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Cassandra Rios - 1932 - 2002
Um pouco mais e eles serão cúmplices. Ela vai lhe explicitar desejos, dos mais secretos. Vai lhe falar dos seios, das
fendas, de sexo. Ela vai lhe excitar a textura, dar vida ... sua matéria. Vai lhe encher de fantasias, de gozo, de carnes. Ela vai lhe
contar o proibido, o imoral. Vai lhe falar o que as bocas lavadas calam com pudor. Ela vai se despir da vergonha. Um pouco mais e eles serão
cúmplices, ali mesmo, sobre a mesa da escrivaninha. A mão da mulher alisa o papel em branco. Mas recua.
Ainda não é fácil dizer-se. Ou imaginar-se. Escrever o erótico, eis a questão. ''Se o homem escreve, ele é sábio, experiente. Se a mulher
escreve, é ninfomaníaca, tarada'', declarou a escritora Cassandra Rios (1932-2002), uma das representantes do gênero, numa de suas últimas
entrevistas. O Delas procura indícios desses textos libidinosos nas gavetas das mulheres. Reencontra Cassandra - que puxa a história, a
pornogr fica (e, agora, reeditada) Hilda Hilst, a discreta Regine Limaverde e a iniciante Fernanda Meireles (que começa a publicar fanzines
eróticos). Cada uma, a seu modo, explicita desejos. Dos mais secretos.
TRECHOS
''A minha boneca, o fogãozinho, as panelinhas, enfim os meus brinquedos solitário, que eu pegara para distrair-me,
estavam abandonados perto do sofá da sala e eu preferia me pôr e ficar debaixo da mesa, cheirando as pernas e os pés de dona Kênia. O
instinto poderoso do sexo, a força invencível da atração tomava impulso.
O que eu estava fazendo produzia em mim uma sensação embriagadora e aos poucos fui-me debruçando, aproximando-me, cada vez mais atraída, e,
num impulso irresistível segurei a canela de dona Kênia com as minhas mãozinhas ao mesmo tempo que lhe dava uma estranha e demorada lambida.
(...)
- Por que você lambeu a minha perna, Flávia?
Fiquei calada, dissimulada e hipócrita, sentindo o meu coraçãozinho bater forte, emocionada por estar com o rosto metido entre os seios
gostos (sic) e belos de dona Kênia que me abraçava e beijava o rosto, causando-me forte e esquisita sensação. Sensação essa que parecia
muito com angústia, mas não era angústia, era assim como que um prazer agoniado. (...)
Afinal o que poderia significar uma lambida na perna de uma linda mulher perfumosa dada por uma menina de sete anos?''. Trecho de Eu Sou uma
Lésbica, folhetim escrito por Cassandra Rios e publicado na revista Status entre janeiro e abril 1980.
A autora de "Volúpia do pecado" e "A paranóica", entre outras dezenas de títulos, faleceu perto da meia-noite de sábado (09 de março) devido
a complicações cardíacas no hospital Santa Helena, onde estava internada havia uma semana.
capas de dois livros de Cassandra Rios
Nas décadas dos anos 60 e 70, Rios foi perseguida pela censura da ditadura militar que governava o Brasil, a qual não tolerava o forte
conteúdo erótico de sua obra, considerada pornográfica pelos setores mais conservadores da cultura.
Em seus livros, Rios falava com liberdade e muita sensualidade sobre assuntos mais que polêmicos para a época, como o lesbianismo e as
relações entre sexo, religião e política, que "atentavam" contra a moral defendida pelos militares.
Alguns dos livros da autora chegaram a vender cerca de 300.000 exemplares por ano, um sucesso editorial que só seria igualado décadas mais
tarde pelo escritor Paulo Coelho.
Em sua última entrevista, concedida à revista TPM, a escritora disse que sempre se sentiu incomodada pelo fato de sua vida pessoal ser
confundida com as atmosferas que criava em suas obras.
Ela afirmou que ficava indignada por ser confundida com as personagens, pois isso significava duvidar de sua capacidade como escritora.
