Prefácio


 

 

 

V

ÁRIOS ANOS se passaram desde minha renúncia ao Corpo Governante das Testemunhas de Jeová, órgão que internacionalmente dirige e controla a adoração e, de modo significativo, as idéias, a expressão e as próprias vidas de milhões de membros desse movimento religioso. Os eventos que levaram à minha renúncia e os acontecimentos subseqüentes que resultaram em minha excomunhão do movimento já foram detalhados numa obra anterior, Crise de Consciência. Sua primeira edição encerrava-se com essas palavras:

 

Sou grato por ter conseguido tornar disponível a informação que creio que outras pessoas têm o direito de conhecer. Há muito mais que poderia ser dito, talvez que precise ser dito, para que se tenha um quadro completo. Mas o tempo, a vida e as circunstâncias permitam ou não, estou contente em deixar que os resultados do que agora foi dito descansem nas mãos de Deus.

 

Eu tinha então 61 anos de idade. Nos anos que se passaram tenho recebido milhares de cartas e telefonemas de todas as partes da Terra. Muitos que me contataram eram ex-Testemunhas, quase tantos quanto os ainda associados com a organização, representando praticamente todos os níveis da sua estrutura. Os contatos vieram de pessoas que tinham ocupado ou, em alguns casos ainda ocupavam, posições como pioneiro, pioneiro especial, missionário, servo ministerial, ancião, superintendente de cidade, superintendente de circuito, superintendente de distrito e coordenador de filial. Centenas dos que escreveram ou telefonaram tinham sido, outrora, membros da equipe da sede mundial em Brooklyn, ou das equipes dos escritórios de filial em outros países, ou tinham servido como missionários no estrangeiro. A seguir, farei citações de algumas cartas recebidas. O objetivo não é a auto-promoção, mas mostrar o interesse transmitido, o tipo de atitude dos que escreveram, as qualidades de coração que as próprias pessoas revelaram.

No conjunto, suas declarações tornaram evidente que as informações providas em Crise de Consciência tinham atendido uma necessidade específica. Os debates do Corpo Governante, seus processos doutrinais e de tomada de decisões, e o método de elaboração das matérias escritas, das quais todos os adeptos se alimentam, são todos encobertos por um manto de sigilo. Muitas Testemunhas, incluindo anciãos e outros em posições de responsabilidade, sentem sérias preocupações, mas sentem dificuldade em “encaixar todas as peças.” Crise de Consciência forneceu fatos que anteriormente lhes eram inacessíveis. Estes, evidentemente, serviram de “catalisador,” colocando juntos os elementos dos problemas que eles já haviam discernido dentro da organização e ajudando-os a entender a causa desses problemas. A informação resultou em libertá-los duma falsa sensação de culpa, criada pelo conceito de que o serviço deles a Deus deve ser através duma organização, isto é, da organização Torre de Vigia. A informação serviu para dissipar o sensação de estar apartado de Deus, exclusivamente pelo fato de se ter sido expulso ou separado da organização.

Ilustra isso a carta de um homem da Austrália que, juntamente com a esposa, tinha passado 40 anos bem ativos na organização Torre de Vigia, e, em virtude de não poder aceitar certos dogmas e diretrizes da organização, foi declarado “dissociado” em 1984. Ele escreveu:

 

Membros de minha família pediram-me que escrevesse, para expressar sua profunda gratidão pela tremenda ajuda que Crise de Consciência nos deu, ao esclarecer e ampliar nosso entendimento de assuntos que, por muitos anos, nos haviam causado preocupação e angústia. Por terem pontos de vista que eram tolerantes com nossa posição [de não nos associarmos mais com a organização], meu filho e a esposa dele foram desassociados do movimento em 1986 . . .

Este livro deu grande contribuição em nos manter juntos como família durante a maior crise de nossas vidas, que começou com nosso afastamento do movimento, e ajudou-nos a ficar de pé em sentido espiritual e a fazer decisões morais baseadas na nossa própria integridade, ao invés de nas normas do movimento.

