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               O Sangue e a Vida, a Lei e o Amor


 

 

A letra mata, mas o Espírito vivifica.

¾ 2 Coríntios 3:6, Tradução Ecumênica.    

       

O

TEMA A SER CONSIDERADO de modo algum implica em que o uso do sangue não envolva um alto grau de risco. É evidente que há riscos. Tampouco implica em que alguém que faz a opção pessoal, sem coação, de evitar transfusões (ou algum componente ou fração do sangue, se fôr o caso) com base puramente religiosa, esteja agindo de modo impróprio. Até as ações que são corretas em si mesmas se tornam más se forem praticadas de má consciência. Como disse o apóstolo: “Feliz aquele que não se condena na decisão que toma . . . pois tudo que não procede da boa fé é pecado.”1 Se, em vista da evidência a ser apresentada, certos escrúpulos relacionados ao sangue refletem uma consciência forte ou fraca, deixo a critério do leitor.

Ao mesmo tempo, não se deve subestimar a séria responsabilidade que cai sobre uma organização que impõe suas opiniões à consciência pessoal do indivíduo. O que tem acontecido com a Sociedade Torre de Vigia na questão do sangue ilustra, de modo contundente, como o legalismo pode levar uma organização a um emaranhado de inconsistências, com a possibilidade de seus membros virem a sofrer todas as conseqüências desfavoráveis daí resultantes.

Começando no final dos anos 40, a organização declarou inicialmente a proibição absoluta de aceitar sangue sob qualquer forma, quer total quer em frações. Então, com o passar dos anos, ela acrescentou novas normas, que entravam cada vez mais nos aspectos técnicos da questão. A tabela que segue apresenta basicamente a posição atual da organização sobre o uso do sangue:

 

Práticas e componentes do

    sangue proibidos

Práticas e componentes do

     sangue permitidos

    Sangue total

    Plasma

    Glóbulos brancos

 (leucócitos)

    Glóbulos vermelhos

    Plaquetas

    Armazenar o sangue do próprio

 paciente para transfusão pos-

 terior.                   

    Albumina

    Imunoglobulinas

    Preparados para hemofílicos

      (Fatores VIII e IX)

    Desvio do sangue do paciente

      através do aparelho coração-

      pulmão, ou outros desvios

      caso a “circulação extracor-

      pórea seja ininterrupta.”2

 

Agora a organização classifica os elementos do sangue como “componentes maiores” ou “menores” (a tabela mostrada acima é o resultado desta divisão). Esta classificação, por si mesma, ilustra tanto a natureza arbitrária como a inconsistência de tais normas. Onde concedeu Deus aos homens autoridade para fazer tal divisão? Em que base fazem a divisão — simplesmente num certo percentual do total, e se fôr assim, qual é a linha divisória que separa o “maior” do “menor”? Ou será que o fazem com base na importância vital da função de cada componente? Se fôr assim, como avaliam e determinam a importância relativa de cada função?

O ex-chefe da própria equipe médica da sede da Torre de Vigia, médico e cirurgião, comentou certa vez: “Como se pode classificar um elemento como “maior” ou “menor”? Se alguém precisa de determi-nado elemento do sangue para salvar sua vida, então para ele esse é um elemento “maior.”3 Mas a inconsistência, de fato, vai muito além.

Quando se pergunta sobre os motivos de ela não proibir o uso de todos os componentes do sangue, a Sociedade Torre de Vigia  explica suas mudanças de norma quanto a permitir o uso das frações alistadas dizendo que estas são usadas em “quantidades muito pequenas” e que isto coloca seu uso dentro do campo da consciência pessoal. Examinando de perto, contudo, encontram-se evidências de ignorância ou ocultação dos fatos, fatos tão significativos que deixam a organização numa posição sem sentido. Considere:

As declarações da Sociedade Torre de Vigia contra o uso de “sangue total” soam impressionantes a muitas Testemunhas. Embora muito comuns nos anos 50 e 60, as transfusões de sangue total são hoje muito raras hoje. Na maioria dos casos, administra-se ao paciente apenas o componente específico do sangue que ele precisa.4 Na hora em que é doado, a maior parte do sangue é separada em vários componentes (plasma, leucócitos, eritrócitos [glóbulos vermelhos], etc.). Estes são armazenados para uso posterior. A maior parte deles é enviada diretamente aos centros médicos, e portanto, na grande maioria dos casos, quando uma Testemunha se depara com o problema da transfusão, a questão não é com respeito ao uso de sangue total e sim de algum de seus componentes.

          [FOTOCÓPIA DA DESPERTAI! DE 22 DE OUTUBRO DE 1990, PÁGINA 4]

 

A inconsistência das normas da Torre de Vigia quanto aos componentes aceitáveis e não aceitáveis é bem ilustrada pela sua norma sobre o plasma. Como se pode ver no gráfico tirado da edição Principales componentes de la sangrede 22 de outubro de 1990 de Despertai!, o plasma constitui cerca de 55 por cento do volume do sangue. Evidentemente, segundo o critério do volume, ele é colocado na lista de “componentes maiores” proibidos pela Torre de Vigia. No entanto, o plasma chega a ser constituído por até 93 por cento de simples água. Quais são os componentes dos cerca de 7 por cento restantes? Os principais são albumina, globulina (da qual as imunoglobulinas são as partes mais importantes), fibrinogênio e fatores de coagulação (usados nos preparados hemofílicos).5 E são precisamente estes os componentes que a organização põe na lista dos que são permitidos aos seus membros! O plasma é proibido apesar de seus componentes principais serem permitidos — desde que sejam introduzidos no corpo separadamente. Como disse certa pessoa, é como se o médico proibisse o paciente de comer sanduíches de queijo e presunto, mas dissesse que ele pode dividir o sanduíche em partes e comer o pão, o queijo e o presunto separadamente, mas não como sanduíche.6  

Os leucócitos, geralmente chamados “glóbulos brancos do sangue,” também são proibidos. Na verdade, o termo “glóbulos brancos do sangue” é meio enganoso, porque a maioria dos leucócitos no corpo da pessoa existem, de fato, fora do sistema sangüíneo. O corpo contém cerca de 2 a 3 quilos de leucócitos e apenas cerca de 2 a 3 por cento destes estão no sistema sangüíneo. Os outros 97 a 98 por cento estão espalhados por todos os tecidos, formando seu sistema defensivo (ou imunológico).7

Isto significa que a pessoa que recebe um transplante de órgão receberá simultaneamente mais leucócitos estranhos do que se tivesse recebido uma transfusão de sangue. Já que a Torre de Vigia permite agora o transplante de órgãos, sua posição inflexível contra os leucócitos, enquanto permite outros componentes do sangue, fica sem sentido. Só pode ser defendida com o uso de raciocínios contorcidos, que certamente não têm qualquer base moral, racional ou lógica. A separação arbitrária do sangue em componentes “maiores” e “menores” também não tem qualquer base sólida. A organização proíbe evidentemente o plasma, embora este seja principalmente água, por causa do seu volume (55% do sangue), e no entanto proíbe também os leucócitos que, como mostra o gráfico da Despertai!, compõem apenas cerca de 1/10 de 1 por cento (0,001) do sangue!8 

A falta de base moral ou lógica para esta posição pode também ser vista no fato de que, sendo na mesma quantidade, o leite humano contém mais leucócitos que o sangue. O sangue contém cerca de 4.000 a 11.000 leucócitos por milímetro cúbico, enquanto o leite materno pode conter, durante os primeiros meses de aleitamento, até 50.000 leucócitos por milímetro cúbico. Isto representa entre cinco a doze vezes mais que a quantidade existente no sangue!9

Ficam na lista proibida os eritrócitos (glóbulos vermelhos) e as plaquetas. Que dizer dos componentes permitidos

 

Um fator importante a ter em mente é que a argumentação da Torre de Vigia busca muito do seu apoio nas provisões da lei Mosaica que ordenam que o sangue de animais mortos seja derramado, citando-se isto como justificativa da objeção da organização a qualquer tipo de  armazenagem de sangue humano.10 Recordemos também que ela apresenta os componentes do sangue que permite, como constituindo apenas uma quantidade insignificante de sangue. Considere agora os seguintes fatos com respeito aos componentes que a organização classifica como permitidos: 

Um destes é a albumina, usada principalmente para tratar queimaduras e hemorragias graves. Alguém com queimaduras de terceiro grau em 30 a 50 por cento do corpo necessita de cerca de 600 gramas de albumina. A norma da Torre de Vigia permite isto. Quanto sangue seria preciso para extrair esta quantidade? Seria preciso 10 a 15 litros de sangue para produzir essa quantidade de albumina.11 Isto dificilmente seria uma “pequena quantidade.” É óbvio também que os litros de sangue dos quais se extraiu a albumina foram armazenados, não “derramados.”

O mesmo ocorre com as imunoglobulinas (ou gama-globulinas). Para produzir suficiente gama-globulina para uma injeção com seringa (vacina que as pessoas, inclusive as Testemunhas de Jeová que viajam para certos países meridionais, tomam como proteção contra a cólera) são precisos quase 3 litros de sangue como fonte de fornecimento.12  Isto é ainda mais sangue do que geralmente é usado numa transfusão de sangue comum. E de novo, a gama-globulina é tirada de sangue que é armazenado, não “derramado.”