Literatura de Cassandra Rios educou uma geração
Marcelo Rubens Paiva - articulista da Folha
Cena 1: Anos 70. Os amigos de escola Marcelo, Marcus e Eduardo, todos com seus 15 anos, viajam num ônibus pela Dutra.
Marcelo lê um livro, rasga a página lida e entrega para os amigos. Eventualmente, eles comentam a narrativa. Eventualmente, algum deles se
levanta para ir ao banheiro. Vai fazer justiça com as próprias mãos.
Close: A capa era de "A Gata" ou "Carne em Delírio", livros que prestavam um grande serviço a milhares de leitores, passavam de mão em mão,
alimentavam a imaginação e acabavam educando uma geração.
São obras da escritora Cassandra Rios, que morreu na semana passada em São Paulo.
Cena 2: Da janela do ônibus, vê-se um Brasil conservador. Nada de revistas eróticas nas bancas. Nada de programas de TV analisando a
sexualidade e seus labirintos. Nada de educação sexual nas escolas. Nada de amor livre, sexo antes do casamento, concepção. E, sim, as
mulheres não sentiam prazer na relação, dizia-se.
Cena 3: Corta para o cemitério Santo Amaro, em São Paulo, março de 2002. No enterro de Cassandra Rios, na verdade Odete Rios, nascida em
1932, um parente recita uma frase dita por ela, enquanto joga terra sobre o caixão: "Se o homem escreve, ele é sábio, experiente. Se a
mulher escreve, é ninfomaníaca, tarada".
Cena 4: Nas estantes das maiores livrarias do país, procura-se em vão uma obra da autora, que vendia 300 mil exemplares por ano à sua época.
Também não há referências sobre ela em sites de livrarias. Encontra-se apenas um livro, que amarela num sebo, mas tem e teve lugar reservado
na memória de muitos -como o cantor Cazuza e a escritora Fernanda Young.
Contexto
Como dita os manuais da literatura comparada, para entender Cassandra Rios é preciso entender sua época e ambiente.
Não havia imagens de sexo, a não ser em livros de medicina legal. No Brasil pré-contracultura, taras individuais não eram debatidas. O
estranho era considerado desvio a ser combatido pelo Estado, com a censura.
A exibição de seios só era permitida em documentários sobre índios. "Amaral Neto, o Repórter" serviu para muitos adolescentes descobrirem o
que havia escondido numa mulher.
Cassandra falava às claras sobre o prazer feminino. Talvez por isso tenha sido uma das personalidades mais censuradas.
Tratava-se de uma mulher escrevendo sobre tesão de mulher, numa sociedade cuja predominância religiosa afirmava que a mulher apenas se
deitava com um homem para gerar filhos de Deus.
Seus livros surpreendiam. Cassandra rivalizava com uma outra autora erótica e sua contemporânea, Adelaide Carraro, assim como Hemingway
rivalizou com Scott Fitzgerald.
Enquanto Cassandra tinha um estilo mais ousado, extrovertido, Adelaide era linear, contida. Em Cassandra, há empresários corruptos, que
fazem despachos em terreiros de umbanda.
Cassandra já no título era direta, como, por exemplo, "A Volúpia do Pecado", de 1948, seu livro de estréia, que a transformou numa das
autoras mais vendidas da história da literatura brasileira.
Ela o escreveu com 16 anos. Fazia uma literatura assumidamente popular. Eram livros baratos. Havia desenhos provocantes nas capas: moças
oferecidas em poses sutilmente sensuais.
Nas poucas entrevistas que deu, ela dizia que, no fundo, era uma simples dona-de-casa conservadora, que suas narrativas fluíam sem controle
e que ela mesma ficava enrubescida com aquelas cenas mais quentes.
Chegou a escrever um livro "sério", "MezzAmaro", uma autobiografia que não fala de sexo, com 400 páginas. Chegou a ter o livro "A Paranóica"
adaptado para o cinema, sobre uma filha que descobre que seu pai é falso e quer apenas roubar a grana da família. Na tela, o livro virou "Ariella",
revelando a atriz Nicole Puzzi.
Em muitas faculdades brasileiras, pesquisadores deveriam estar estudando Cassandra Rios. Foi uma precursora. Sua importância não será
esquecida. Nem a libido de suas personagens.