 

Uma jovem que passara muitos anos como “pioneira” de tempo integral e depois membro do pessoal da sede mundial da Torre de Vigia, revela a dificuldade que pode trazer a transição da condição de zeloso “membro da organização” para a de viver na verdadeira relação pessoal que Deus pode prover. Escrevendo da Pensilvânia, ela diz:

 

Seu relato do acontecido a nível organizacional, bem como pessoal, serviu-me para abrir os olhos e o coração, mas também confirmou muito do que eu vinha sentindo ao longo dos anos . . .

Antes de ler seu livro eu não tinha consciência da enorme influência que a organização exercia em minha própria vida, mesmo durante o período que se seguiu à minha desassociação. Antes eu me sentia tão perdida, tão indigna de ainda vir a ter uma relação pessoal com Jeová e Cristo Jesus, pelo fato de eu não ter mais a organização. Agora, pela primeira vez, depois de muito, muito tempo, sinto-me livre para adorar a Jeová mediante Jesus, à parte da organização. Posso agora aproximar-me de Jeová em oração e ser Sua serva. As lágrimas correram dos meus olhos, e a dor do meu coração finalmente passou.

 

Os parágrafos seguintes dela contêm observações complementares sobre o modo como o livro foi escrito. Como já declarei, incluo isso pelo único motivo de que ilustra algo que ocorre no caso de muitos que escrevem: eles não são a favor de literatura vingativa contra as Testemunhas de Jeová e, em vez de animosidade, eles conservam afeição por aqueles ainda na organização. A carta dela prossegue:

 

Impressionou-me muito o modo como escreveu seu livro. O amor que você tinha e ainda tem pelos irmãos transparece. Suas declarações não foram amargas ou vingativas, mas simplesmente apresentaram os fatos tão bondosa e amorosamente quanto possível. Durante minha associação com a organização conheci algumas pessoas realmente maravilhosas, extraordinárias, e muitas de minhas experiências foram memoráveis e felizes. Muito do que aprendi por meio da organização tem base na Bíblia e ainda está gravado na mente e no coração. Por estas coisas sinto grande apreço. Todavia, tenho visto e sentido, em minha própria vida e nas de outros, os efeitos do que acontece quando as leis da organização ditam ordens à consciência das pessoas, desta forma se sobrepondo à Bíblia. Este conceito foi devastador nas vidas de homens, mulheres e crianças.

 

Uma carta de outra mulher, escrevendo da região meio-oeste dos Estados Unidos, ilustra um pouco da “devastação” experimentada:

 

Deixei a organização em 1980, todavia, a única coisa que fiz foi deixar de ir às reuniões. Não dá para entender, mas não podia ficar só nisso. Minha mãe escreveu-me uma carta em 81 dizendo que não podia mais associar-se ou relacionar-se comigo já que eu não assistia as reuniões. Meus irmãos, naturalmente, fizeram o mesmo.

Nossa filha foi assassinada em janeiro de 1983. Mamãe não veio ao funeral nem enviou condolências. Estou criando os quatro filhos de minha filha, e descobri do modo mais difícil quem são os meus verdadeiros amigos. Pessoas a quem eu sequer conhecia mostraram solidariedade e me ajudaram com as crianças. Deram de seu dinheiro, de seu tempo, e de qualquer coisa que puderam para ajudar. Senti-me tão envergonhada de pensar que eu tinha, durante tantos anos, virado às costas aos vizinhos e parentes [não-Testemunhas] que estavam tão dispostos a nos ajudar. Eles nunca deixaram de me amar. Nem posso contar as vezes que chorei por causa dos muitos anos que perdi, evitando-os por serem “mundanos.”

Fui batizada em 1946, e por volta de 1971 comecei a perceber coisas que não pareciam muito cristãs. Eu pesquisava as Escrituras e não conseguia achar base alguma para as coisas que aconteciam na congregação . . . Por volta dessa época, li um livro de Milton Kovitz, “Liberdades Fundamentais de Um Povo Livre.” Comecei a imaginar como a Sociedade [Torre de Vigia] podia lutar tanto pelas liberdades garantidas na constituição e negar essas mesmas liberdades a outros, liberdades preservadas pela mesma constituição, como o direito à livre expressão, o direito à privacidade, etc. Não se dava margem à consciência individual. Com exceção de um ou dois, os homens da congregação estavam mais interessados em obter posições de autoridade do que em orar por elas e obter verdadeiro discernimento. Os comentários nas reuniões só faziam “repetir como papagaio” a página impressa da Sentinela. Nenhum interesse por aqueles com fraquezas, apenas uma compulsão insuperável em “Manter a organização limpa . . . ”

Já esqueci tantas coisas, nomes e datas, que não posso escrever com a mesma autoridade que você. Não lamento isso. Estou feliz de que se esteja desvanecendo.

