu jugo era benévolo e sua carga leve. Seu apóstolo Paulo advertiu-nos em duas ocasiões quanto a compararmo-nos uns aos outros ¾ que é o que este padrão estabelecido faz ¾ e mostra que o melhor caminho é o caminho do amor. ¾ 2 Cor. 10:12; Gal. 6:4.
. . . creio sinceramente que se deva dar alguma consideração às consciências dos muitos que se preocupam por não conseguirem fazer aquilo que se pede deles e ainda cumprir todas as outras obrigações que o cristão tem.
Dessa forma, ele trata das mesmas áreas que envolvem o estabelecimento de normas humanas que “devem ser cumpridas” e o livre exercício da consciência individual, cuja referência o Corpo Governante achou melhor eliminar do comentário de Tiago.17
Outro pedido de informações foi enviado, este pela Comissão de Redação do Corpo Governante. Em resposta, os membros da Comissão de Filial da África do Sul, após terem antes comentado que “poucas pessoas do público lêem realmente nossas revistas” quando distribuídas de porta em porta, fez esta declaração adicional quanto à real motivação por trás do “serviço de campo” das Testemunhas de Jeová:
Não seria uma idéia acabar totalmente com os relatórios de serviço de campo e exortar os publicadores a procurar as ovelhas, a tentar diariamente partilhar as boas novas por meio de uma revista ou de uma revisita, ou de um telefonema para alguém? Não estão agora muitos publicadores servindo devido ao senso de obrigação, por acharem que têm de entregar um relatório de serviço de campo, em vez de por amor a Jeová e às pessoas do território?18
Exceto pelo memorando de Robert Wallen, todas estas declarações citadas vieram em resultado de indagações partidas da organização; nenhuma veio sem ser pedida. Em cada caso, as declarações desses homens foram pedidas e escritas devido à sua longa experiência e reconhecida lealdade. Suas opiniões foram pedidas numa época ¾ de 1976 a 1978 ¾ em que houve um breve período de boa vontade em ouvir observações francas de outros. Esta receptividade devia-se em grande parte à importante mudança na administração de 1975/76, e um período temporário de grande abertura. Depois dessa época, tais cartas não eram encorajadas. E mesmo as que vinham recebiam apenas atenção mínima de todo o Corpo Governante.
Deve-se perguntar: indicam as declarações nas cartas destes homens conceituados que as palavras de Jesus ¾ sobre pessoas acharem no revigorante serviço dele alívio e descanso do trabalho cansativo ¾ estavam se cumprindo na organização? Ou refletem o peso da carga enfadonha imposta por homens, homens que não mostram interesse em aliviar o fardo, e que de fato nem “movem o dedo” para fazê-lo? (Mateus 23:4) Certamente não é difícil entender por que a maioria do Corpo Governante foi a favor de reescrever parte do Comentário à Carta de Tiago e de eliminar qualquer referência desfavorável à “pressão” ou a normas humanas que se “deve seguir.”
Estabelecem “obras da lei”
Quando o apóstolo Paulo escreveu que a salvação não depende de obras, foi, de modo geral, no contexto da lei e “obras da lei.”19 Altera isto o quadro já exposto? Não, pela razão de que, para as Testemunhas de Jeová, as obras que constantemente lhes exortam a cumprir são, para todos os efeitos, obras prescritas por lei — lei humana, organizacional, mas assim mesmo lei. O termo grego para “lei” (nómos) usado no texto aplica-se não só a leis escritas em sentido legal, mas “bem amplamente a qualquer norma, regra, costume, uso ou tradição.”20 De modo similar, define-se “lei” como “costume ou prática obrigatória de uma comunidade: norma de conduta ou ação prescrita ou formalmente reconhecida como obrigatória ou imposta por uma autoridade controladora.”21 A natureza obrigatória das obras prescritas pela autoridade controladora da organização Torre de Vigia ¾ não só quanto ao “serviço de campo” (a ser prestado do modo “formalmente reconhecido”) mas também à assistência regular às cinco reuniões semanais ¾ é evidente. Estas podem não ser formalmente declaradas como “leis” mas são “formalmente reconhecidas” como obrigatórias para todos os membros. Fazem a Testemunha sentir-se culpada diante de Deus se não aderir ao programa de atividades prescrito pela organização. Isto, junto com a pressão do grupo, fornece à “autoridade controladora” o meio para “impor” o cumprimento destas obras.
