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"Uma verdadeira viagem de descoberta não é procurar novas terras, mas ter um olhar novo."
(Michel Proust)

 

PENSANDO O COMPLEXO! SÉRIES E CICLOS Henri Wallon

 

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O conceito de educação por ciclos não é de elaboração tão recente, já foi exposto de forma bem concreta numa proposta idealizada por Henri Wallon e Paul Langevin para a França do pós-guerra (LIMA,2000:12). O Plano Langevin-Wallon, como ficou conhecido, tinha como objetivo a reconstrução da França democrática depois da 2ª grande guerra (a Comissão era inicialmente presidida pelo físico Langevin e após sua morte, Wallon assumiu). Wallon defendia uma educação que desse conta do sujeito aprendiz visando sua integração na comunidade/humanidade.

Em seu pensamento, a Educação deve se ajustar ao homem e seu desenvolvimento e não aos interesses hegemônicos passageiros do momento (política, economia, preconceitos, culturas...) (Lima, 2000:12), apesar de reiteradamente afirmar o papel primordial que o meio desempenha no desenvolvimento da criança (Wallon,1979) e da necessária orientação que deve ser dada ao educando na interação com esse meio. Segundo Wallon, a ensino escolar não deve torna-se um espelho da sociedade, ao contrário, quanto mais se dedicar a sua função, que é o ensino do aluno, mais eficaz se torna para o aluno e para a própria sociedade. Esse ensino não deve contribuir ainda mais para a fragmentação do indivíduo, que é a conseqüência da atual dinâmica escolar. Onde, através da mera transmissão dos conteúdos escolares compartimentalizados por suas áreas, vai-se construindo uma lógica simplista, reducionista no indivíduo.

A Educação deveria contemplar o homem em sua totalidade e dar-lhe um sentido de coletividade.

 


"Uma educação que queira respeitar a totalidade da personalidade e a integridade dos processos realizados deverá utilizar, pelo contrário, cada época da infância para assegurar às disposições e aptidões correspondentes o seu pleno desenvolvimento, de tal forma que entre elas não existam atrofiadas ou extraviadas, mas também de modo que à sucessão das idades corresponda uma integração progressiva das actividades mais primitivas nas mais evoluídas.Assim, não poderá dispensar-se de ser orientada para o desenvolvimento da análise intelectual e da decisão autônoma." (Wallon,1979:14)

 

É flagrante a importância dada à cultura, uma produção humana, por Wallon em relação a constituição psíquica e biológica do ser humano. Wallon sinaliza a influência que a cultura tem na constituição do sujeito, afirma que dependendo das relações que forem se estabelecendo no decorrer de seu desenvolvimento seu horizonte poderá ser ampliado e ter cada vez mais relações sofisticadas, "mais matizadas, entre ela e os outros", e dessa forma ir-se formando um sujeito pleno. Mesmo referindo-se à "simbiose fisiológica", fase em que a criança interage com o meio através de gestos e gritos visando deliberadamente conseguir algo da mãe (pessoa com a qual a criança inicia sua relação com o social) e à "simbiose afetiva", fase em que as relações humanas estão fortemente dependentes das relações de amor (a criança e sua mãe), o psicólogo destaca a influência do meio na constituição da criança, atrelando, inclusive, desenvolvimento psíquico e físico. Demonstra uma possível preponderância do psíquico ao físico, ao nos trazer exemplos de crianças que na maior parte de seu tempo eram confiadas às creches apresentavam comprometimento até mesmo no seu lado biológico, enquanto outras crianças que mantêm uma relação constante com a mãe, normalmente seu primeiro elo com o meio exterior, mesmo em precárias condições de vida, como as crianças que vivem com suas mães nas prisões públicas, desenvolvem-se bem psíquica e fisicamente. O autor alega que na criança de idade escolar esta relação se inverte, o contato com os outros e com os novos conhecimentos sem uma dependência excessiva da relação maternal faz com que a criança que tem acesso à escola se desenvolva mais e melhor que aquela que não freqüenta a escola.

Wallon defende que a educação deve acompanhar o desenvolvimento do estudante sem impor-lhe obstáculos desnecessários, respeitando os processos de desenvolvimento da criança, apesar de considerar responsabilidade do mestre saber interferir com base em suas observações. Tanto que o Plano orientado por ele, é categórico ao afirmar, em seu capítulo sobre as sanções dos estudos, que: "Nenhum exame ou concurso terá lugar antes do fim dos anos de escolaridade obrigatória". (Plan Langevin-Wallon). Com isso, caberá ao coletivo dos mestres a orientação, organização e distribuição dos alunos por entre os ciclos com base nas atividades realizadas anteriormente pelos alunos, e isso não quer dizer deixar ao acaso a aprendizagem dos alunos.

Os princípios gerais lançados por Wallon seriam: justiça(onde a igualdade e a diversidade são aspectos que complementares e não opostos), igualdade no fazer intelectual e prático, orientação da ação educativa com vista à formação integral do indivíduo e o incentivo à cultura geral que instrumentalize o mais "especialista" dos profissionais de forma que ele consiga mobilizar-se com o surgimento das tecnologias (Lima,1998:13). É importante destacar que a proposta de Wallon não chega para aumentar a aprendizagem, ou seja, ela não é uma espécie de recurso pedagógico que visa melhorar o desempenho dos alunos, mas como uma reestruturação do pensar o "aprender" e a formação do sujeito.