Restam os preparados hemofílicos (Fatores VIII e IX). Antes de estes preparados entrarem em uso, o tempo médio de vida de um hemofílico nos anos 40 era de 16,5 anos.13 Hoje, graças a estes preparados derivados do sangue, um hemofílico pode atingir um período normal de vida. Para produzir os preparados que mantêm um hemofílico vivo durante este período de tempo, requer-se a extração de 100.000 litros de sangue.14 Embora os próprios preparados hemofílicos representem apenas uma fração desse total, quando consideramos sua fonte, temos de nos perguntar: como se pode considerar isto uma “pequena quantidade” de sangue? 

O uso de qualquer destes componentes implica obviamente na armazenagem de grandes e até maciças quantidades de sangue. Por um lado a organização Torre de Vigia decreta como permitido o uso destes componentes do sangue, e conseqüentemente da armazenagem envolvida na sua extração e produção, enquanto por outro afirma que se opõe a toda armazenagem de sangue, pois é biblicamente condenada. Este é o único motivo dado para proibir o uso de sangue autólogo por uma Testemunha (isto é, armazena-se um pouco do próprio sangue da pessoa para depois reintroduzi-lo na corrente sangüínea durante ou após a cirurgia).15 Essas posições são claramente arbitrárias, inconsistentes e contraditórias. É difícil crer que tanto os que formulam tais normas como os redatores que as explicam e defendem, ignorem os fatos a ponto de não verem a inconsistência e arbitrariedade envolvidas. No entanto, só isso poderia evitar que essa posição também seja classificada como desonesta.

Decidir sobre questões de saúde ou tratamento médico, proibindo isto e permitindo aquilo, é pisar em terreno perigoso. De um lado, podemos ser culpados de criar um medo irracional, e de outro, podemos criar uma falsa sensação de segurança. O proceder sábio e humilde é deixar a responsabilidade de decidir sobre tais distinções a quem ela pertence em primeiro lugar, a consciência individual.

Os artigos da Torre de Vigia sobre a questão do sangue destacam a posição “intransigente” tomada pela organização, amiúde elogiando suas próprias normas como salvaguardando a saúde e a vida dos seus membros. Raramente, se é que tanto, lemos alguma informação ou experiência que não seja favorável a essas normas.

Artigos recentes alegam que as normas da organização têm protegido seus membros de contrair AIDS. Um artigo da Despertai! de 8 de outubro de 1988 afirma isto. O mesmo artigo indica (página 11) que “até o início de 1985 a maioria dos 10.000 americanos com hemofilia grave haviam sido infectados pelo vírus da AIDS.” A Despertai! de 22 de outubro de 1990 (página 8), atualiza esta informação dizendo: “Os hemofílicos, a maioria dos quais utilizam um agente coagulante tirado do plasma para tratar sua moléstia, foram dizimados. Nos Estados Unidos, dentre 60 a 90 por cento deles pegaram a AIDS antes de ser estabelecido um processo de tratamento do remédio pelo calor, a fim de eliminar o HIV.” De forma similar, A Sentinela de 1º de outubro de 1985, num artigo intitulado “A Grã-Bretanha, o Sangue e a AIDS,” afirma na página 23 que “uns 70 milhões de unidades de Fator VIII concentrado” foram importados dos Estados Unidos para tratar os hemofílicos britânicos e acrescenta: “Parece que pela importação desse produto sangüíneo o vírus da AIDS passou para o suprimento britânico.”

Embora tragam muitos elogios ao efeito protetor das normas da organização acerca do sangue, há algo que nenhum destes artigos mostra aos leitores. É que os hemofílicos que assim foram infectados contraíram a infecção primariamente de uma fonte de sangue que a Sociedade Torre de Vigia tinha declarado oficialmente como permitida: os preparados para hemofílicos de Fator VIII extraídos do plasma.16 Como mostra a Despertai! de 22 de outubro de 1990 (páginas 7 e 8), alguns incidentes de infecção com AIDS também ocorreram através de “transplantes de tecidos,” que também são classificados como “permitidos” pela organização.

Tudo isto ilustra quão tolo e totalmente errado é que uma organização pretenda dispor de sabedoria e autorização divinas para desenvolver um conjunto complicado de padrões e distinções técnicas e depois os imponha como regras morais obrigatórias, decidindo pelos outros os casos e as circunstâncias em que um assunto pode ser considerado como dentro ou fora do domínio da consciência pessoal.

 

O risco inerente à transfusão de sangue e componentes ou frações de sangue é real. Ao mesmo tempo, também é verdade que pessoas podem morrer na cirurgia devido a grandes hemorragias. O uso do próprio sangue, armazenado até a hora da cirurgia, seria uma opção lógica para pessoas preocupadas com possíveis infecções relacionadas ao sangue. Porém, como vimos, a organização assume a autoridade de declarar que isto não cabe à decisão pessoal, proibindo até a “drenagem intra-operatória” do sangue (na qual, durante a operação, recolhe-se algum sangue num recipiente plástico, depois devolvendo-o ao corpo).17 E muitos milhares de pessoas estão dispostas a abrir mão do direito à própria decisão em casos tão cruciais, deixando que a organização decida por elas, apesar de esta, em sua história, não querer admitir a responsabilidade pelos danos que suas normas possam causar. Abastecidas quase totalmente apenas pelas declarações e experiências favoráveis, elas raramente, se é que tanto, são informadas dos fatores negativos.

Considere só um exemplo, tirado de um artigo da revista Discover de agosto de 1988. A partir dos 42 anos, ao longo de vários anos, uma mulher Testemunha passou por remoções cirúrgicas de tumores recorrentes da bexiga. Da última vez, ela esperou demais antes de ir ao médico, sangrava muito, e estava gravemente anêmica. Insistiu em não receber transfusão e a recusa foi respeitada. Por mais de uma semana os urologistas tentaram sem êxito estancar a hemorragia. A contagem sangüínea dela continuava a cair. A médica autora do artigo descreve o que aconteceu: 

 

Gradualmente, à medida que sua contagem sangüínea caía ainda mais, a Sra. Peyton passou a ter falta de ar. Os órgãos do corpo precisam de certa quantidade de oxigênio para funcionar. O oxigênio é transportado dos pulmões para a periferia pelas moléculas de hemoglobina que estão nos glóbulos vermelhos. . . A equipe médica deu à Sra. Peyton oxigênio adicional através de uma máscara até que ela estava praticamente respirando O2 puro. Os poucos glóbulos vermelhos que ela tinha estavam totalmente carregados, mas simplesmente não havia veículos suficientes para transportar o combustível de que seu corpo precisava.

Sua ânsia por ar aumentou. Seu ritmo respiratório caiu. Ela ficava cada vez instável. Finalmente, e inevitavelmente, as fibras do músculo cardíaco mostraram sua necessidade desesperada de oxigênio. Ela sofria uma dor no peito, forte e esmagadora.

 

A médica que escreve o artigo descreve o que sentiu ao chegar ao quarto da paciente:

 

Quando entrei no quarto. . . assustei-me com a cena à minha frente. No centro de todas as atenções estava uma mulher grande com uma máscara de oxigênio, ansiosa por ar, respirando mais rápido do que parecia humanamente possível. À cabeceira da cama estavam três amigos, membros da igreja [Testemunhas], instruindo-a . . . A seu lado estavam vários médicos — um monitorando sua pressão sangüínea em queda, outro extraindo um pouco de sangue duma artéria. O fluido que lentamente enchia a seringa tinha a consistência de ponche havaiano; testes no mesmo revelaram uma contagem de glóbulos vermelhos de apenas 9 [o normal seria 40]. Pendurado na grade da cama havia um saco com urina cor de cereja. A mulher estava morrendo Os traços do cardiograma mostravam as grandes oscilações que assinalam um coração sofrendo. Em poucas horas o dano que representavam se tornaria irreversível.

 

A mulher teve uma parada cardíaca. A equipe de médicos e enfermeiras começou a reanimação cárdio-pulmonar. Administraram-lhe epinefrina e atropina e depois uma descarga elétrica no coração. Este começou a bater, depois parou de novo. Mais RCP, mais epinefrina e atropina, outra descarga elétrica, mais RCP. Isto continuou durante uma hora até não haver mais esperança ou objetivo. A paciente estava morta, além de recuperação.

A médica que descreve isto não considerou a mulher como uma simples fanática. Ela escreve: 

 

Disseram-me que era uma mulher inteligente, que compreendia totalmente as conseqüências da sua decisão. Mas seu discernimento, pareceu-me, provinha de um conceito cego imposto por sua fé.18

 

Tratava-se de uma mulher com um problema recorrente que exigia cirurgias periódicas. Sabendo disto, armazenar um pouco do próprio sangue podia ter-lhe parecido um recurso seguro e aconselhável. A “lei Teocrática,” porém, descartou isto. A obediência à “lei Teocrática” não lhe permitiu uma opção pessoal na questão.