Vimos a origem da atividade de porta em porta das Testemunhas e que, com o tempo, esta passou a ser apresentada como regra essencial para todas as Testemunhas “fiéis,” “leais,” um dever divinamente imposto. Seu cumprimento era descrito como necessário para obter o favor e a aprovação de Deus; não fazê-lo resultaria em “culpa de sangue” (o texto de Ezequiel 3:18, 19, é muito usado em apoio a este conceito). Inegavelmente, é deste modo que a vasta maioria das Testemunhas vê a questão até hoje. Igual ao antigo padrão da nação de Israel sob o código da Lei, um programa estruturado de atividades semanais de “serviço” começou a ser estabelecido para que elas o cumpram, e elas passaram a sentir que a regularidade no cumprimento era a evidência de sua condição justa diante de Deus. (Confira Lucas 18:11, 12.) Em tempos mais recentes, os pontos de vista incrivelmente dogmáticos apresentados na época de Rutherford raramente foram afirmados de modo tão imprudente, em termos tão crassos. Todavia, a mesma idéia básica é regularmente expressa de maneira mais sutil, sofisticada. O resultado final ¾ impor sensação de culpa aos que não acatam todos os arranjos da organização ¾ é assim atingido.
A ênfase na atividade de porta em porta logo transformou esta obra numa norma primária para determinar se um varão qualificava-se para ser ancião. O livro A Fé em Marcha, página 158, fala sobre os que eram anciãos congregacionais durante os anos 20 e início dos 30:
Aqueles que se recusaram a engolir seu orgulho e seguir o exemplo de Jesus e seus discípulos no ministério de porta em porta logo se acharam totalmente fora da organização. Logo descobriram que todos os demais das respectivas congregações estavam participando na obra de testemunho que os desenvolvia mentalmente e ainda os conduzia à madureza. Estes que eram ativos tornaram-se verdadeiros “anciãos” em razão de sua lealdade e zelo no serviço do Senhor. Eles não eram eleitos para o cargo de “ancião”; mas tornavam-se anciãos por sua própria atividade de serviço; eram então designados para posições de responsabilidade por terem mostrado as qualificações apropriadas.
Ao estabelecer qualificações para os homens que serviam na superintendência da congregação, o apóstolo Paulo nada disse sobre testemunho de porta em porta. (1 Timóteo 3:1-7; Tito 1:5-9) Mas esta então tornou-se a principal regra para julgar as qualificações de todos os varões Testemunhas que servissem nesse cargo, para determinar se seriam designados pela organização. Na prática, tornou-se uma lei “imposta pela autoridade controladora,” a lei que rege as designações congregacionais, em vigor até hoje. É fato conhecido que quando os anciãos da congregação são avisados da visita do representante da Sociedade (superintendente de circuito ou de distrito), quase todos eles imediatamente voltam o pensamento para seus “relatórios de serviço de campo” pessoais, quanto a se serão aprovados. Raramente pensam nas qualidades espirituais que o apóstolo estabelece nas Escrituras para os que pastoreiam o rebanho.
Estes homens sabem que as Escrituras exortam a mostrar interesse pelos doentes, necessitados, viúvas, órfãos, os que estão deprimidos ou espiritualmente fracos.22 Sentem, porém, que não dispõem de muito tempo para prestar tais serviços. Embora talvez sintam-se impelidos a visitar tais pessoas, a organização exige que devotem seu tempo disponível a atividades organizacionais, especialmente o serviço de campo. Não há espaço na folhinha do “Relatório de Serviço de Campo” para anotar as horas gastas nas visitas que a Bíblia recomenda aos enfermos e necessitados, pelo menos não se estes forem Testemunhas batizadas. Ironicamente, um ancião pode inclinar-se mais a visitar tal pessoa se ela não for batizada do que se não for batizada, já que pode então contar o tempo gasto com ela. Chega-se a dizer aos anciãos que, se o tempo gasto aconselhando ou edificando alguém interferir no apoio ao “serviço de campo,” eles devem pedir que a pessoa os acompanhe no “serviço de campo” e conversar com ela enquanto vão de porta em porta. O bom senso mostra que tal arranjo não é prático, mas isto só demonstra a importância dominante que se dá ao “serviço de campo” e como todos os outros interesses devem sujeitar-se a este.23
Um dos anciãos cujo parecer foi solicitado pelo Departamento de Serviço falou da presença em sua congregação de um superintendente de distrito, dois superintendentes de circuito e suas esposas, numa época de congresso. Para parte do período da estada deles, o ancião tinha programado algumas visitas a Testemunhas que precisavam de ajuda: “Um jovem que espancava a esposa, afligido pela consciência; várias famílias com filhos envolvidos com maconha; uma irmã idosa, debilitada, cujo marido acabara de morrer, receosa do futuro; uma irmã cujo bebê morrera em casa durante um processo de parto natural, doméstico, que ela achava que a Sociedade defendia; uma irmã idosa que sentia-se culpada por sua atividade de campo não mais ser como antes; e assim por diante. Ele relata que o superintendente de distrito disse que ele e os outros não podiam ir com os anciãos nestas visitas, mas queria gastar tempo trabalhando com folhinhas de expiração (para pessoas do público cujas assinaturas de revista tinham expirado) durante o resto da semana. Como disse o ancião: “Era só uma questão de manter os viajantes atarefados, ocupados, sem realizar absolutamente nada senão contar as horas gastas no campo.”