A exemplo do que ocorre na Educação Infantil, onde não existe um currículo fechado a ser transmitido, mas um esforço conjunto que favoreça o desenvolvimento global da criança, inclusive com a aquisição de conceitos que a ajudará na sua constituição como sujeito, Wallon nos apresenta uma educação ciclada que pretende, através da constante observação, dar continuidade a este processo iniciado na Educação Infantil, rompendo com a seriação que impõe aos alunos uma concepção de mundo discriminadora e excludente desde o início de sua escolaridade. Não é uma questão de dar um tempo maior para o fracasso ou o sucesso, é uma nova visão do que signifique a Educação , ele coloca em prática suas crenças de que o desenvolvimento da criança obedece etapas que lhes são próprias, individualizadas, havendo uma melhor compreensão dos objetos quando estes se apresentam de forma "inteira" e não como o adulto procede: fragmentando, simplificando.

 

"...O desenvolvimento psíquico da criança é composto de estádios que não são a estrita continuação uns dos outros. Entre eles existe subordinação, mas não identidade de orientação funcional. As actividades primitivas são progressivamente dominadas por actividades mais recentes e integram-se nestas últimas mais ou menos completamente." (Wallon,1979:12)

 


A proposta que Wallon explicita em seu plano de reforma do ensino francês, é de formação do sujeito biológica e culturalmente no lugar da educação enciclopédica praticada, de um ensino dogmático e especializado, baseado em verdades a serem transmitidas pelos mestres, onde a transmissão de informações é o fim último no lugar de uma educação. A prática que considera essencial é a de levar a criança a observar, refletir sobre esta observação e assim formular hipóteses, tornando-se capaz de registrá-las. Baseado em sua experiência profissional como psicólogo e em sua vivência como pesquisador da educação, na reforma do ensino francês Wallon busca garantir o apoio pedagógico adequado às diversas idades e suas respectivas formas de pensar:


"Até recentemente, o erro da educação, nas nossas sociedades modernas, consistia no excessivo desconhecimento das primeiras etapas e na imposição prematura à criança das forma de pensar e de agir que aparecem mais tarde - as do adulto." (Wallon,1979:15).

 


No plano, Wallon organiza a educação para que esta se adapte aos períodos do desenvolvimento humano de forma que o educando tenha suas etapas respeitadas. Na proposta, o ensino francês de 1º grau se divide em 3 ciclos¹:

 

1º ciclo escolar - de 3 para 11 anos. (ciclo elementar)

2º ciclo escolar - de 11 para 15 anos. (ciclo da orientação)

3º ciclo escolar - de 15 para 18 anos. (ciclo da determinação)

 

O programa de ensino do Plano prevê que sejam indicados o que será ensinado por ciclo e por ano, mas de forma flexível para que se evite a rigidez das matérias, para que o "impulso de curiosidade" nos alunos não seja prejudicado, já que, para os autores do plano, é esse um dos objetivos essenciais da educação. Em várias passagens, Wallon, demonstra a necessidade de não se "endurecer/especializar" as disciplinas, e o motivo seria a forma de apreender da criança que, ao contrário do adulto, apreende a realidade em sua complexidade.Wallon acredita que favoreceríamos profundamente a instrução da criança se fosse desenvolvido simultaneamente ao intelecto, "as suas aptidões sociais". (Wallon, 1979:209)

Especificamente quanto ao Programa, o conteúdo comum do 1º ciclo (6-11 anos) deve abranger os instrumentos necessários do conhecimento (leitura, escrita, cálculo); os meios de expressão (desenho, linguagem) e todas as atividades que podem desenvolver as aptidões de observações e favorecer o aprendizado da língua estrangeira corrente (não sendo obrigatório) pelo método direto. Durante o 2º e 3º ciclos serão aprofundados os estudos e as opções de estudos se dão. Essa divisão do programa justifica-se no pensamento de Wallon quando este diz que para um "objeto suscitar verdadeiramente a actividade intelectual da criança, é preciso que se lhes ofereça na sua integridade e não dividido segundo as diversas disciplinas cuja soma constitui o ensino nos seus diferentes níveis.". (Wallon,1979:230).

Quanto aos métodos, a proposta garante que devem ajustar-se às capacidades de cada um, respeitando assim as diferenças de aptidões entre as crianças.

Wallon não negligencia a existência das dificuldades de aprendizagem e propõe no Plano para esses casos as "sections particulières", onde pedagogo e psicólogo escolar trabalhariam juntos na readaptação (SECTIONS DE RATTRAPAGE ) da aprendizagem sem que haja atraso do aluno na progressão pelas classes . A idéia é reverter o número de 22% de crianças nas escolas primárias parisienses com 2, 3 ou até 4 anos de distorção classe/idade, à época do plano, é claro. O que ele considera inaceitável.

Para Wallon, a existência de um homem dual, onde cultura se contrapõe à especialização, é um erro conceitual. O indivíduo existe através da completude de suas características e aptidões. A idéia de que cultura exclui especialização, quer dizer, se há uma não pode haver a outra, fragmenta este homem. E a luta na Educação naquele momento, como acredito seja ainda hoje, já não era para fragmentar, mas pela integração do homem com ele mesmo e com a humanidade.

 


"A cultura geral representa o que aproxima e une os homens enquanto a profissão representa freqüentemente o que o separa. Uma cultura geral sólida deve por conseguinte servir de base à especialização profissional e prosseguir-se durante a aprendizagem, de modo que a formação do homem não seja limitada e obstruída pela técnica. Num Estado democrático, onde qualquer trabalhador é cidadão, é indispensável que a especialização não seja um obstáculo à compreensão dos problemas e que a ampla e sólida cultura libere o homem das estreitas limitações do técnico. É por isso que o papel da escola não deve limitar-se a despertar o gosto da cultura durante o período da escolaridade obrigatória, qualquer que seja a duração. A organização nova do ensino deve permitir o APERFEIÇOAMENTO CONTÍNUO do CIDADÃO e do TRABALHADOR. (Principes Généraux - La Reforme De L'enseignement - Ministère De L'éducation Nationale)

 

 

Nesta concepção de uma Educação humanista, a formação de um cidadão participante, crítico, ativo, integral, assumindo sua cidadania, tendo respeitado o pluralismo cultural que crie uma nova identidade nacional, impulsiona o pensamento dos ciclos apresentado por Wallon.

