"Uma
verdadeira viagem de descoberta não é procurar novas terras,
mas ter um olhar novo."
(Michel Proust)
O
conceito de educação por ciclos não é de
elaboração tão recente, já foi exposto de
forma bem concreta numa proposta idealizada por Henri Wallon e Paul
Langevin para a França do pós-guerra (LIMA,2000:12).
O Plano Langevin-Wallon, como ficou conhecido, tinha como objetivo a
reconstrução da França democrática depois
da 2ª grande guerra (a Comissão era inicialmente presidida
pelo físico Langevin e após sua morte, Wallon assumiu).
Wallon defendia uma educação que desse conta do sujeito
aprendiz visando sua integração na comunidade/humanidade.
Em seu
pensamento, a Educação deve se ajustar ao homem e seu
desenvolvimento e não aos interesses hegemônicos passageiros
do momento (política, economia, preconceitos, culturas...)
(Lima, 2000:12), apesar de reiteradamente afirmar o papel primordial
que o meio desempenha no desenvolvimento da criança (Wallon,1979)
e da necessária orientação que deve ser dada ao
educando na interação com esse meio. Segundo Wallon, a
ensino escolar não deve torna-se um espelho da sociedade, ao
contrário, quanto mais se dedicar a sua função,
que é o ensino do aluno, mais eficaz se torna para o aluno e
para a própria sociedade. Esse ensino não deve contribuir
ainda mais para a fragmentação do indivíduo, que
é a conseqüência da atual dinâmica escolar.
Onde, através da mera transmissão dos conteúdos
escolares compartimentalizados por suas áreas, vai-se construindo
uma lógica simplista, reducionista no indivíduo.
A Educação
deveria contemplar o homem em sua totalidade e dar-lhe um sentido de
coletividade.
"Uma educação que queira
respeitar a totalidade da personalidade e a integridade dos processos
realizados deverá utilizar, pelo contrário, cada
época da infância para assegurar às disposições
e aptidões correspondentes o seu pleno desenvolvimento,
de tal forma que entre elas não existam atrofiadas ou extraviadas,
mas também de modo que à sucessão das idades
corresponda uma integração progressiva das actividades
mais primitivas nas mais evoluídas.Assim, não poderá
dispensar-se de ser orientada para o desenvolvimento da análise
intelectual e da decisão autônoma." (Wallon,1979:14)
É
flagrante a importância dada à cultura, uma produção
humana, por Wallon em relação a constituição
psíquica e biológica do ser humano. Wallon sinaliza a
influência que a cultura tem na constituição do
sujeito, afirma que dependendo das relações que forem
se estabelecendo no decorrer de seu desenvolvimento seu horizonte poderá
ser ampliado e ter cada vez mais relações sofisticadas,
"mais matizadas, entre ela e os outros", e dessa forma ir-se
formando um sujeito pleno. Mesmo referindo-se à "simbiose
fisiológica", fase em que a criança interage com
o meio através de gestos e gritos visando deliberadamente conseguir
algo da mãe (pessoa com a qual a criança inicia sua relação
com o social) e à "simbiose afetiva", fase em que as
relações humanas estão fortemente dependentes das
relações de amor (a criança e sua mãe),
o psicólogo destaca a influência do meio na constituição
da criança, atrelando, inclusive, desenvolvimento psíquico
e físico. Demonstra uma possível preponderância
do psíquico ao físico, ao nos trazer exemplos de crianças
que na maior parte de seu tempo eram confiadas às creches apresentavam
comprometimento até mesmo no seu lado biológico, enquanto
outras crianças que mantêm uma relação constante
com a mãe, normalmente seu primeiro elo com o meio exterior,
mesmo em precárias condições de vida, como as crianças
que vivem com suas mães nas prisões públicas, desenvolvem-se
bem psíquica e fisicamente. O autor alega que na criança
de idade escolar esta relação se inverte, o contato com
os outros e com os novos conhecimentos sem uma dependência excessiva
da relação maternal faz com que a criança que tem
acesso à escola se desenvolva mais e melhor que aquela que não
freqüenta a escola.
Wallon
defende que a educação deve acompanhar o desenvolvimento
do estudante sem impor-lhe obstáculos desnecessários,
respeitando os processos de desenvolvimento da criança, apesar
de considerar responsabilidade do mestre saber interferir com base em
suas observações. Tanto que o Plano orientado por ele,
é categórico ao afirmar, em seu capítulo sobre
as sanções dos estudos, que: "Nenhum exame ou
concurso terá lugar antes do fim dos anos de escolaridade obrigatória".
(Plan Langevin-Wallon). Com
isso, caberá ao coletivo dos mestres a orientação,
organização e distribuição dos alunos por
entre os ciclos com base nas atividades realizadas anteriormente pelos
alunos, e isso não quer dizer deixar ao acaso a aprendizagem
dos alunos.