Se as normas da organização tivessem realmente base bíblica,  qualquer sofrimento que resultasse de acatar essas normas — tal como o adiamento ou a recusa de uma cirurgia devido à preocupação ou incerteza sobre questões ligadas ao sangue, até a própria perda da vida por sentir-se sob obrigação divina de recusar componentes do sangue além dos “permitidos” — tudo poderia ser simplesmente encarado como o sofrimento que o servo de Deus deve estar disposto a suportar.19 Muitas Testemunhas de Jeová são bem sinceras em apegar-se aos padrões da sua organização a este respeito. Algumas até viram filhos pequenos morrer em resultado disso, e seria cruelmente injusto atribuir isto à falta de amor dos pais. Eles simplesmente aceitaram que os padrões e normas organizacionais ― embora complexos e até confusos ― são baseados na Bíblia e, portanto, ordenados por Deus. Todavia, poucas afirmações tiveram base mais frágil que essa.

Como se observa, muito da argumentação da Torre de Vigia concentra-se em textos das Escrituras Hebraicas, principalmente das ordenanças da lei Mosaica. Visto que a Sociedade reconhece que os cristãos não estão debaixo dessa Lei, o texto de Gênesis, capítulo 9, versículos 1-7, é freqüentemente citado. Ele diz:

 

E Deus prosseguiu abençoando Noé e seus filhos, e dizendo-lhes: “Sede fecundos e tornai-vos muitos, e enchei a terra. E o medo de vós e o terror de vós continuará sobre toda criatura vivente da terra e sobre toda criatura voadora dos céus, sobre tudo o que se está movendo no solo, e sobre todos os peixes do mar. Na vossa mão estão agora entregues. Todo animal movente que está vivo pode servir-vos de alimento. Como no caso da vegetação verde, deveras vos dou tudo. Somente a carne com a sua alma — seu sangue — não deveis comer. E, além disso, exigirei de volta vosso sangue das vossas almas. Da mão de cada criatura vivente o exigirei de volta; e da mão do homem, da mão de cada um que é seu irmão exigirei de volta a alma do homem. Quem derramar o sangue do homem, pelo homem será derramado o seu próprio sangue, pois à imagem de Deus fez ele o homem. E quanto a vós, homens, sede fecundos e tornai-vos muitos, fazei a terra pulular de vós e tornai-vos muitos nela.”

 

Alega-se que, como todos os humanos descendem de Noé e seus filhos, estas ordens ainda se aplicam a todas as pessoas. Sugere-se que as ordenanças sobre o sangue na lei Mosaica devem por isso ser vistas simplesmente como repetições ou considerações adicionais da lei básica anteriormente estabelecida, e que portanto, ainda vigoram. De outro modo, já que os cristãos não estão sob a lei Mosaica, não faria sentido citar textos dela como tendo relevância no assunto.20 Afirma-se que o decreto divino sobre o sangue dado a Noé tem aplicação eterna.

Se é assim, não devemos então aplicar isso também à ordem seguinte, “sede fecundos e tornai-vos muitos,” e “fazei a terra pulular de vós e tornai-vos muitos nela”? Se é assim, como pode a Sociedade Torre de Vigia justificar o incentivo, não só a ficar solteiro, mas até a não ter filhos, no caso das Testemunhas casadas? Sob o título “Ter Filhos Hoje,” A Sentinela de 1º de março de 1988 (página 21) diz que, em vista do “tempo limitado” que resta para terminar a obra de testemunho, “é apropriado que os cristãos perguntem a si mesmos até que ponto o casar-se, ou terem filhos, caso sejam casados, afetará a sua participação nessa obra vital.” O artigo admite que criar filhos fazia parte da ordem de Deus após o dilúvio, mas declara (página 26) que “Atualmente, gerar filhos não é especificamente parte da tarefa dada por Jeová a seu povo. . . Portanto, ter filhos ou não neste tempo do fim é um assunto pessoal que todo casal precisa decidir por si mesmo. Contudo, visto que ‘o tempo que resta é reduzido,’ os casais farão bem em pesar cuidadosamente e com oração os prós e os contras de se ter filhos nestes tempos.” Se as palavras de Jeová a Noé a respeito de criar filhos e ‘pulularem e serem fecundos’ podem ser postas de lado como não mais aplicáveis, como podem coerentemente argumentar que as palavras Dele a respeito do sangue têm de ser encaradas como ainda em vigor, e usar isso como base para justificar a aplicação das ordenanças da lei Mosaica sobre o sangue como ainda em vigor para os cristãos hoje? 

Mais significativo, contudo, é que fazem essas palavras em Gênesis dizer algo muito diferente do que de fato dizem. Qualquer leitura do texto deixa claro que Deus ali fala de sangue inteiramente em relação a matar animais e depois em relação a matar humanos. No caso dos animais, o sangue era derramado no solo em reconhecimento evidente de que a vida sacrificada desse modo (para alimento) só era tomada por permissão divina, não por direito natural. No caso do homem, seu sangue exigia a vida daquele que o derramava, sendo a vida humana um dom de Deus que o homem não foi de modo algum autorizado a tirar à vontade. O sangue derramado de animais mortos e humanos assassinados representa a vida que eles perderam.21 O mesmo ocorre no caso dos textos da lei Mosaica regularmente citados, que requerem que o sangue seja “derramado.” Em todos os casos, isto refere-se claramente ao sangue dos animais que foram mortos. O sangue representava a vida tirada, não a vida ainda ativa na criatura.22

As transfusões de sangue, contudo, não são resultado da morte de animais ou humanos, pois o sangue vem de um doador vivo que continua a viver. Em vez de representar a morte de alguém, esse sangue é utilizado exatamente com objetivo oposto, a saber, a preservação da vida. Não dizemos isto para declarar as transfusões de sangue como prática desejável, ou inquestionavelmente apropriadas, mas simplesmente para mostrar que não existe nenhuma relação real ou paralelo entre a ordem de Gênesis a respeito de matar e depois comer o sangue do animal morto, e o uso de sangue numa transfusão. O paralelo simplesmente não existe.

Em dezembro de 1981, um homem que estudava com as Testemunhas de Jeová escreveu à Sociedade Torre de Vigia, expressando dificuldade em harmonizar a norma sobre as transfusões de sangue com os textos citados em apoio. Seus comentários sobre os textos revela conclusões similares às que acabamos de apresentar:

 

Assim, estas passagens citadas acima parecem-me indicar que as proibições de comer sangue na Bíblia, referem-se apenas à situação em que o homem mata a vítima e depois usa o sangue sem devolvê-lo a Deus, que é o único que tem o direito de tirar uma vida.

 

Impressionei-me especialmente, porém, com esta declaração feita quase no final da carta:

 

Outro ponto que me preocupa com relação a este mesmo assunto é que as Testemunhas de Jeová dizem que Deus proíbe comer o sangue porque este simboliza a vida, que é de grande valor aos olhos de Deus, e porque ele quer incutir no homem o valor da vida através da proibição de comer sangue. E isto me parece muito razoável. Contudo, não consigo entender como é que o símbolo possa ser de maior valor do que a realidade que ele simboliza.

É certo que na maioria dos casos as transfusões de sangue são de pouca utilidade ou até prejudiciais, no entanto, num percentual muito pequeno dos casos, o sangue é o único meio que permite sustentar a vida até que se possa fazer outro tratamento, como por exemplo, grave hemorragia interna que não pode ser imediatamente estancada. Parece-me que neste tipo de situação, deixar uma pessoa morrer a fim de manter o símbolo da vida é em si uma contradição e também atribuir mais importância ao símbolo do que à realidade que ele simboliza

. . . Eu creio tão firmemente quanto as Testemunhas de Jeová que o verdadeiro cristão deve estar preparado para dar a vida pela sua fé em Deus, se isso fôr exigido. Mas dar a própria vida quando Deus realmente não requer ou deseja, não parece ter qualquer valor real.23

 

Finalmente, usar leis que ordenam o derramamento do sangue como base para condenar sua armazenagem é ignorar o propósito declarado dessas leis. Segundo o contexto, ordenou-se aos israelitas que derramassem no solo o sangue dos animais que matavam para garantir que o sangue não seria comido, não para garantir que não seria guardado. A armazenagem nem estava em discussão. Empregar tais leis desse modo não só é ilógico quanto é pura manipulação da evidência, forçando-as a significar algo que não é declarado ou mesmo sugerido.

Como os cristãos não estão sob um código de leis, mas sob a “lei régia do amor” e a “lei da fé,” estes pontos merecem certamente séria consideração e meditação.24 Mostra verdadeiro apreço pelo valor da vida permitir que normas arbitrárias ditem como se deve proceder em situações cruciais? Demonstra amor a Deus e ao próximo fazer isto sem apoio de declarações claras na Palavra de Deus?