Buscar em suas propostas sugestões que possibilitem a implementação do sistema de ciclos no nosso município pode ser viável. Algumas das idéias que perpassam o documento podem nos orientar no sentido de entendermos o "como" realizarmos a implementação: uma delas diz respeito à enturmação, outra à questão dos conteúdos e ainda aquela que nos faz atentar para as diversas formas de pensar possíveis às crianças no processo pedagógico. Porém, ao meu ver, o que de mais relevância a proposta de Wallon nos apresenta é a reiterada valorização da cultura e do social como possibilitadores da construção de um novo indivíduo, de uma nova comunidade/humanidade.

 

 


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Para tentarmos entender os ciclos, precisamos ter a compreensão de que a "gestação do novo" pensamento educacional se dá de forma paulatina e certamente diferenciada em cada rede, em cada escola que opte por essa nova concepção. Talvez por isso, as unidades escolares, seus professores e as próprias redes de ensino encontrem dificuldade para visualizar o que seria uma "definição" de ciclos e a partir daí consolidarem a passagem do pensamento seriado para o em ciclos (seja o ciclo de formação ou o de aprendizagem).

Como já foi visto, antes mesmo da nova LDB oficializar a possibilidade do ensino por ciclos, várias Prefeituras já haviam iniciado estudos que culminariam com a posterior adoção dos ciclos, como é o caso da prefeitura de Porto Alegre, Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte. Na realidade, se associarmos ciclos à premente necessidade do Estado de comprovar escolaridade, teremos que nos remeter ao início do século XX quando surge a proposta de promoção automática e ao final dos anos 60, quando várias experiências em direção aos ciclos se concretizam (Mainardes, 2001), mas, na verdade estas experiências não se desligaram do pensamento seriado, e ainda, nas palavras de Silva e Davis (Silva e Davis apud Mainardes,2001:41), continuaram a buscar organizar classes homogêneas e os professores não foram instrumentalizados para trabalharem com grupos heterogêneos.

 

"a polêmica em torno da promoção automática vem se acumulando e, a medida que se expande e se inflama, acaba por escamotear a realidade, impedindo o exame da questão central: a incapacidade da escola brasileira abandonar práticas centenárias e virar do avesso sua organização interna."(Silva e Davis apud Mainardes, 2001:pág.41)

 

Para outros autores, falhou o compromisso com a aprendizagem dos professores que deveriam ser "capacitados" (Mainardes, 2001) a fim de poderem garantir a efetiva aprendizagem dos alunos e não apenas deslocá-los pelas séries sem reprovação. Ainda, para Rita Durso (2002),na promoção automática

 

"sustentada a lógica do regime seriado, admiti-se o mascaramento do insucesso escolar, partindo da meritocracia, do esforço pessoal e do pressuposto de que os sujeitos interagem com o conhecimento e permanecem sem aprender."

 

Os ciclos, sejam de aprendizagem ou de desenvolvimento Humano, são na sua concepção opostos a essa "política" de escolarização.

As duas concepções educacionais, série e ciclo, são conceitualmente diferentes. Na seriação, sistema no qual fomos formados e que foi "fortemente marcado pela escola francesa do séc XIX" (Lima, 2000), a ordenação do tempo escolar era de tal forma rígida que impunha ao estudo do sujeito aprendiz um ritmo de aprendizado dos conteúdos pedagógicos que não lhe era próprio. Contudo, como esse aluno pertencia a um grupo relativamente pequeno que vivia experiências culturais e até emocionais muito próximas entre si, essa forma de Educação parecia dar conta. Nesta escola, o sucesso escolar era encarado como esforço individual (Durso, 2002) e isso é como dizer que se o professor ensinou, a situação de aprendizagem foi estabelecida, o aluno estava lá e mesmo assim não aprendeu foi porque não se esforçou, não teve méritos, ou seja, fracassou por culpa dele mesmo.

Com o ingresso de uma população cada vez mais numerosa na escola, o fracasso começa a se tornar incômodo . A diversidade cultural, a convivência com o diferente, múltiplas etnias e credos convivendo em um mesmo espaço/tempo começam a provocar problemas que, anteriormente, a série amortecia, justamente porque a diversidade era minimizada. A explicação para esse fracasso em massa dos alunos nas escolas públicas passou pela meritocracia, pelo dom, pela compensação e, hoje, está posta na questão da necessidade de reestruturação da escola como espaço de aprendizagem significativa e não mais como um espaço onde conteúdos arbitrariamente selecionados ditam o cotidiano escolar.

O pensamento que se apresenta não está em busca de uma unificação dos saberes (Morin, 2000) com uma simplificação reducionista, mas sim, de uma forma mais "realista" de enxergar os fatos que compõem o mundo, em busca de uma forma que nos auxilie na complexidade dessa nova Era Planetária preconizada por Morin. E , se existem os "saberes" diferenciados, existem suas especificidades e não nos cabe simplesmente negá-los, mas articular estes saberes (Morin,2000) tendo em mente que a complexidade não é alcançada com a totalização das partes nem no isolamento de cada parte, mas antes, é na interação entre parte-todo que a complexidade se revela e certamente não podemos perdê-la de vista se tivermos como objetivo maior a formação global de nossos alunos.