Assim, as normas tradicionais se sobrepõem às Escrituras, e até as anulam. (Confira Mateus 15:3-6) O resultado é que estes homens, designados pastores do rebanho, muitas vezes sentem-se tolhidos e restringidos quanto ao que poderiam normal e conscienciosamente fazer em benefício das ovelhas. Não há dúvida de que o “serviço de campo” para eles é uma “lei.” A Palavra de Deus, ao contrário, nos diz que não há lei contra expressões de amor, benignidade e bondade motivadas pelo espírito. (Gálatas 5:22, 23) As diretrizes da organização, que têm força de “lei,” muitas vezes sufocam tais expressões e anulam, deste modo, o conselho da Palavra de Deus.
Nada há nas Escrituras, com certeza, contrário à atividade religiosa de casa em casa em si, (embora, como se mostrará num capítulo posterior, nada há igualmente nas Escrituras que a favoreça) O erro está na pressão coatora envolvida, no esforço de impor sentimentos de culpa aos que não participam dela, como se por não participarem eles fossem infiéis a Deus, desleais a seu Filho, faltos de zelo e devoção à justiça, sendo até descritos como orgulhosos e auto-indulgentes. Do ponto de vista cristão tais táticas são indesculpáveis.
Como outro exemplo de que a organização converte o serviço cristão numa “obra da lei,” A Sentinela de 1o de agosto de 1990, na páginas 29 e 30, aprova esta citação que se acha num número antigo da mesma revista:
Alguns podem se inclinar a considerar o ministério de tempo integral como a exceção. Mas nisto se enganam, pois, em virtude de seu voto de dedicação, cada ministro cristão está obrigado a servir por tempo integral, a menos que circunstâncias sobre as quais ele não tenha controle tornem isso impossível.24
Como mostra o contexto do artigo e toda Testemunha sabe, servir por “tempo integral” significa ser “pioneiro,” trabalhar como representante viajante da organização ou trabalhar numa de suas instituições. Qualquer outra coisa que alguém ache que é serviço de tempo integral a Deus simplesmente não se classifica na definição “formalmente reconhecida” pela “autoridade controladora.” As Escrituras nos exortam a servir a Deus de todo coração, mente e força, mas elas não são taxativas nem nos obrigam prescrevendo exatamente onde, quando e como faremos isso. São os homens que buscam, consciente ou subconscientemente, ser feitores espirituais dos outros que o fazem. Em parte alguma das Escrituras, Cristo ou seus apóstolos alguma vez sugeriram que, ‘a menos que circunstâncias sobre as quais ele não tenha controle tornem isso impossível,’ todos estão “obrigados” a servir dos modos prescritos pela organização. A própria linguagem utilizada pela organização prova que a coisa tornou-se, de fato, uma questão de lei, uma lei de invenção humana.