 

Sem dúvida, o principal texto bíblico usado na argumentação da Torre de Vigia é o de Atos 15:28, 29. Estes versículos contêm a decisão de um concílio em Jerusalém e incluem as palavras: “persisti em abster-vos de coisas sacrificadas a ídolos, e de sangue, e de coisas estranguladas, e de fornicação.” A evidência bíblica de que isto não foi dito como uma forma de declaração com efeito obrigatório legal será considerada mais adiante neste capítulo. Este assunto é vital visto que é a base principal para o argumento da Sociedade de que as ordenanças da lei Mosaica são transferíveis para o cristianismo. Embora tratemos deste ponto mais adiante, podemos logo dizer que a exortação para se “abster do sangue” refere-se claramente a comer sangue. A Sentinela de 1º de dezembro de 1978 (página 23), de fato, cita o professor Eduard Meyer dizendo que o significado de “sangue” neste texto é “tomar sangue que era proibido pela lei (Gên. 9:4) imposta a Noé, e, assim, também à humanidade como um todo.” Esse “tomar” era por meio de comer.25

Uma questão vital, pois, é se se pode demonstrar que transfundir sangue é o mesmo que “comer” sangue, como pretende a organização Torre de Vigia. Não há, na realidade, base sólida para essa pretensão. Há, é claro, métodos clínicos de “alimentação intravenosa” na qual líquidos especialmente preparados contendo nutrientes, como a glicose, são introduzidos nas veias e fornecem nutrição. Contudo, como sabem as autoridades médicas e como a Sociedade Torre de Vigia às vezes admitiu, uma transfusão de sangue não é alimentação intravenosa; é de fato um transplante (de um tecido fluido), e não infusão de um nutriente.26 No transplante de rim, o rim não é comido como alimento pelo novo corpo em que é introduzido. Continua a ser um rim com a mesma forma e função. Ocorre o mesmo com o sangue. Não é comido como alimento quando “transplantado” para outro corpo. Continua a ser o mesmo tecido fluido, com a mesma forma e função. As células do corpo não podem utilizar esse sangue transplantado como alimento. Para fazê-lo, o sangue teria primeiro de passar pelo sistema digestivo, ser decomposto e preparado de modo que as células do corpo pudessem absorvê-lo — assim, apenas sendo real e literalmente comido é que ele poderia servir de alimento.27

Quando os profissionais médicos acham necessária uma transfusão de sangue não é porque o paciente está subnutrido. Na maioria dos casos é porque o paciente sente falta de oxigênio, não de nutrientes, e isto se deve à falta de portadores de suprimento adequado de oxigênio, a saber, os glóbulos vermelhos do sangue, que levam oxigênio. Em outros casos, administra-se sangue devido à falta de outros fatores, como os agentes coagulantes (como as plaquetas), imunoglobina contendo anticorpos ou outros elementos, mas, novamente, este não é um meio de prover “nutrição.”

No esforço de contornar a evidência de que transfundir sangue não é o mesmo que comer, nem tem como objetivo “nutrir” o corpo, a  Torre de Vigia tenta muitas vezes ampliar arbitrariamente o assunto pondo juntos, ou até substituindo, o termo “nutrir” pela expressão “sustentar a vida.”28 Esta tática de desvio visa apenas confundir a questão. Nutrir o corpo por comer, e sustentar a vida, não são coisas idênticas. Comer é apenas um dos meios de sustentar a vida. Sustentamos a vida de muitos outros modos, igualmente vitais, como respirar, beber água ou outros líquidos, manter o calor do corpo numa temperatura adequada, e dormir ou descansar. Quando se referem ao sangue, as próprias Escrituras não tratam do aspecto amplo de “sustentar a vida,” mas do ato específico de comer sangue, e referem-se claramente a comer o sangue de animais que são mortos. Quando um israelita comia carne que continha sangue, ele não dependia desse sangue para “sustentar” sua vida — a carne sozinha faria isso tão bem sem o sangue como com ele. Se a vida dele era ou não “sustentada” por comer o sangue simplesmente não vinha ao caso. O ato de comer sangue era proibido, e a motivação ou as conseqüências finais por comê-lo não foram mencionadas nas leis do sangue.

A confusão criada no assunto pela introdução injustificada do conceito de “sustentar a vida,” permite à organização Torre de Vigia impor a seus membros a idéia de que a pessoa que aceitar uma transfusão de sangue mostra desprezo pelo resgate vivificante realizado pelo poder salvador do sangue de Cristo, derramado em sacrifício. A duplicidade desta linha de raciocínio é vista no fato de que as frações do sangue que a organização Torre de Vigia permite que seus membros recebam, são geralmente administradas exatamente para salvar ou “sustentar” a vida da pessoa, como no caso do Fator VIII, administrado aos hemofílicos, ou como no caso da imunoglobina, injetada como proteção contra certas doenças perigosas ou para evitar a morte de crianças por incompatibilidade de Rh.29 É injusto e desamoroso condenar a motivação dos que buscam preservar sua vida ou a vida de entes queridos por não se apegarem a certas regras e proibições originadas de uma organização religiosa, fazendo isto por atribuir sua motivação à negação da fé, quando simplesmente não há base bíblica válida, ou qualquer outra, para fazê-lo. Tenta-se sobrecarregá-los com um sentimento de culpa que é imposto por padrões humanos, e não padrões divinos.

 
‘Abstende-vos de sangue’

 

A carta enviada pelos apóstolos e anciãos de Jerusalém, registrada em Atos capítulo 15, usa o termo “abster-se” em relação a coisas sacrificadas a ídolos, sangue, coisas estranguladas e fornicação.30 O termo grego que eles usaram (apékhomai) tem o significado básico de “afastar-se de.” As publicações da Torre de Vigia argumentam que, em relação ao sangue, ele tem um sentido total, abrangente. Assim, a publicação Poderá Viver Para Sempre no Paraíso na Terra, página 216, diz: “‘Abster-se do sangue’ significa definitivamente não introduzi-lo em seu corpo.” De modo similar, A Sentinela de 1º de maio de 1988, página 17, diz: “Andar nas pisadas de Jesus significaria não introduzir sangue no corpo, seja oralmente, seja de outro modo.” Mas será que este termo, como é usado nas Escrituras, tem realmente o sentido absoluto indicado nestas publicações? Ou pode, em vez disso, ter sentido relativo, relacionado com uma aplicação específica e limitada? 

Que pode ser aplicado, não num sentido total, abrangente, mas de modo limitado, específico, pode-se ver no seu uso em textos como 1 Timóteo 4:3. Ali o apóstolo Paulo avisa que alguns professos cristãos introduziriam ensinos de natureza perniciosa, “proibindo o casar-se, mandando abster-se de alimentos que Deus criou para serem tomados com agradecimentos.” Não queria dizer, é claro, que estas pessoas ordenariam a outros que se abstivessem totalmente, sob qualquer forma, de todos os alimentos criados por Deus. Isso significaria jejum total e levaria à morte. Ele referia-se obviamente à proibição de alimentos específicos, evidentemente os proibidos pela lei Mosaica. 

De modo similar, em 1 Pedro 2:11 o apóstolo admoesta:

 

Amados, exorto-vos como a forasteiros e residentes temporários a que vos abstenhais dos desejos carnais, que são os que travam um combate contra a alma.

 

Se tomássemos esta expressão literalmente, em sentido absoluto, significaria que não podemos satisfazer nenhum desejo da carne. Certamente não é esse o significado das palavras do apóstolo. Temos muitos “desejos carnais,” incluindo o desejo de comer, de respirar, de dormir, de recreação e muitos outros desejos, que são perfeitamente apropriados e bons. Portanto, “abster-se de desejos carnais” aplicava-se apenas no contexto do que o apóstolo escreveu, referindo-se, não a todos os desejos carnais, mas apenas a desejos prejudiciais, pecaminosos, que de fato “travam um combate contra a alma.”

A questão, pois, é: em que contexto Tiago e o concílio apostólico usaram a expressão “abster-se” de sangue? O próprio concílio tratava especificamente da tentativa de alguns de exigir que os cristãos gentios fossem, não só circuncidados, mas também “observassem a lei de Moisés.”31 Era esse o assunto a que o apóstolo Pedro se referia, a observância da lei Mosaica, que ele descreveu como “jugo” pesado.32 Quando Tiago falou perante o concílio e recomendou que os cristãos gentios fossem aconselhados a abster-se de certas coisas — coisas poluídas por ídolos, fornicação, coisas estranguladas e sangue — ele declarou em seguida: 

 

Pois, desde os tempos antigos, Moisés tem tido em cidade após cidade os que o pregam, porque ele está sendo lido em voz alta nas sinagogas, cada sábado.33

 

Sua recomendação, portanto, evidentemente levou em conta o que as pessoas ouviam quando ‘Moisés era lido’ nas sinagogas. Tiago sabia que nos tempos antigos havia gentios, “pessoas das nações” que moravam na terra de Israel, residindo no meio da comunidade judaica. Que requisitos lhes impunha a lei Mosaica? Não exigia que fossem  circuncidados, mas exigia que se abstivessem de certas práticas que são descritas no livro de Levítico, capítulos 17 e 18. Essa lei especificava que, não só os israelitas, mas também os “residentes forasteiros” entre eles tinham de abster-se de participar em sacrifícios idólatras (Levítico 17:7-9), de comer sangue, inclusive o de animais mortos não sangrados (Levítico 17:10-16) e de práticas designadas como sexualmente imorais (inclusive incesto e práticas homossexuais). — Levítico 18:6-26.