Edgar Morin, um teórico do Pensamento Complexo, não nega a especificidade, ao contrário, em várias passagens mostra que do complexo faz parte o específico : "É a unidade humana que traz em si os princípios de suas múltiplas diversidades. Compreender o humano é compreender sua unidade na diversidade, sua diversidade na unidade. É preciso conceber a unidade do múltiplo, a multiplicidade do uno."(Morin,2000)

Essa fala de Morin mostra o quanto precisamos ter cuidado nessa mudança de olhar da série para o ciclo para evitarmos a banalização das propostas. Descartar os conteúdos disciplinares construídos na história da Ciência não é a proposta dos ciclos, a função deles é que é alterada.

 

"Na escola primária nos ensinam a isolar os objetos (de seu meio ambiente), a separar as disciplinas (em vez de reconhecer suas correlações), a dissociar problemas, em vez de reunir e integrar. Obrigam-nos a reduzir o complexo ao simples, isto é, a separar o que está ligado; a decompor, e não a recompor; e a eliminar tudo que causa desordens ou contradições em nosso entendimento." (MORIN,2002:15)

 


A hiperespecialização, segundo Morin(2002), pode ter sua utilidade nos campos específicos, que permitem o recorte, o isolamento do conhecimento, mais propriamente no trato com as chamadas máquinas artificiais. Mas, certamente não dá conta da complexidade que exigem as relações humanas, que se encontram ameaçadas pela lógica "inumana" das máquinas artificiais podendo nesse processo se afastar daquilo que é "subjetivo, afetivo, livre, criador" (MORIN,2002:15).

A idéia de segmentação, fragmentação do conhecimento, disciplinarização são vetores que diferenciam drasticamente as duas propostas de ensino. Ao contrário do ciclo, para o qual os conteúdos pedagógicos são meios para um fim maior, na seriação estes conteúdos são definidos como objetivos finais. Nessa afirmativa, encontramos um ponto nevrálgico para a compreensão dos ciclos: conteúdos como meio ou como fins?

 


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Para ilustrar essa dificuldade no desvio de olhar possível aos educadores que estão atuando em sala de aula, o que significa que têm sua formação calcada na seriação, relato a seguir uma passagem acontecida comigo na escola onde realizei esta pesquisa.

No início do ano letivo de 2002, eu estava a frente de uma turma do 2º ano de escolaridade, dentro do sistema de ciclos instituído pela Fundação. Fiquei com a turma durante o primeiro trimestre, quando saí para assumir outra função dentro da escola, no mês de abril, a professora que me substituiria também esteve atuando na turma. Salvo algumas exceções, o conjunto da turma se encontrava num processo inicial de alfabetização.


Ao final do 1º trimestre, eu deveria lançar as notas, juntamente com a freqüência, de cada um dos alunos no mapa da secretaria, assim o fiz, porém a lápis, para que a outra professora que já trabalhara com a turma e que daria continuidade ao trabalho pudesse participar desta etapa, opinando e contribuindo.

Para encontrar o famigerado conceito, que no município se traduz na escala A, B , C, D e E, procurei avaliar o processo revelado por cada um, seus avanços, retrocessos, sua motivação para aprender, suas relações, enfim, tudo que pudesse ajudar nessa atribuição de "valor", a nota que eu deveria "aferir". O resultado médio da turma não foi A, mas muito menos E!! Os conceitos ficaram acima do esperado pela supervisão, como eu pude constatar depois!

Estava já na outra sala preparando meu plano, quando a supervisora da escola entrou e me perguntou pelo mapa, avisei que já estava pronto e que o deixara junto com o diário da turma. Expliquei que estava a lápis porque gostaria que a outra professora opinasse. Foi aí que eu me surpreendi, a supervisora não estava preocupada com o fato do lápis mas pelas notas que eu havia atribuído a cada um. Ela questionou as notas, me lembrando que eu estava pensando em termos de alfa mas minha turma era do 2º ano de escolaridade ou seja 1ª SÉRIE! Será que eles teriam essas notas na 1ª série? Foi a pergunta que ouvi, com a sugestão, nem um pouco velada, de que as notas deveriam ser mais baixas, D ou E. De início não soube nem responder, depois tentei argumentar mas não acho que tenha conseguido. Resultado? Peguei minha caneta preta e passei por cima do lápis, sobre as notas que eu havia dado e que não alteraria, pelo menos não pelo motivo apresentado.

Sem dúvida, o pensamento da supervisora é regido pela da lógica seriação, o que parece impedir que a sua percepção da educação por ciclos não vá além da justaposição das séries, alterando em sua possibilidade de entendimento tão somente o número de dias que compõem um período letivo, encarando os ciclos como uma forma diferente de dividir este período. Ao invés de bimestres ou trimestres agora são biênios ou triênios cada qual com seus conteúdos fragmentados e devidamente estipulados antes dos períodos começarem.
Pensei ser este um pensamento isolado do profissional, mas estava enganada. No Conselho de Classe que se seguiu, escutei uma narrativa muito semelhante de outra professora, ela apenas não usou o termo série:

 

-"Precisamos de um plano de avaliação, temos todos que avaliar da mesma forma. O professor não tem que avaliar o seu trabalho, é preciso saber o que queremos no fim do ciclo e se o aluno aprendeu ou não o conteúdo preparado para cada ano de escolaridade."

 

O preço que pagamos (nós professores e os alunos por reflexo) pela negação do processo vivido pelo aluno em prol dos conteúdos estabelecidos para as séries ou anos de escolaridade, determinados pela lógica estereotipada da seriação, é a descontinuidade do processo de formação do educando, o isolamento do professor (cada um faz a sua parte) e a continuidade do fracasso escolar. Um dos resultados imediatos dessa perspectiva de avaliação é a permanente tentativa de se montarem turmas homogêneas, onde o processo de formação do aluno é "classificado" a partir dos conteúdos adquiridos, que foram "selecionados" visando à formação do sujeito numa perspectiva seriada.