Mais uma coisa, tenho achado quase impossível orar. Eu queria poder, mas não sei como desenvolver uma relação pessoal com Deus e Cristo. Meus velhos sentimentos de mágoa com a organização vêm à tona quando tento orar. Após ler seu livro, mergulhei num sentimento de muita pena daqueles que podem estar tentando criar a coragem de que precisam, que pedi a Deus que os ajudasse. A primeira oração de verdade depois de muito tempo. Obrigado.

 

Outros mais que escreveram não tinham tido associação de espécie alguma com as Testemunhas de Jeová, mas estavam passando por um conflito de consciência similar em relação à própria religião. Típica de várias cartas é esta de um casal da Califórnia:

 

Minha esposa e eu obtivemos recentemente um exemplar do seu Crise de Consciência. Ficamos muito empolgados de “descobri-lo.” Obrigado por ter escrito com graça e dignidade, numa área que é, muitas vezes, caracterizada pelo sensacionalismo e pela amargura. Sua experiência foi especialmente pungente para nós ¾ deixamos recentemente a igreja de nossa herança familiar, a igreja Mórmom, a fim de “adorar o Pai em espírito e verdade,” desimpedidos dos “mandamentos e ensinos humanos.” Encontramos na sua história muito que nos era familiar . . .

Novamente, somos gratos por seu corajoso testemunho da benevolência de Deus em sua vida. Que Ele o conserve no abrigo de suas asas que curam.

 

Não acho que o que escrevi represente um ato especial de “coragem.” Escrevi  por achar que as pessoas tinham direito de saber coisas às quais de outro modo não teriam acesso. O que dá maior satisfação em todas essas centenas de contatos são as declarações de pessoas que dizem ter se achegado mais ao Pai celestial e ao Filho dele, renovando e fortalecendo sua fé e confiança. Considero, porém, particularmente gratificantes os comentários de muitos que perceberam a ausência de amargura e intenção maldosa no que escrevi. Não guardo tais sentimentos para com as Testemunhas de Jeová, e fico feliz de que minha obra não transmita esses sentimentos. As cartas recebidas de pessoas que fustigam o movimento, seus líderes ou adeptos, ou dão espaço à ridicularização e ao sarcasmo, de modo algum me agradam.

Creio que se enganam os que acham que é nas pessoas individuais da organização ou nos seus líderes que está o verdadeiro perigo. Vivi entre essas pessoas por quase 60 anos, e não hesito em dizer que são tão sinceras em suas crenças quanto as pessoas de qualquer outra religião. Conheci pessoalmente os membros do Corpo Governante e, embora não possa dizer isto de todos, sei que muitos são pessoas basicamente bondosas, honestas, que estão simplesmente fazendo o que crêem que se espera delas, que é o que tem sido tradicionalmente feito no passado. São herdeiros do legado do passado. Na mente deles “a organização” é indistingüível e inseparável de Deus e Cristo.

Contudo, apresenta-se o erro como verdade, tomam-se ações que dão idéia errada e distorcida dos ensinos e do proceder de vida do Filho de Deus. Embora os envolvidos não possam deixar de levar, cada um, sua parcela de responsabilidade, não são eles, porém a fonte fundamental do problema. Mais que as próprias pessoas, são as crenças e os conceitos que constituem o real problema, o verdadeiro perigo. Deles se originam os ensinos errôneos, as atitudes erradas e as ações ríspidas.