A própria terra de Israel estava então sob controle gentio, com grande número de judeus vivendo fora dela, em vários países (estes eram chamados de “Diáspora,” que significa os “dispersos”). Tiago sabia que em muitas cidades por todo o império romano a comunidade judaica era como um microcosmo que refletia a situação da Palestina dos tempos antigos, na qual era muito comum os gentios assistirem às reuniões dos judeus na sinagoga, misturando-se assim com eles.34 Os próprios cristãos primitivos, tanto judeus como gentios, continuaram a freqüentar estas reuniões nas sinagogas, e até sabemos que Paulo e outros fizeram ali muito de sua pregação e ensino.35 A referência de Tiago à leitura de Moisés nas sinagogas numa cidade após outra, certamente dá motivos para crer que, ao enumerar as coisas que mencionara imediatamente antes, ele tinha em mente as abstinências que Moisés estabelecera para os gentios que pertenciam à comunidade judaica nos tempos antigos. Como vimos, Tiago alistou não só as mesmíssimas coisas que estão no livro de Levítico, mas até na mesmíssima ordem: abstenção de sacrifícios idólatras, sangue, coisas estranguladas (não sangradas, portanto) e imoralidade sexual. Ele recomendou a observância dessas mesmas coisas por parte dos crentes gentios e a razão evidente para esta abstenção era a situação então prevalecente, a presença de judeus e gentios nas reuniões cristãs e a necessidade de manter paz e harmonia nessa situação. Quando os cristãos gentios foram instados a ‘abster-se de sangue,’ isto devia ser entendido, claramente, não num sentido total e abrangente, mas no sentido específico de refrear-se de comer sangue, algo abominável para os judeus. Levar a questão além disso e tentar fazer do sangue em si mesmo uma espécie de “tabu,” é tirá-la do seu contexto bíblico e histórico e impor-lhe um significado que de fato não existe.36 

É significativo que Tiago não incluiu coisas como assassinato ou  roubo entre as ações de que se deviam abster. Essas coisas já eram condenadas tanto pelos gentios em geral como pelos judeus. Mas os gentios toleravam a idolatria, toleravam comer sangue e comer animais não sangrados e toleravam a imoralidade sexual, tendo até “prostitutas de templo” em locais de adoração. Portanto, as abstenções recomendadas visavam os aspectos dos costumes gentios que eram mais propensos a ofender seriamente os judeus e resultar em atritos e perturbações.37 A lei Mosaica não exigira a circuncisão dos residentes forasteiros como condição para viver em paz em Israel, nem Tiago exigiu isto.

A carta que resultou da recomendação de Tiago foi dirigida especificamente aos cristãos gentios, pessoas “das nações,” em Antioquia, Síria e Cicília (regiões vizinhas ao norte de Israel) e, como vimos, tratava do assunto específico da tentativa de exigir que os crentes gentios “observassem a lei de Moisés.”38 A carta tratava das áreas de conduta mais propensas a criar dificuldades entre os crentes judeus e gentios. Como demonstraremos mais adiante, não há nada que indique que a carta pretendia ser vista como “lei,” como se as quatro abstenções formassem um “Quadrálogo,” em substituição ao “Decálogo” dos Dez Mandamentos da lei Mosaica. Era um conselho específico para uma circunstância específica, prevalecente naquele período da história. 

 

Regras preferenciais

 

Enquanto estava no Corpo Governante, não pude deixar de sentir que havia certa medida de aplicação discriminatória da norma da organização em favor dos que ocupam certas posições profissionais. Os professores podem ensinar a evolução como matéria, fazendo-o do “ponto de vista puramente objetivo” e de preferência explicando antes à turma sua opinião divergente.39 Como já vimos, os advogados são autorizados a servir em centros de eleições políticas. O mais incrível de tudo, porém, talvez seja que os médicos não só podem pertencer a organizações médicas que aprovam práticas como transfusões de sangue e abortos, como podem também, eles próprios, administrar uma transfusão de sangue a um paciente que não é Testemunha e que a peça.40 O raciocínio por trás disto baseia-se na lei Mosaica que permitia aos israelitas vender a estrangeiros a carne de animais que não tivessem sido sangrados!41 Todavia, o sangue daqueles animais ainda estava em seus corpos, onde sempre estivera; não fora extraído nem armazenado, processo que a organização condena como falta de respeito pela lei de Deus.42 Todo o forte apelo para mostrar “profundo respeito pela santidade do sangue,” todas as advertências sobre a culpa de sangue relacionada a qualquer mau uso do sangue, toda a argumentação condenando qualquer armazenagem de sangue como desrespeito pelas leis de Deus, subitamente perdem a força quando estão envolvidos esses médicos Testemunhas.43 

Com toda a sinceridade, e sem querer ofender ninguém, quando revejo as várias ordenanças, regras, normas e detalhes técnicos da organização que foram considerados, só posso pensar que se um indivíduo usasse nos assuntos mais “corriqueiros” da vida diária o tipo de raciocínio refletido nessas posições e regras, as pessoas se veriam obrigadas a questionar sua sanidade mental.

 

Por que as pessoas aceitam isto?

 

No seu tempo, o apóstolo Paulo falou dos que queriam “estar debaixo de lei.” (Gálatas 4:21) Muitos hoje ainda querem. Ao contrário dos judaizantes dos dias de Paulo, os homens podem não advogar a submissão à lei Mosaica, mas por meio de uma abordagem legalista do cristianismo convertem-no num código de leis, num conjunto de regras. Criam um tipo de escravidão a regras e normas tradicionais, e são estas que governam o relacionamento das pessoas com Deus.

Mas por que se submetem outros a tais imposições? O que faz com que as pessoas abram mão da preciosa liberdade de exercer seu próprio julgamento moral, inclusive nas áreas mais privadas das suas vidas? O que as leva a submeter-se às interpretações e regras de homens imperfeitos, mesmo com o risco de perder o emprego, ser presas, colocar seus casamentos sob grande tensão e até arriscar a própria vida ou a de seus entes queridos? 

Há vários fatores. Podem ser as pressões sociais e familiares, sendo a conformidade o meio de evitar discordâncias e até conflitos. Pode ser o enorme e paralisante temor da rejeição divina e da eventual destruição se a pessoa se aventurar fora da “arca” organizacional. Mas há outra razão que é talvez mais básica, e que está muitas vezes na própria raiz do problema. 

A maioria das pessoas gosta que as coisas sejam pretas ou brancas, que sejam nitidamente catalogadas para elas como certas ou erradas. Tomar decisões com base na própria consciência pode ser difícil e às vezes torturante. Muitos preferem não fazer esse esforço, preferem simplesmente deixar que alguém lhes diga o que fazer, atue como consciência deles. Foi isto que permitiu o desenvolvimento do controle rabínico e do corpo de tradições rabínicas nos dias de Jesus. Em vez de decidir algo com base na Palavra de Deus e na consciência pessoal, tratava-se de “perguntar ao Rabi.” Entre as Testemunhas de Jeová isto inegavelmente transformou-se em “Pergunte à organização,” ou simplesmente “Pergunte a Brooklyn.”

Outra razão é a sutileza com que tais raciocínios e interpretações legais são apresentados e impostos. A ênfase religiosa à lei, o legalismo, tem sido consistentemente marcado pelo uso de tecnicismos e sofismas, raciocínios que não só são sutis mas também plausíveis, às vezes até engenhosos — e no entanto, falsos. Desmontar tais raciocínios e reconhecê-los como o que realmente são exige esforço, esforço que muitos não estão dispostos a fazer e que outros simplesmente parecem incapazes de realizar. 

Considere só dois exemplos de antigas fontes rabínicas. Nos tempos antigos, os “instrutores da lei” tentaram tornar mais explícita a ordem de Êxodo 16:29 (“Ninguém saia do seu lugar no sétimo dia”). Determinaram que, no sábado, um homem só poderia caminhar certa distância (pouco mais de 1 quilômetro) fora do limite externo de sua cidade ou aldeia. Esta era chamada de “jornada de um sábado” (expressão em uso no tempo de Jesus; veja Atos 1:12). Havia, porém, uma maneira de um homem fazer uma viagem mais longa que essa e, do ponto de vista rabínico, ainda estar em condição “legal.” Como?

Ele podia, com efeito, “criar” um segundo domicílio em alguma casa ou lugar fora da sua localidade (mas ainda dentro do limite de cerca de 1 quilômetro) simplesmente por depositar nesse local, no dia anterior ao sábado, mantimentos para no mínimo duas refeições. Depois, no sábado, ele podia caminhar para esse segundo “domicílio” e em seguida deixá-lo e estender a sua viagem por mais 1 quilômetro.

A declaração de Jeremias 17:22, que proíbe tirar qualquer “carga dos vossos lares no dia de sábado,” foi igualmente ampliada. Os instrutores da lei raciocinaram que não era proibido carregar coisas de uma parte para outra de uma casa, mesmo sendo a casa ocupada por mais de uma família. Assim, resolveram que as pessoas que morassem em casas dentro de certo setor (como as que vivem em casas construí-das ao redor de um pátio comum), podiam construir uma passagem “legal” para todo o setor erguendo umbrais na entrada da rua para o setor, talvez com uma trave por cima como verga da porta. Agora, o todo o setor era visto como se fosse um só domicílio e podia-se carregar coisas duma casa para outra dentro da área, sem violar a lei.44

Compare agora esse método de raciocínio e o uso de tecnicismos com o método que a Sociedade Torre de Vigia usa quando aplica suas regras relativas a certos aspectos da prática médica. A Sentinela de 1° de março de 1989, na seção “Perguntas dos Leitores,” considera o método de retirar sangue do paciente algum tempo antes da operação e armazená-lo para reutilização durante a operação ou depois. Daí, diz categoricamente que as Testemunhas de Jeová “NÃO aceitam este procedimento.” A razão? O sangue “não é mais parte da pessoa.” Cita o texto de Deuteronômio 12:24, que diz que o sangue de um animal que foi morto tem de ser derramado na terra. Por algum raciocínio, esta lei a respeito de matar animais é vista como se apresentasse uma situação paralela ao caso da armazenagem do sangue de uma pessoa viva, como acabamos de descrever.