Numa reunião do Corpo Governante em que surgiu a questão de dar mais ênfase ao serviço de “pioneiro,” Lloyd Barry mostrou-se preocupado com a atitude de Testemunhas jovens dos Estados Unidos. Destacou que no Japão (onde fora por alguns anos superintendente da filial) a maioria dos jovens Testemunhas tornavam-se pioneiros tão logo concluíam o colégio, e acrescentou: “No Japão, é o que se tem de fazer!” Quando o presidente pediu comentários, expressei a esperança de que esses jovens realmente não se tornassem pioneiros por esta razão, mas que o fizessem por amor a Deus e pelo desejo de ajudar outros, não porque “é o que se tem de fazer.” Missionários que serviram no Japão admitem que a forte pressão do grupo está ligada ao grau incomumente alto do serviço de pioneiro realizado lá. Após ouvir várias declarações veementes sobre insistir no trabalho de pioneiro, inclusive ser “pioneiro de férias” como virtual obrigação quando as circunstâncias da pessoa permitissem, novamente ergui a mão e disse que achava que se era mesmo assim, nós membros do Corpo Governante devíamos então ser os primeiros a dar o exemplo. Perguntei: “Quantos de nós têm usado seu período de férias para ser ‘pioneiros de férias’? Nós podíamos fazê-lo, mas fazemos? E não vamos alegar a idade como motivo para não fazê-lo, visto que nossas publicações mostram regularmente os bons exemplos de pessoas idosas que estão no serviço de pioneiro. Se nós mesmos não fazemos isto, por que então devemos pressionar outras pessoas a fazê-lo”? A declaração causou alguns olhares fixos mas nenhum comentário, e o debate prosseguiu.
Transformar certas obras em virtuais obras da lei pode aparentar grande devoção a Deus e zelo pelos interesses de seu Reino, tal como no tempo dos fariseus. Mas a ênfase em tais obras da lei amiúde revela, na verdade, preguiça moral e espiritual. Edificar pessoas na fé e no amor, de modo que as obras fluam dos corações receptivos, requer muito mais reflexão e esforço, exige muito mais do coração e da mente, pede mais que se dê um exemplo pessoal equilibrado e razoável, do que fazer pessoas se sentirem obrigadas ou criar nelas um complexo de culpa. Este último método é legalista e mundano, não é cristão. A conformidade exterior não é indicador seguro da sinceridade da motivação de coração das pessoas. Pressioná-las para que se amoldem, programar sua vida e seu tempo, canalizar seus pensamentos e esforços para atividades destinadas a promover alvos organizacionais pré-determinados — tudo isto só serve para obstruir e desvirtuar a espontaneidade do serviço. Essa espontaneidade é o resultado natural da fé e do amor e a liberdade cristã é necessária para que esta se expresse plenamente.
Mais uma vez, o memorando de Robert Wallen ilustra estes princípios. Na página 3, ele escreve:
Quando olhamos a norma que se estabeleceu, que em grande parte é o cartão de registro de publicador, com o tempo gasto no serviço de campo ¾ para o qual é difícil encontrar precedente bíblico ¾ onde encontramos a verdadeira medida da devoção da pessoa? Será que isto nos diz que espécie de pessoa é aquela? Como ela é em casa, com a famíla? Que tipo de ajuda dá aos outros? Como se conduz no emprego? Quanto tempo gasta no pastoreio? Faz coisas boas para os outros? Anda corretamente, cuida dos enfermos, lida com situações de emergência em sua vida, e nas vidas de outros da congregação, com amor e cuidado por eles? Em resumo, fornece realmente o cartão a verdadeira medida da pessoa, a medida pela qual julgamos a capacidade, mas, o que é mais importante, a espiritualidade da pessoa?
Fiz citações de vários homens respeitados e suas expressões de preocupação. Alguns escreveram em resposta a um pedido específico de comentários feito pela organização. Há muitos, muitos outros que teriam escrito o mesmo se tivessem a oportunidade. Acho significativo que, quer solicitados quer não, em todos os casos, suas cartas não foram vistas como algo que merecesse mais que uma brevíssima consideração pelo Corpo Governante ¾ e isto inclui a carta de Wallen, secretário da Comissão de Serviço. Declarações desta espécie simplesmente não eram o que a maioria dos homens do Corpo queria ouvir. Não se ajustavam aos alvos estabelecidos da organização e teriam exigido uma notável mudança no modo tradicional de ela lidar com seus membros. Em uma década, desde que estes homens expressaram suas preocupações, muitas vezes fornecendo razões bíblicas, nada mudou. Nenhum dedo se moveu.
1 Comentário à Carta de Tiago, páginas 6 e 7.
2 Entre estes estavam Milton Henschel, Ted Jaracz, Karl Klein e Fred Franz.
3 Os livros eram impressos em seções de 32 páginas chamadas “cadernos,” que eram então ajuntados para formar o livro. Veja também o Apêndice com respeito aos trechos de outra seção, os quais levaram à discussão que resultou na destruição destas duas seções.