A pergunta que me faço é:

- Como viver este conflito de concepções? Melhor, como elucidar questões e assim causar conflitos?

Em entrevista ao Jornal do Brasil, Miguel Arroyo, tratando da questão da implementação dos ciclos em Belo Horizonte, se coloca e faz uma breve, mas plena, diferenciação entre o que se entende por série e o que se espera do ciclo:

 

"- Se considerarmos que a escola é uma transmissora de saberes técnicos, um bom transmissor é fundamental e isso se relaciona ao sistema seriado. O centro da escola seriada é a habilidade a ser transmitida. Tudo chega de forma dosada, como se fosse um prédio em que vai se construindo um andar sobre o outro e se um andar não é bem construído, não se sai dali. O sistema de ciclos é o sistema do sujeito em cada tempo de sua vida. O conhecimento não é um fim, mas um meio. " Jornal do Brasil, Caderno Educação e Trabalho, 03/12/2000 (grifo nosso)

 


Miguel Arroyo nos fala dos ciclos de desenvolvimento humano, Elvira Lima nos fala de ciclos de formação. Os termos escolhidos pelos teóricos para referirem-se a esta essa nova "semente" educacional, já trazem em si uma nova visão. Ou seja, os ciclos de formação não são um modismo, tampouco uma "corriqueira", porém "nova", proposta pedagógica. E, assim sendo, não podem ser entendidos através de "fragmentos", primeiro currículo, depois, avaliação, depois formação de alunos e professores, mas, ao contrário, a complexidade imanente do sujeito em constante "estado de formação" é a única possibilidade de olhar que podemos ter ante uma concepção de ensino por ciclos.

O que existe de novidade na prática do ensino por ciclos e que tem por objetivo favorecer o processo de aprendizagem/ensino vivido pelo aluno não é a simples introdução no cotidiano escolar de estratégias pedagógicas "alternativas", apesar delas existirem e marcarem a implantação dos ciclos em alguns municípios (aulas germinadas, salas temáticas), o ciclo em si é a novidade estratégica, isso, lógico, se considerarmos que mesmo as classes multisseriadas do início do século XX eram planejadas seguindo a lógica da seriação.

"Ciclo de formação é conseqüência da reconceituação da escola como espaço de formação, não só de aprendizagem" (Lima,2000:8) o que requer muito mais do que mera renomeação, do que nova divisão dos tempos letivos. Ainda segundo Elvira, ciclo significa:

 

"uma proposta de reestruturação da escola, que envolve, de maneira fundamental, a gestão: o gerenciamento do tempo, da utilização do espaço, dos instrumentos culturais, da coletividade que se reúne em torno do espaço escolar e , finalmente, da socialização do conhecimento."

 

Um fator importante é ter claro que os ciclos são "dependentes" do coletivo, sua implantação depende de forças que trabalhem visando a globalidade da formação do homem na Educação. Este coletivo precisa trabalhar o ciclo sem dissociar seus "núcleos vertebradores"². Pensar separadamente cada "fragmento" que compõe o ciclo, ou seja compartimentalizá-lo, pode se tornar o fator determinante para que sua implementação não obtenha sucesso, porque é o mesmo que simplesmente "forçá-lo" na direção oposta da sua concepção.

O crasso erro que podemos incorrer ao pensar os ciclos é o de que apenas a reestruturação dos tempos escolares basta para construir uma escola diferenciada da estabelecida, chamada, por isso mesmo, de tradicional. Os ciclos pressupõem a construção de uma nova prática pedagógica, de uma nova visão de currículo e avaliação, e, acredito antes de tudo,de uma nova visão do sentido de EDUCAR. Os ciclos de formação requerem uma avaliação diagnóstica, cotidiana, coletiva que possibilite ao professor "verificar" (acompanhar para poder intervir) o mais exato possível o ponto do processo de aprendizagem em que se encontra seu aluno e, ao aluno, ir desenvolvendo seu "processo de conhecer". Nesse aspecto, encontramos em Vygotsky a sustentação teórica, seus conceitos de "aprendizado, nível de desenvolvimento real e potencial e zona de desenvolvimento proximal" nos auxiliam na análise que fazemos de nossos alunos enquanto juntos construímos o processo de ensino/aprendizagem.


Considerando que, em Vigotski, a Zona de Desenvolvimento Proximal é a

 

" distância entre o nível de desenvolvimento real,que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes." (Vigotski,1998:112)

 

e que "o "bom aprendizado" é aquele que se adianta ao desenvolvimento" (idem:117), torna-se claro que a ação pedagógica (que resulta num aprendizado diferente do espontâneo, não só porque é sistematizada mas principalmente porque "produz algo fundamentalmente novo no desenvolvimento da criança" (Idem:110)) para ser eficaz tem que ser dirigida para a Zona de Desenvolvimento Proximal e nela atuar.

A preocupação com a aprendizagem no sistema de ciclos não deve ser sobre o que o aluno já é capaz de fazer sozinho, sem ajuda, afinal, seria ineficaz uma educação voltada para o que já passou. Ao contrário, a preocupação da educação no sistema de ciclos é, ou deveria ser, "prospectiva" e valorizar o processo de aprendizagem/desenvolvimento que está em formação.

