" Deus sonha "

(Trad. de Raimundo Correia)

O dia acorda! Deus por uma fresta
das nuvens a espreitar, ri-se. A floresta,
o campo, o inseto, o ninho sussurrante,
a aldeia, o sol que tinge a serrania...
Tudo isso acorda, quando acorda o dia
no fresco banho de ouro de Levante.

Deus sonha! Vasa os olhos d'água; pica
as artérias da terra; o liz fabrica;
e da matéria sonda o fundo ovário,
pinta as rosas de branco e de vermelho
e faz das asas do escaravelho
a surpresa do mundo planetário.

Homens! As férreas naus de velas largas,
monstros revéis, formidolosas cargas
do bruto oceano arfando às insolências;
extenuados os ventos, e nos flancos
longo enxame a arrastar de flocos brancos
de escuma, e raios, e fosforescências...

Os estandartes de arrogantes pregas;
as batalhas, os choques, as refregas;
náuseas de fogo de canhões sangrentos;
feroz carnificina de ferozes
batalhões - bando negro de albatrozes
de asa espalmada e aberta aos quatro ventos...

Comburentes, flamívomas bombardas,
ígnea selva de canos de espingardas,
estampidos, estrépitos, canglores;
e bêbado de pólvora e fumaça,
Napoleão, que galopando passa,
ao ruflar de frenéticos tambores;

a guerra, o saque, as convulsões, o espanto;
Sebastopol em chamas; de Lepanto
o vau de lanças e clarins repleto...
Homens! Tudo isso, enquanto recolhido
Deus sonha, passa e soa ao seu ouvido,
como o rumor das asas de um inseto!

VOLTAR