4 Veja documentação a este respeito nos capítulos 8, 9 e 11.
5 A transcrição do julgamento da Escócia, citado no capítulo 2, mostra que Fred Franz testemunhou como segue, falando de como eram tomadas as decisões aprovando “avanços” no entendimento. À pergunta, “São estes avanços no entendimento, como o senhor os chama, submetidos ao voto dos diretores [membros da diretoria]?” ele respondeu, “Não.” Quando perguntaram, “Como se tornam eles pronunciamentos oficiais?” ele replicou, “Passam pela comissão editora e eu dou o meu O.K., depois de uma análise bíblica. Passo-os então para o presidente Knorr e o presidente Knorr dá o O.K. final.” Perguntaram-lhe, “Não vai de maneira alguma perante a Diretoria?” e ele replicou “Não.” Isto, incidentalmente, mostra que era totalmente falsa a idéia de que a Diretoria funcionava então como um “Corpo Governante” em qualquer sentido genuíno do termo. Na verdade, não havia nenhuma “comissão editora” estabelecida. Mas havia três pessoas cujas assinaturas eram necessárias em toda matéria que fosse publicada: as de Nathan Knorr, Fred Franz e Karl Adams. Certos membros do Departamento de Redação poderiam assinar se designados a ler a matéria por Karl Klein, mas não faziam isso em base contínua.
6 A Fé em Marcha (em inglês), página 152.
7 As Testemunhas de Jeová no Propósito Divino (em inglês), página 96.
8 O uso destas “quotas” foi abolido, especialmente após a publicação do manual da organização já mencionado neste capítulo. Não obstante, há uma espécie de código não escrito que diz que se deve gastar pelo menos dez horas por mês no “serviço de campo.” Os anciãos e os servos ministeriais geralmente sentem-se tranqüilos se estiverem com esta média de horas. Caso contrário, ficam muito preocupados quando se aproxima a visita do superintendente viajante.
9 A página 5 da carta de Karl Adams para Knorr deixa igualmente claro que estes relatórios de modo algum são necessários para avaliar ou determinar a distribuição de literatura.
10 De modo similar, requer-se dos rapazes que servem dois anos como missionários mórmons que entreguem um relatório mensal de seus “Totais.”
11 Carta enviada por Anthony Fuelo, datada apenas “janeiro de 1978.”
12 Ibid.
13 Mateus 23:4.
14 Compare com Mateus 12:1, 2, 9-14; 15:1, 2; Marcos 7:1-5.
15 Os regulamentos sobre o Sábado vieram eventualmente a preencher dois volumes, abrangendo centenas de atividades. Embora nenhuma das regras individualmente possa ter sido extremamente difícil de obedecer, o espesso volume de regras também contribuiu para o peso do fardo.
16 O autor da carta, Worth Thornton, fora secretário no escritório do presidente e é cunhado de Harley Miller, que por sua vez é atualmente membro da Comissão do Departamento de Serviço.
17 Creio que a seriedade de tudo isto reside no fato de que, pelo menos durante os anos que passei lá, vários membros do Corpo Governante apenas raramente participavam no serviço de campo. A maioria deles não assistia aos estudos de livro nas noites de terça-feira e não participava nas atividades de serviço dos grupos destes locais. Isto se aplicava a Natahn Knorr, Fred Franz, Grant Suiter, Milton Henschel e outros. Creio que Robert Wallen, como eu, tinha conhecimento disto bem como muitos da sede.
18 Esta carta, datada de 3 de novembro de1978, foi assinada por Jack Jones, J. R. Kikot, e C. F. Muller, todos membros da Comissão de Filial da África do Sul.
19 Romanos 3:20; Gálatas 2:16; 3:2, 5, 10.
20 Veja The Theological Dictionary of the New Testament, sob “nómos.”
21 Webster’s Ninth New Collegiate Dictionary, sob “lei.”
22 1 Tessalonicenses 5:14; Tiago 1:26, 27; 2:14-16; 1 João 3:17, 18.
23 O superintendente de circuito Wayne Cloutier, citado no Capítulo 7, páginas ___,___, menciona esta prática em sua carta, comentando sobre sua ineficácia. Sua declaração é uma dentre muitas feitas por anciãos experientes.
24 Esta declaração acha-se originalmente em A Sentinela de 1o de junho de 1955.