O aprendizado segue despertando no aluno diversas zonas de desenvolvimento, que, ao serem "internalizadas", vão se constituindo no desenvolvimento independente da criança, quando não mais precisa de auxílio. Assim, aprendizado e desenvolvimento não se dão de uma forma linear, primeiro um depois o outro, apesar, de que para Vygotsky, o aprendizado deva anteceder-se ao desenvolvimento, o processo de internalização desses aprendizados se dá, como sugestão do autor, em espiral, justamente por conta da complexidade e dinâmica que existe entre aprendizado e desenvolvimento. A interferência do outro neste processo é imprescindível para o desenvolvimento do sujeito.

Uma das questões a serem trabalhadas pela Zona de Desenvolvimento Proximal é a "imitação" (que não é em si perniciosa) e que é, sim, possibilitadora de aprendizagem. Justo porque, diferentemente dos animais que ao imitarem não passam disso, não conseguem elaborar soluções para situações que já não tenham sido treinadas, as crianças através da imitação conseguem ultrapassar seus limites, recriar, conseqüentemente desenvolver seu intelecto e contribuir para seu desenvolvimento global.

Ainda segundo Vygotsky, é necessário respeitar os níveis de desenvolvimento da criança, ou seja, não adianta propor uma resolução de problema muito além de seu desenvolvimento, estaria fora das possibilidades da criança. Não é sensato pedir à criança para escrever uma frase, quando ela não sabe ainda escrever seu próprio nome. Ela poderá "falar" a frase para que outro a escreva e nesse processo, o professor, trabalhará em cima da Zona de Desenvolvimento Proximal apresentada pela criança. Mas é imprescindível estimular, orientar, não se contentar com o "já alcançado", investigar emque momento do processo a criança está e ali agir.

Ao ouvir uma professora surpreender-se por descobrir que a produção escrita que ela acabara de escutar uma colega lendo era de uma aluna dela, imaginei o que estava sendo priorizado por ela na relação ensino-aprendizagem, qual interação existia que a fazia perceber as impossibilidades dos alunos e cegar-se ante as possibilidades. Se a preocupação dessa professora levasse em conta os processos apresentados pela aluna, se as zonas de desenvolvimento proximal fossem encaradas produtivamente, ou pelo menos encaradas, a professora não se surpreenderia (não negativamente) com as possibilidades demonstradas por sua aluna numa produção extraclasse. Mas o olhar desta professora está sobre o quê essa aluna conseguiu "demonstrar" do que aprendeu dos conteúdos estabelecidos como fundamentais para o período em que estavam e esse olhar é o que produz sua descrença no aluno. Para ela, essa aluna já fracassara...

A perspectiva de educação como processo não é a valorizada pela professora, que exalta aqueles conhecimentos que os alunos sobrepõem uns sobre os outros sem que realmente se apropriem de seus significados. Os profissionais que têm essa concepção de Educação e por acreditarem que os ciclos chegaram para "mascarar" o insucesso dos alunos, grande parte das vezes, recaem no que nos alerta Elvira Lima: "Equivocadamente, a idéia de ciclo é, muitas vezes, associada à aprovação automática e à ausência de avaliação."

Os ciclos de formação requerem uma visão "humanizadora" do processo de ensinar/aprender. Para o ciclo de formação, a aprendizagem enciclopédica não é o objetivo, não é a razão de ser das instituições de ensino, nele há uma reconceituação da escola como espaço de formação global do indivíduo.

Ao contrário do que possa transparecer, o ciclo de formação não exclui da escola os conteúdos escolares, o que parece ser uma certeza entre os professores e justificativa para rejeição, justamente porque iria contra a própria proposta desconsiderar a dimensão histórica social destes conteúdos. A idéia é ressignificá-los, dotar-lhes de sentido na vida dos alunos.

O gráfico abaixo apresenta um exemplo de organização curricular, demonstra como a escola Plural estrutura suas disciplinas curriculares e como os temas da atualidade são transversos aos conteúdos:

 

Temas Transversais

"A Educação para a cidadania é o tema transversal nuclear, que se insere em todas as disciplinas e impregna todos os demais temas." (Belo Horizonte,1995)

Para a proposta dos ciclos de formação da escola Plural, os temas transversais se inserem como conteúdos curriculares com a finalidade de "dotar de valor social" as disciplinas trabalhadas, não são "temas atuais" aglutinados nas disciplinas.

A escola por ciclo de formação é organizada por idade, no caso de Belo Horizonte temos a seguinte ordenação :

 

1º ) ciclo da infância: 6,7,8/9 anos
2º) ciclo de pré-adolescência: 9,10,11/12 anos
3º) ciclo da adolescência: 12,13,14/15 anos

 

Essa divisão por idade é justificada pela proposta como adequada aos tempos de formação onde existe uma combinação íntima de conteúdos culturais e de vivências de formação intelectual, volitiva, artística, física, politécnica." (ARROYO,1997:11-26 )

Os ciclos de formação na proposta da escola Plural são estruturados buscando a aprendizagem do aluno e não apenas sua permanência na escola, neles a percepção de promoção automática não é nem aceitável porque não existe a possibilidade de retenção ou promoção, mas sim uma concepção de educação processual, onde a estruturação priorizada é a divisão por idade. De acordo com o documento da proposta da escola Plural, os ciclos foram criados para acompanhar o desenvolvimento dos alunos e essa postura invalida a prática de "empurrar para o ano seguinte" . A avaliação, eixo central na percepção dos ciclos de formação, deve abandonar a medição, a verificação de conteúdos escolares mínimos e encarar o aluno em seu tempo contínuo de desenvolvimento biológico e cultural. Dessa forma a avaliação deixa de ser entendida com "um" instrumento para fins de aprovação ou reprovação, passando a ser um elemento facilitador ou possibilitador de aprendizagem do aluno na medida em que deixa de ser pontual e passa a ser contínua permitindo ao professor recolher indícios sobre o desenvolvimento do aluno, habilitando-o a intervir no processo.