Mas, depois, o artigo considera outro método, no qual, durante a operação, o sangue do paciente é desviado para uma bomba cárdio-pulmonar ou máquina de hemodiálise (rim artificial) para ser oxigenado ou filtrado antes de retornar ao corpo do paciente. O artigo informa os leitores de que, ao contrário do outro método, este pode ser encarado como aceitável pelo cristão. Por quê? Porque o cristão pode vê-lo “como uma extensão de seu sistema circulatório de tal modo que o sangue possa passar através de um órgão artificial,” e portanto pode considerar “o sangue nesse circuito fechado como ainda dele e não necessitando ser ‘derramado.’”

Que diferença existe entre esta “extensão” do sistema circulatório e o legalismo rabínico que permitia a “extensão” da jornada de um dia de sábado por uma certa distância por meio do tecnicismo de um segundo domicílio artificial? Ou até que ponto é esta classificação do sangue como estando tecnicamente num “circuito fechado” diferente do antigo legalismo de fazer um “circuito fechado” em um certo número de casas através de uma passagem artificial? O mesmo tipo de raciocínio casuísta e uso legalista de tecnicismos é utilizado em ambos os casos, antigo e moderno.

No seu próprio íntimo muitas Testemunhas talvez achem que o primeiro método, aquele em que a pessoa armazena o seu próprio sangue, não é na realidade mais contrário às Escrituras do que o segundo método, o de fazer o sangue circular através de uma máquina coração-pulmão artificial. No entanto, eles não estão livres para seguir sua própria consciência. A vida duma pessoa pode estar em jogo, mas os raciocínios interpretativos e os tecnicismos da Torre de Vigia têm de ser observados, pois são parte do “grande conjunto de lei Teocrática.” Deixar de obedecer seria correr o risco da desassociação.

 

A fraqueza da lei e o poder do amor

 

A lei amiúde produz uma conformidade exterior que disfarça o que as pessoas são no íntimo. Nos dias de Jesus, ela permitia aos líderes religiosos, por escrupulosamente ‘viverem segundo as regras,’ “por fora parecerem justos aos homens, mas por dentro [estarem] cheios de hipocrisia e de iniqüinidade.”45 Funciona do mesmo modo em nossa época. 

A lei, portanto, é menos eficaz nas áreas que são mais intimamente relacionadas com o coração. A lei pode identificar e punir um ladrão. Mas não pode fazer o mesmo com o homem que obedece a lei, mas que também é ganancioso, e cuja ganância e mesquinhez fazem os outros sofrer. A lei pode condenar e até executar o assassino. Mas pouco pode fazer para processar o homem que odeia, que tem ciúme, inveja, ou rancor e que procura a vingança, especialmente se ele tiver cuidado em fazer isso por meios “legítimos.” Conheci homens dessa espécie, mesmo em postos elevados.

Podemos ver um contraste notável entre a abordagem legalista do controle por meio de “normas,” regras e regulamentos, e a abordagem adotada pelo apóstolo Paulo quando admoestou contra a prática do mal. Seu apelo deu ênfase primária, não à lei, mas ao amor. Assim, na sua carta aos Romanos, ele escreve:

 

A ninguém fiqueis devendo coisa alguma, exceto que vos ameis uns aos outros; pois, quem ama o seu próximo tem cumprido a lei. Pois o código da lei: “Não deves cometer adultério, não deves assassinar, não deves furtar, não deves cobiçar”, e qualquer outro mandamento que haja, está englobado nesta palavra, a saber: “Tens de amar o teu próximo como a ti mesmo.” O amor não obra o mal para com o próximo; portanto, o amor é o cumprimento da lei.46  

 

Paulo exemplificou esta abordagem ao lidar com problemas. Um exemplo notável é o da questão de comer alimento oferecido a ídolos (uma das quatro coisas alistadas na carta registrada em Atos capítulo 15). Em Corinto, alguns cristãos até estavam indo a templos de ídolos onde essa carne sacrificada era depois cozida e servida (por um preço) nos recintos do templo pagão. Para um cristão, comer ali era, aos olhos de muitos de seus condiscípulos — especialmente os de origem judaica — indubitavelmente comparável ao modo como as Testemunhas de Jeová veriam hoje um de seus membros participar de uma ceia na igreja, consistindo em alimento previamente abençoado pelos padres e servido na catedral católica romana de São Patrício em Nova York, com o dinheiro pago pela refeição revertendo para a igreja. Embora o ponto de vista possa ser comparável, a questão em si era muito mais séria. Como, então, tratou o apóstolo do assunto? 

Ameaçou ele os que comiam esta carne, advertindo-os dos procedimentos judicativos e da provável desassociação? Apelou para a lei, um conjunto de regras, como meio de restringir esta prática? Ao contrário, ele mostrou que a ação em si mesma não era condenável. Mas poderia ter conseqüências indesejáveis, e até trágicas. Aconselhando com base, não na lei, mas no amor, ele escreveu: 

 

Na verdade, como se diz, “todos nós temos conhecimento.” Porém esse tal conhecimento enche a pessoa de orgulho; mas o amor edifica. Se alguém pensa que sabe alguma coisa, de fato ainda não sabe tanto quanto devia saber. Mas quem ama Deus é conhecido por ele.

Portanto, a respeito da comida oferecida aos ídolos, nós sabemos que um ídolo representa alguma coisa que realmente não existe. Sabemos que há somente um Deus . . . Mas nem todos conhecem essa verdade. Há pessoas tão acostumadas com os ídolos, que até agora, quando comem, ainda pensam que aquela comida pertence aos ídolos. A consciência delas é fraca, e por isso se sentem contaminadas pela comida . . . Portanto, tenham cuidado para que a liberdade de vocês não faça que os fracos na fé caiam em pecado. Se alguém que tem a consciência fraca neste assunto vir você, que tem “conhecimento”, comendo no templo de um ídolo, será que ele não vai querer também comer comida oferecida aos ídolos? Assim este cristão fraco, este seu irmão por quem Cristo morreu, vai se perder por causa do “conhecimento” que você tem! Desse modo, pecando [isto é, pelo mau uso da liberdade cristã] contra o seu irmão e ferindo a consciência dele, você estará pecando contra Cristo.47

 

Se alguém comia ou não comia, portanto, não dependeria da lei e do receio de ser considerado culpado de violar uma lei. Dependeria do amor e do receio de não prejudicar um irmão “por quem Cristo morreu” — realmente uma atitude superior que faria o cristão revelar o que tinha no coração, e não simplesmente a submissão a uma regra.

O mesmo conselho demonstra que o apóstolo não encarava a decisão dos apóstolos e outros em Jerusalém (registrada no capítulo 15 de Atos) como uma “lei.” Se fosse uma lei, Paulo nunca teria escrito como fez aos cristãos em Corinto, dizendo francamente que comer ou não comer alimento oferecido a ídolos era questão de consciência, e o fator determinante era se comer faria outros tropeçar ou não. Encarar a carta de Jerusalém como lei e, com base nisso, pretender que sua menção ao sangue indica que os cristãos permanecem sob as ordenanças da lei Mosaica a respeito do sangue, é ignorar claramente as declarações do apóstolo Paulo, na questão dos “alimentos oferecidos a ídolos,” mostrando que tal raciocínio não é válido.48 Se nenhum tropeço era provável, ninguém então podia corretamente julgar Paulo ou algum outro cristão por comer tal alimento. Como Paulo declara:

 

Pois, por que haveria de ser julgada a minha liberdade pela consciência de outra pessoa? Se estou participando com agradecimentos, por que se há de falar de mim de modo ultrajante por causa daquilo pelo qual dou graças?49

 

A liberdade cristã nunca deve tornar-nos insensíveis à consciência e aos escrúpulos dos outros. Ao mesmo tempo, ninguém tem o direito de impor sua consciência aos outros, colocando desta forma limites à liberdade que estes usufruem em Cristo. E nenhum grupo ou corpo seleto de homens, atribuindo a si mesmos o papel de executores da autoridade apostólica, tem o direito de impor sua consciência coletiva aos outros, emitindo decretos com base nisso.

Vimos no capítulo anterior a distinção entre lei e preceito, uma que deriva sua força pela imposição da autoridade, o outro que transmite princípios pelo ensino. Jesus ensinou regularmente por parábolas, histórias que não continham leis mas traziam vigorosamente à atenção, preceitos, lições morais vitais. A parábola do filho pródigo não estabelece a lei de que se deve receber de volta os filhos desobedientes, dar-lhes um banquete e assim por diante. Mas enfatiza o espírito amoroso, a atitude generosa, misericordiosa. Encontramos nas Escrituras uma combinação de métodos — há ordens firmes, é verdade, mas há também relatos apresentando modos de vida aprovados (viver em amor, manter relações pacíficas com outros); há respostas para questões muito contextuais. Paulo, por exemplo, res-ponde a várias delas mas claramente não faz isso estabelecendo leis, e sim dando sólido conselho espiritual, destinado à questão específica.