 

Pessoas de todo tipo têm entrado na organização das Testemunhas de Jeová por razões de todo tipo. E pessoas de todo tipo (na verdade, centenas de milhares) têm saído por razões de todo tipo. Alguns saíram, como expressou uma ex-Testemunha, ‘por todas as razões erradas.’ Embora o rumo que tomam depois possa dar no mínimo algum indício do motivo que os levou a sair, este não é necessariamente um guia seguro. Muitos passam por um período de transição marcado pela incerteza, até duvidando de tudo, em razão da grave desilusão sofrida. Ficam temporariamente à deriva, e apenas depois de passarem por essa fase é que seu proceder pode dar uma indicação clara de qual foi sua motivação de coração.

Uma coisa, porém, parece evidente. É que o mero abandono dum sistema religioso, na convicção de que contém um alto grau de falsidade, não dá, em si, garantia da liberdade. Simplesmente ver o erro não basta em muitos casos. A menos que se possa ver por que se acreditou naquele erro, e o que era falso no método de argumentação que levou a acreditar, não se consegue grande progresso, não se estabelece nenhuma base para a liberdade cristã duradoura. Alguém pode facilmente abandonar um sistema que se mostrou errado e, depois, rapidamente se deixar levar por outro que igualmente propaga o erro, erro que pode até ser doutrinariamente bem diferente, e ainda assim muitas vezes fundamentado no mesmo tipo de argumentação e raciocínio falsos empregados pelo sistema anterior.

Muitas Testemunhas de Jeová ficaram desiludidas por ensinos ou predições que se mostraram falsos, outras pela rigidez de certas normas, ou por causa das pressões para empenhar-se no constante turbilhão de atividades programadas pela organização, que traz pouco proveito espiritual. É preciso identificar a raiz causadora de tais falácias, da natureza autoritária das normas, ou da futilidade de tais obras programadas. Creio que sem compreender os ensinos bíblicos envolvidos não se pode identificar claramente essa raiz causadora, e que existe algo melhor e mais genuíno ao seu alcance. Infelizmente, a Testemunha mediana jamais foi ajudada a desenvolver uma boa compreensão das Escrituras. Como membros da organização, eram pouco incentivados a usar a energia mental senão para aceitar e, efetivamente fixar na memória, qualquer informação suprida pela organização, submetendo-se quase automaticamente às orientações dela. O questionamento, um dos instrumentos mais poderosos da mente, era retratado de modo negativo como evidência de falta de fé, sinal de desrespeito ao canal de comunicação aprovado por Deus.

Há mais um aspecto significativo nesta questão. Muitas pessoas buscam apenas uma liberdade negativa. Procuram estar livres de algo, estar livres de se sentirem obrigadas a professar crença em certos ensinos, de cumprir certas atividades ou sujeitar-se a certas normas, todas impostas por uma autoridade eclesiástica.

Essa espécie de liberdade pode ser, em si, um alvo apropriado, desejável, trazendo o livramento de restrições opressivas e do domínio da mente e do coração por parte de homens, de um modo que claramente não é cristão. Assim mesmo, porém, esse livramento em si não traz a liberdade cristã, pois a liberdade cristã implica principalmente numa liberdade positiva, não a mera liberdade de algo, mas uma liberdade para algo. Não é simplesmente a liberdade de não fazer, mas a de fazer, e também de ser o que somos no coração e na mente, como pessoas individuais. Mais do que pelo mero passo de deixar um sistema religioso tido como falso, é pelo que fazemos com nossas vidas após nos desligarmos desse sistema que demonstramos se efetivamente conquistamos a verdadeira liberdade cristã.

Este livro analisará estas questões e como se aplicam. Embora, claro, seja dirigido primariamente a pessoas com antecedentes entre as Testemunhas de Jeová, seus princípios subjacentes se aplicam a qualquer cenário religioso. Esperamos que a informação seja de ajuda para aqueles que, a partir do amor à verdade e do interesse de agradar a Deus, estejam raciocinando se é ou não correto mostrar lealdade inquestionável a uma organização religiosa. Sua intenção é contribuir, de algum modo, para a confiança no poder de Deus em nos sustentar em qualquer crise que possamos atavessar por nos apegarmos à nossa integridade pessoal, e ajudar a alargarmos nossos horizontes espirituais em direção a uma vida mais gratificante e satisfatória, no serviço do nosso Criador, do nosso Amo, o Filho de Deus, e de nossas concriaturas humanas.