O acompanhamento do desenvolvimento do aluno não apenas pelo professor regente, mas por todos que junto com ele compõem o ciclo, garante ao aluno a continuidade no desenvolvimento do seu processo de aprendizagem. Esta é a plasticidade verificada no sistema de ciclo e quando verdadeiramente praticada é o que o possibilita! A observação de cada aluno pelo coletivo de professores é um dos fatores que torna possível que este aluno caminhe em seu desenvolvimento bio-sócio-cultural sem que seja necessário pular etapas ou estacionar em algum ponto do processo educacional já que este fica atrelado incondicionalmente ao desenvolvimento global do educando.

Os ciclos de aprendizagem encontram na referência aos conteúdos a diferença de proposta com os ciclos de formação. Para Perrenoud (2000), "Um ciclo de aprendizagem é associado a um conjunto de objetivos a serem alcançados em vários anos."

Minha pesquisa indica que, no cotidiano escolar, freqüentemente estes objetivos acabam sendo traduzidos em listagem de conteúdos, de competências que devem ser atingidas ao final do período recortado como ciclo. A divisão por idade também ocorre nessa modalidade de ciclo, mas fica subordinada aos conteúdos/competências fixados previamente. O caráter processual que engendra o ciclo de aprendizagem subordina-se não ao processo do aluno, mas ao processo de apreensão de conteúdo. Ao contrário do ciclo de formação que vê no conteúdo um caminho para um fim outro que é a formação do sujeito em todos os tempos de sua vida, o ciclo de aprendizagem prevê o conteúdo com objetivo final. Este fato permite uma leitura do que seja ciclo, bem distanciada da possibilidade de entendimento do que seja um ciclo dividido por idade. Ocorre que, como o priorizado é o conteúdo, recaímos na existência da retenção ou promoção. Neste ciclo a preocupação, assim como no ciclo de formação, também é com a aprendizagem, mas se ao final do ciclo o aluno não demonstrou ter "aprendido" os objetivos estabelecidos, qual a saída senão a retenção?

Esta característica dos ciclos de aprendizagem proporciona um retorno disfarçado ao regime seriado, já que com os "ciclos" organizados sobre a possibilidade de promoção ou retenção dos alunos ao final de cada etapa (que pode ter um período de 2 ou 3 anos), numa clara tentativa de suprir a "necessidade" de reter o aluno que não atingiu o objetivo estipulado para o fim do ciclo, mantém-se uma distribuição fragmentada dos saberes que, conseqüentemente, estão distanciados do cotidiano dos alunos. Transformar as competências em listagem de conteúdos é ignorar que estas, mesmo quando referentes a objetivos a serem atingidos, o fazem dentro de uma nova relação escolar (Perrenoud, 2001), onde o conteúdo é valorizado por sua condição de pertencimento na vida do aluno e utilizado de forma a propiciar ao indivíduo que os recursos intelectuais adquiridos possam ser mobilizados .

 


"A competência não reside nos recursos ( conhecimentos, capacidades...)a serem mobilizados, mas na própria mobilização desses recursos. A competência pertence à ordem do "saber mobilizar". Para haver competência, é preciso que esteja em jogo um repertório de recursos (conhecimentos, capacidades cognitivas, capacidades relacionais...)."(Le boterf apud Perrenoud, 2001:21)

 

A relação série/ciclo, bastante presente, como vimos, nos debates na rede municipal de Niterói, não me parece uma questão isolada, desconectada do contexto mais amplo em que a estruturação da organização escolar vem ocorrendo. Parece-me relevante trazer para o estudo o encaminhamento que vem sendo dado a esse processo pelo Ministro da Educação, traduzindo a implementação de uma determinada política educacional em nível nacional.O Ministério da Educação desenvolveu para a Educação um documento que visa a integração do gigantesco sistema de ensino existente no país e através dele recomendou linhas e pensamentos educacionais, uma das sugestões dos Parâmetros Curriculares Nacionais.

 


"Os Parâmetros Curriculares Nacionais adotam a proposta de estruturação por ciclos, pelo reconhecimento de que tal proposta permite compensar a pressão do tempo que é inerente à instituição escolar, tornando possível distribuir os conteúdos de forma mais adequada à natureza do processo de aprendizagem." (Parâmetros Curriculares Nacionais-p.59)

 

A leitura que me é possível fazer da postura apresentada nos Parâmetros Curriculares Nacionais na questão referente aos ciclos é aquela na qual a priorização da Educação está na sua capacidade de "escolarizar" os alunos. Quando o referencial nos fala de uma "estruturação por ciclos", fica-me a impressão de que tão somente o "tempo" referente ao "ano letivo" foi ampliado de forma que os conteúdos encontrem os espaços que acabaram por lhes serem negados no processo de estruturação (destes conteúdos) por série, ou seja, é como se distribuíssem o chamado"fracasso" do aluno e da escola por séries com períodos de tempo dilatados. O que pode impedir a real supressão das séries.

No momento atual, podemos perceber que os objetivos desta Nova Educação perpassa os Parâmetro Curriculares Nacionais em várias de suas recomendações, o que já virou jargão educacional, " educar para a cidadania" é orientação geral deste documento e seu discurso se afina com o princípio dos ciclos. Porém não podemos reduzir os ciclos à função eminentemente política, a saber, índices de escolaridade, que subtrai da proposta a revolução educacional que é a verdadeira responsável pelo novo pensar o "aprender".