 

Quão genuína é a unidade conseguida?

 

É verdade que por estabelecer um controle legal sobre outros pode-se conseguir certa unidade e ordem. Mas quão genuína é? Não são, de fato, unidade e ordem baseadas na uniformidade e na conformidade? Por outro lado, será que a recusa em permitir que homens exerçam, através da interpretação legalista, controle sobre a vida pessoal dos outros, vai contra a verdadeira unidade e coesão? Significa que cada um toma seu próprio rumo, à sua vontade, auto-suficiente e auto-satisfeito? Não precisa nem deve ser assim ¾ se a pessoa aceitar genuinamente a liderança Daquele que dá tal liberdade.

Assim como não se pode amar o Deus invisível e ao mesmo tempo odiar o próximo, também não se pode estar unido ao Filho invisível de Deus e em desacordo ou isolado de todos os outros que estão igualmente unidos e que se submetem humildemente à mesma liderança.50 Segundo as Escrituras, é o amor, e não ser membro de uma organização, que é “o perfeito vínculo de união,” pois o amor é longânime, benigno, não é ciumento, não se gaba, não se enfuna, nem procura os próprios interesses, mas procura o bem dos outros.51

O amor não obriga as pessoas a ter um relacionamento coeso; ele cordialmente atrai umas às outras. Qualquer pretensa unidade cristã firmada em outra base é fictícia, não genuína, e só pode ser mantida por meios não cristãos.

 

A bênção da liberdade cristã

 

Um conjunto de regras incrivelmente complexo vigora hoje entre as Testemunhas de Jeová e toma delas o uso da consciência pessoal numa área muito ampla da vida e da conduta, sujeitando-as a um órgão legislador eclesiástico e supremo tribunal composto de alguns homens falíveis.52 Como ex-membro desse órgão legislador e tribunal, estou convicto de que a raiz de todo o problema está em não se reconhecer a verdade de que, como cristãos, não estamos mais debaixo de lei, mas da benignidade imerecida de Deus através de Cristo. Através do Filho de Deus, podemos alegrar-nos de estar livres da lei, regozijar-nos na justiça que resulta, não de guardar a lei, mas da fé e do amor. 

Deixar de apreciar esta provisão divina, duvidar de que é realmente possível uma Pessoa invisível exercer liderança e direção efetivas sobre seus seguidores sem uma estrutura de autoridade altamente organizada, visível, servindo de tribunal religioso, e a relutância em crer que as pessoas podem se proteger contra a má conduta sem estar rodeadas por uma “cerca” de leis, regras e decretos — é isto que faz com que muitas pessoas, talvez a maioria, se choquem com a idéia de não estar debaixo de lei, e é por isso que rejeitam essa idéia, não só como impraticável, mas também perigosa, perniciosa, que conduz à licenciosidade. Isso faz com que sejam facilmente influencidas e convencidas pelos argumentos dos que querem estabelecer — usando os termos da Torre de Vigia — um “arranjo legal de controle,” que é “imposto” humanamente por um sistema judiciário religioso.

É pelo fato de o Espírito santo de Deus, concedido através de Jesus Cristo, ter força superior à da lei, através do seu poder que motiva o cristão a amar a Deus e ao próximo, que o apóstolo pôde dizer: 

 

Mas, se vocês são guiados pelo Espírito, não estão debaixo da Lei . . . o fruto do Espírito é amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio próprio. Contra essas coisas não há lei.53

 

Esta é a grandeza da liberdade cristã, saber que se pode usufruir o livre e espontâneo exercício dessas qualidades divinas sem que uma autoridade religiosa tenha o direito de interferir e anular expressões de amor, bondade, brandura ou qualquer outra dessas qualidades. Pode-se fazer isto livre de ansiedade, sabendo que “não há lei” nem conjunto de regras que nos refreie de fazer aquilo de que estamos convencidos, nos corações, que é a coisa certa, boa, amável e amorosa a fazer, aprovada por Deus, mesmo que desaprovada por certos homens.

Seguramente, então, não estarmos debaixo de lei mas debaixo da benignidade imerecida de Deus de modo algum diminui nosso sentimento de responsabilidade como libertados por Cristo. De fato, o aumenta. Pois sabemos que nossa obrigação é: “falai, pois, e agi como os que hão de ser julgados [não por um código de leis ou por um conjunto de padrões humanos, mas] pela Lei da liberdade, porque o julgamento será sem misericórdia para aquele que não pratica a misericórdia. A misericórdia, porém, desdenha o julgamento.”54 Essa “lei da liberdade” é a que o discípulo Tiago acabara de mencionar na sua carta como a “lei soberana” ou “lei suprema,” a saber, “Tendes de amar o vosso próximo como a vós mesmos.”

Existe um efeito purificador, que fortalece o coração, em saber que agradarmos ao nosso Pai celestial será determinado, não por termos vivido segundo a lei, um “conjunto de regras,” mas por termos vivido segundo o amor. O Filho de Deus, nosso Cabeça e Amo, que nos concede a liberdade de não guardar a lei — e dos que querem impor leis religiosas humanas — deu exemplo desse amor por nós. Por isso, não precisamos nos concentrar em memorizar nenhum conjunto complexo de regras e normas organizacionais, nem sequer pensar em termos de lei. Em vez disso, concentramos a atenção no Filho de Deus e no que aprendemos dele através da Palavra de Deus e procuramos fielmente seguir na nossa própria vida o exemplo da vida dele.

 

1         Romanos 14:22, 23, BJ.

2         Estas posições são expostas na revista Despertai! de 22 de dezembro de 1982, que traz a reimpressão dum artigo publicado no The Journal of the American Medical Association (edição de novembro de 1981). O artigo foi preparado pela Sociedade Torre de Vigia e expressa a posição das Testemunhas de Jeová quanto ao sangue.

3         Comentário feito pelo Dr. Lowell Dixon, ex-médico da equipe, autor ou co-autor de vários artigos sobre a questão do sangue publicados pela Torre de Vigia.

4         Uma informação pedida à Cruz Vermelha de Atlanta, EUA, em 22 de janeiro de 1990, revelou que apenas 6 por cento de todo o sangue doado vai para os hospitais como sangue total, e os outros 94 por cento são divididos em seus componentes.

5         The Encyclopedia Britannica, Vol. 3 (1969), página 795; The Encyclopedia Americana, Edição Internacional , Vol. 4, 1989, página 91.

6         Curiosamente, a água, que compõe a maior parte do plasma, livremente “se move para dentro e para fora da corrente sangüínea com grande rapidez” e junta-se à água das células do corpo e dos fluidos extra-celulares. Portanto, ela nunca é um componente constante da corrente sangüínea.(The New Encyclopedia Britannica,Volume 15, 1987, páginas 129, 131.)

7         The New Encyclopedia Britannica, Macropédia, Vol.15 (1987), página 135, indica que “A maioria dos leucócitos  estão fora da circulação, e os poucos que estão na corrente estão em trânsito de um local para outro.” Classificá-los como um “componente maior do sangue” é algo assim como dizer que os passageiros de um trem são componentes ou parte integral da equipe em serviço no trem. O Dr. C. Guyton, no The Textbook of Medical Physiology (7ª ed. Saunders Company, Filadélfia), página 52, explica que a razão principal de os leucócitos estarem presentes no corpo “é simplesmente para serem transportados da medula óssea ou do tecido linfático para as áreas do corpo em que são necessários.”

8         Há evidência de que a cifra apresentada no gráfico da Despertai! não é exata e que o percentual de leucócitos pode aproximar-se de cerca de 1% do volume total do sangue. De qualquer modo, a fração é tão pequena que a Despertai! nem tenta mostrá-la no tubo de ensaio do gráfico, e está incluída entre as plaquetas que, como se observa, constituem elas próprias cerca de 2/10 de 1 por cento do total do sangue. Estão também na lista dos componentes proibidos.

9         The New Encyclopedia Britannica, Macropédia, Vol. 15 (1987), página 135; J. H. Green, Uma Introdução à Fisiologia Humana, 4a ed. (Oxford: Oxford University Press, 1976, página 16). Sobre a quantidade de leucócitos no leite humano, veja Armond S. Goldman, Anthony J. Ham Pong e Randall M. Goldblum, “Defesas do Hospedeiro: Desenvolvimento e Contribuições  Maternas,” Anuário de Pediatria; Chicago: Year Book Medical Publishers, Inc., 1985), página 87.

10      Gênesis 9:3, 4; Levítico 7:26, 27; 17:11–14; Deuteronômio 12:22–24.

11      Existem cerca de 50 gramas de albumina num litro de sangue. Portanto, para obter 600 gramas, são necessários cerca de 12 litros de sangue.

12      Este número foi obtido dividindo-se a quantidade de gama-globulina numa seringa pela quantidade encontrada num litro de sangue.

13      Em 1900 era de apenas 11 anos.

14      Esta estimativa é muito conservadora. O verdadeiro número é provavelmente muito maior na maioria dos casos. A Sentinela de 1° de outubro de 1985 (página 23) afirma que “cada lote de Fator VIII é fabricado do plasma coletado de até 2.500 doadores de sangue.” 