Não é suficiente, como parece querer nos fazer aceitar os PCN's , a simples reorganização dos conteúdos ou mesmo a adoção de um "sistema de avaliação" que evite "que a aprendizagem tenha obstáculos inúteis, desnecessários e nocivos" (PCN-volI-p61) pelo período que for estabelecido aos ciclos para que se concretize a filosofia desta nova proposta de Educação. A idéia de ciclos nos remete ao desenvolvimento do aprendiz num determinado espaço de tempo, e não ao dispor de "conteúdos" estabelecidos "genericamente" por este período!

Um dado, no mínimo, interessante é o de o conteúdo dos PCN's estar aparentemente "socializado" pelos professores da rede mesmo que apenas uma minoria deles tenha tido em mãos algum dos volumes do referido documento.

Em dezembro de 2002, realizamos uma pesquisa (Anexo VIII) para buscar perceber como estava se dando a apropriação dos PCN's pelas professoras, 42 questionários foram respondidos. Exatamente a metade, 21 professoras, atestaram que:

 

- Tinham conhecimento dos PCN's, mas que não eram lidos.


- Apesar de não os lerem, os PCN's orientam o trabalho pedagógico das escolas na medida em elas sabem que as propostas (que chegam prontas) a elas trazem as tendências impressas nos PCN's.


Pelas respostas dadas, fica claro que a utilização dos PCN's nas escolas se dá de forma utilitarista (quando julga necessário, o professor diz: - conforme os PCN's....) e distante do processo de reflexão do professor.

Esta constatação me leva a crer que, infelizmente, o professor ainda parece se manter alheio ao processo de reflexão, aceitando sem muitos questionamentos às receitas prontas que lhes entregam. Como queremos que nossos alunos construam conhecimentos, como está posto no atual discurso sobre Educação, se nós nos contentamos em receber o conhecimento pronto?

A formação de sujeitos mais reflexivos é de fundamental relevância para que propostas oficiais, como os PCN's, não se transformem em receituários cerceando, assim, as possibilidades de ação dos profissionais da educação.

Na escola pesquisada, uma das reuniões de planejamento no início de 2002 foi sobre "competências", o que são, o que trabalhar e nessa reflexão podemos perceber algumas contradições importantes. Os profissionais foram divididos em dois grupos e cada um apresentou sua reflexão, que tiveram como referência teórica recortes de textos do Perrenoud sobre competência.

O grupo que ficou com a reflexão sobre as competências para o 1º ciclo retornou com o que denominou de "objetivo geral" :

 

  • Respeito à realidade do aluno; valorização da produção de textos; formação pessoal e social através da construção da identidade e autonomia; educação pelo movimento; conhecimento das artes; natureza física, biológica e social; conhecimento matemático baseado num ensino contextualizado.


O grupo concluiu que os objetivos acima deveriam ser alcançados com o ensino guiado pelo programa apresentado na proposta político pedagógica da rede e que era preciso "somar" as competências do 1º ciclo às competências da educação Infantil.

O grupo responsável pelo 2º ciclo definiu competência como ser capaz de reunir recursos, saberes, capacidades, informações, etc. que possibilitem o indivíduo a solucionar os problemas de ordem prática, cotidiana. Sendo assim, é necessário ter como eixos:

 

          • Motivar o aluno a ter vontade de aprender; desenvolver o raciocínio (fazer pensar); propiciar o domínio da leitura, da escrita e das diversas linguagens; dar mais significação aos conteúdos (contextualizar); despertar o pensamento crítico como cidadão.


O grupo concluiu como pontos principais: integrar os conteúdos; encontro entre professores para troca de experiências e trabalhar os conteúdos seqüencialmente nos ciclos.

Podemos perceber que mesmo com algumas diferenças internas nos grupos, os dois apresentaram definições próximas do que seriam as competências a serem trabalhadas: desenvolver cidadania, domínio das linguagens, valorização da produção dos alunos,etc. Agora, quanto ao que concluíram foram idênticos : somar as competências de uma etapa a outra observando um seqüência definida de objetivos.

As observações e a conclusão a que os grupos chegaram e algumas outras colocações individuais na escola me fazem crer que para a maioria dos profissionais a centralidade, a importância do ensino está naquilo que o aluno apreende do conteúdo. Determinados pensamentos viram "slogans" educacionais, como : "desenvolver o raciocínio ", mas na verdade mantém alta a bandeira dos conteúdos como verdadeiros responsáveis por "desenvolver o raciocínio".

Numa espécie de desabafo, algumas professoras reunidas em um horário de recreio fizeram colocações que explicitam ainda mais essa indefinição quanto ao ensino apresentada acima:

 

Professora A - "Nós não sabemos trabalhar em ciclos. E não tem ninguém que nos ensine!"

Professora A - "A gente senta para tentar definir isso (os ciclos), mas toda vez que a gente senta e discute acaba saindo série!"

Professora B - "Eu acho que tem que agrupar sim pelo que a criança sabe! Sabe letra? Fica aqui! Sabe frase? Fica ali!"

Professora A -"Eu acho que o ciclo é isso: trabalhar a partir do que a criança sabe!"

 

Fica nítido que apesar de certo incômodo, a concepção seriada ainda prevalece no imaginário das professoras, a tal ponto que se torna muito difícil conceber o ensino de outra forma que não a rigorosamente seriada.

NOTAS:

¹. O 1º ciclo do ensino no plano francês inicia-se aos 3 anos, mas só é obrigatório a partir dos 6 anos. (Conséquences de ces príncipes - Plan Langevin-Wallon)

². A escola Plural ( Belo Horizonte), ao alterar a organização do trabalho na escola, articula quatro "núcleos vertebradores" que são : Eixos norteadores da escola; Organização dos tempos escolares; Conteúdos e processos; Avaliação.( Dalben,2000)


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