15      A posição da organização sobre isto é exposta com muitos detalhes técnicos e raciocínios na Sentinela de 1° de março de 1989, páginas 30 e 31.

16      Veja a Despertai! de 22 de dezembro de 1982, página 22;  A Sentinela de 1° de dezembro de 1978, páginas 30, 31. Estabeleceu-se esta regra no período em que o risco da AIDS — embora então não se soubesse — era alto; desde essa época, testes de triagem e tratamento por calor têm reduzido grandemente o risco desta infecção relacionada com o sangue.

17      Veja a Despertai! de 22 de dezembro de 1982, página 22.

18      Elisabeth Rosenthal, no artigo intitulado “Cegados pela Luz,” revista Discover, agosto de 1988, páginas 28-30.

19      Em 1970, minha esposa teve uma hemorragia que quase lhe causou a morte, quando sua contagem de plaquetas caiu do padrão normal de 200.000 a 400.000 por milímetro cúbico para cerca de 15.000 por milímetro cúbico. Após dias de hemorragia grave, ela foi internada num hospital de Brooklyn e tanto ela como eu deixamos clara nossa rejeição a plaquetas ou quaisquer outros produtos derivados do sangue (incluindo os que depois foram considerados “permitidos” pela organização.) Felizmente, duas semanas depois e tendo continuado com a terapia de prednisona, ela recuperou basicamente a saúde. O que digo neste livro, portanto, não é motivado por alguma relutância pessoal em suportar a perda de um ente querido se eu acreditasse que a obediência à vontade de Deus exigia isso.

20      Romanos 6:14; 10:4; Hebreus 8:6, 13.

21      Contrário às afirmações da Torre de Vigia, o sangue em si, nas Escrituras, representa consistentemente, não a vida, mas a morte, equivalendo figurativamente à vida perdida ou sacrificada. Confira Gênesis 4:10, 11; 37:26; 42:22; Êxodo 12:5-7 (compare este texto com 1 Pedro 1:18, 19); Êxodo 24:5-8; Mateus 23:35; 26:28; 27:24, 25, e assim por diante. Quando faz parte de uma criatura vivente, pode-se dizer, então, que o sangue representa a vida ou uma “alma” vivente.

22      Levítico 17:13, 14; Deuteronômio 12:15, 16, 24, 25.

23      Conforme observou George Christoulas, dar ao sangue, como símbolo, importância maior que à própria vida é como se um homem desse maior importância à sua aliança de casamento (símbolo do seu estado de casado) que ao seu próprio casamento, ou à sua esposa. É como se ele, obrigado a escolher entre o sacrifício da sua esposa ou o sacrifício da sua aliança de casamento, optasse por salvar a aliança.

24      Romanos 3:27; 6:14; 10:4; Gálatas 3:10, 11, 23-25; Tiago 2:8, 12.

25      A Sentinela de 1° de fevereiro de 1959 (páginas 95, 96), declara: “Cada vez que se menciona a proibição do sangue nas Escrituras, é em relação com tomá-lo como alimento, é como nutrição que nos interessa sua proibição.” Esta ainda parece ser a posição básica e por isso a Sociedade ainda argumenta que uma transfusão de sangue é o mesmo que comer sangue, introduzi-lo no corpo como alimento.

26      Despertai! de 22 de outubro de 1990, página 9. Na tentativa de angariar apoio médico para seu conceito de sangue transplantado ser “alimento” para o corpo, as publicações da Torre de Vigia têm sempre recorrido a citações de alguma fonte médica de séculos anteriores, como o francês Denys, do século 17. (Veja, por exemplo,  A Sentinela de 15 de abril de 1985, página 13.) Elas não conseguem citar uma única autoridade moderna em apoio a este conceito.

27      A Sociedade Torre de Vigia tem, às vezes, comparado a transfusão com injetar álcool nas veias. Mas o álcool é um líquido bem diferente, já está numa forma que as células do corpo podem absorver como nutriente. O álcool e o sangue são completamente diferentes neste aspecto.

28      Veja, por exemplo, A Sentinela de 1° de março de 1989, página 30; 15 de abril de 1985, página 12.

29      Veja, por exemplo, A Sentinela de 1° de junho de 1990, páginas 30, 31. O apóstolo Pedro declara que Cristo “sobre o madeiro, levou os nossos pecados em seu próprio corpo, a fim de que, mortos para os nossos pecados, vivêssemos para a justiça. Por suas feridas fostes curados.” (1 Pedro 2:24, BJ; compare com Isaías 53:4, 5; Atos 28:27.) Mas isto certamente não justifica dizer que o fato de uma pessoa tentar curar feridas ou outras problemas físicos recorrendo a tratamento médico é equivalente a mostrar falta de apreço pelo poder curativo de Cristo nesses aspectos espirituais vitais.

30      Atos 15:20, 29.

31      Atos 15:5.

32      Atos 15: 10.

33      Atos 15:19-21.

34      Confira Atos 13:44-48; 14:1; 17:1-5, 10-12, 15-17; 18:4.

35      Confira Atos 18:1-4, 24-28.

36      Aqui, uma vez mais, se atribuíssemos um sentido absoluto à expressão ‘abster-se do sangue,’ encarando-a como um tipo de proibição total, significaria que não poderíamos nos submeter a nenhum tipo de análise de sangue, não poderíamos nos submeter a cirurgias a menos que fossem do tipo que não envolve sangue, e teríamos de “permanecer afastados” do sangue de outras maneiras e em todos os aspectos. O contexto não dá nenhuma indicação de que se pretendia essa proibição total, indicando em vez disso que a injunção dirigia-se especificamente à própria ação de comer  sangue.

37      Já em 15 de abril de 1909, A Sentinela reconhecia que era esta a intenção da carta, ao dizer (página 117): “As coisas aqui recomendadas eram necessárias para a preservação da boa convivência no ‘corpo’ composto por judeus e gentios com sua formação e sentimentos diferentes.”

38      Atos 15:5, 23-29.

39      Isto é considerado no proposto Guia de Correspondência, sob “Escolas, Educação Secular.”

40      Veja A Sentinela de 1° de junho de 1965, páginas 330, 331; também A Sentinela de 1° de outubro de 1975, página 600, sobre fazer exames de sangue para transfusões. O Guia de Correspondência revisto (tal como foi proposto) diz que o médico ou enfermeira podem administrar tal transfusão se lhe forem “mandados por um superior.”

41      Deuteronômio 14:21.

42      Deve-se notar que a mesma Sentinela de 1° de junho de 1965 também deixa como questão de consciência que um merceeiro ou açougueiro venda morcela (chouriço) “a pessoas do mundo.” Parece que, tendo decidido usar esta parte da lei Mosaica para justificar a posição tolerante em relação aos profissionais médicos, o autor da matéria achou necessário incluir também este comentário sobre merceeiros e açougueiros. Mais uma vez, contudo, isto não é vender carne de animais não sangrados, e sim vender um produto fabricado por meio da coleta, do armazenagem e do processamento de sangue — condenados em todas as outras situações pela norma da Torre de Vigia.

43      Nos Estados Unidos, as Testemunhas que são médicos e advogados têm encontros anuais para discutir assuntos como “confidencialidade e privilégios” nas suas relações com outras Testemunhas, e tópicos similares. Duvido sinceramente que outras Testemunhas com profissões menos conceituadas pudessem fazer reuniões semelhantes sem que estas fossem encaradas desfavoravelmente ou desencorajadas pela organização.

44      Veja Judaísmo (em inglês) Vol. II,  George Foot Moore (Cambridge, Harvard University Press, 1954), páginas 31, 32.

45      Mateus 23:27, 28, BJ.

46      Romanos 13:8-10, NM.

47      1 Coríntios 8:1-12, BLH.

48      Com respeito à imoralidade sexual (ou "fornicação," em algumas traduções), também incluída na carta de Jerusalém, o apóstolo não apresenta isto como algo que pode ser certo ou errado, dependendo de causar tropeço ou não. Ele evidentemente a encarava como não tendo nenhuma justificativa. No entanto, também não se apresenta nenhuma regra legal como necessária para que o cristão reconheça a necessidade de evitar a imoralidade sexual. Conforme Paulo observa em 1 Coríntios 6:13-19, se a pessoa é guiada pela lei do amor, achará isso inadmissível, reconhecendo a imoralidade sexual como mau uso do seu corpo, que está em união com Cristo. (Veja também 1 Tessalonicenses 4:3-6.)

49      1 Coríntios 10:29, 30, NM.

50      1 João 4:20; 1 Coríntios 12:12-26; Efésios 4:15, 16.

51      Colossenses 3:14, 1 Coríntios 13:4-7.

52      Numa carta escrita por Leslie R. Long, advogado da Torre de Vigia, datada de 29 de março de 1987, ele se refere a uma comissão judicativa congregacional como “um tribunal eclesiástico.” Se o termo se aplica a nível congregacional, é muito mais aplicável no nível mais elevado, onde o Corpo Governante atua como um supremo “tribunal eclesiástico.”

53      Gálatas 5:18, 22, 23, NVI.

54      Tiago 2:12, 13, BJ.