Os princípios
gerais lançados por Wallon seriam: justiça(onde a igualdade
e a diversidade são aspectos que complementares e não
opostos), igualdade no fazer intelectual e prático, orientação
da ação educativa com vista à formação
integral do indivíduo e o incentivo à cultura geral que
instrumentalize o mais "especialista" dos profissionais de
forma que ele consiga mobilizar-se com o surgimento das tecnologias
(Lima,1998:13). É importante
destacar que a proposta de Wallon não chega para aumentar a aprendizagem,
ou seja, ela não é uma espécie de recurso pedagógico
que visa melhorar o desempenho dos alunos, mas como uma reestruturação
do pensar o "aprender" e a formação do sujeito.
A exemplo
do que ocorre na Educação Infantil, onde não existe
um currículo fechado a ser transmitido, mas um esforço
conjunto que favoreça o desenvolvimento global da criança,
inclusive com a aquisição de conceitos que a ajudará
na sua constituição como sujeito, Wallon nos apresenta
uma educação ciclada que pretende, através da constante
observação, dar continuidade a este processo iniciado
na Educação Infantil, rompendo com a seriação
que impõe aos alunos uma concepção de mundo discriminadora
e excludente desde o início de sua escolaridade. Não é
uma questão de dar um tempo maior para o fracasso ou o sucesso,
é uma nova visão do que signifique a Educação
, ele coloca em prática suas crenças de que o desenvolvimento
da criança obedece etapas que lhes são próprias,
individualizadas, havendo uma melhor compreensão dos objetos
quando estes se apresentam de forma "inteira" e não
como o adulto procede: fragmentando, simplificando.
"...O
desenvolvimento psíquico da criança é composto
de estádios que não são a estrita continuação
uns dos outros. Entre eles existe subordinação,
mas não identidade de orientação funcional.
As actividades primitivas são progressivamente dominadas
por actividades mais recentes e integram-se nestas últimas
mais ou menos completamente." (Wallon,1979:12)
A proposta que Wallon explicita em seu plano de reforma do ensino
francês, é de formação do sujeito biológica
e culturalmente no lugar da educação enciclopédica
praticada, de um ensino dogmático e especializado, baseado
em verdades a serem transmitidas pelos mestres, onde a transmissão
de informações é o fim último no lugar
de uma educação. A prática que considera essencial
é a de levar a criança a observar, refletir sobre esta
observação e assim formular hipóteses, tornando-se
capaz de registrá-las. Baseado em sua experiência profissional
como psicólogo e em sua vivência como pesquisador da
educação, na reforma do ensino francês Wallon
busca garantir o apoio pedagógico adequado às diversas
idades e suas respectivas formas de pensar:
"Até recentemente, o erro da educação,
nas nossas sociedades modernas, consistia no excessivo desconhecimento
das primeiras etapas e na imposição prematura
à criança das forma de pensar e de agir que aparecem
mais tarde - as do adulto."
(Wallon,1979:15).
No plano, Wallon organiza a educação para que esta se
adapte aos períodos do desenvolvimento humano de forma que
o educando tenha suas etapas respeitadas. Na proposta, o
ensino francês de 1º grau se divide em
3 ciclos¹:
1º
ciclo escolar - de 3 para 11 anos. (ciclo elementar)
2º
ciclo escolar - de 11 para 15 anos. (ciclo da orientação)
3º
ciclo escolar - de 15 para 18 anos. (ciclo da determinação)
O programa
de ensino do Plano prevê que sejam indicados o que será
ensinado por ciclo e por ano, mas de forma flexível para que
se evite a rigidez das matérias, para que o "impulso de
curiosidade" nos alunos não seja prejudicado, já
que, para os autores do plano, é esse um dos objetivos essenciais
da educação. Em várias passagens, Wallon, demonstra
a necessidade de não se "endurecer/especializar"
as disciplinas, e o motivo seria a forma de apreender da criança
que, ao contrário do adulto, apreende a realidade em sua complexidade.Wallon
acredita que favoreceríamos profundamente a instrução
da criança se fosse desenvolvido simultaneamente ao intelecto,
"as suas aptidões sociais". (Wallon,
1979:209)
Especificamente
quanto ao Programa, o conteúdo comum do 1º ciclo (6-11
anos) deve abranger os instrumentos necessários do conhecimento
(leitura, escrita, cálculo); os meios de expressão (desenho,
linguagem) e todas as atividades que podem desenvolver as aptidões
de observações e favorecer o aprendizado da língua
estrangeira corrente (não sendo obrigatório) pelo método
direto. Durante o 2º e 3º ciclos serão aprofundados
os estudos e as opções de estudos se dão. Essa
divisão do programa justifica-se no pensamento de Wallon quando
este diz que para um "objeto suscitar verdadeiramente a actividade
intelectual da criança, é preciso que se lhes ofereça
na sua integridade e não dividido segundo as diversas disciplinas
cuja soma constitui o ensino nos seus diferentes níveis.".
(Wallon,1979:230).
Quanto
aos métodos, a proposta garante que devem ajustar-se às
capacidades de cada um, respeitando assim as diferenças de
aptidões entre as crianças.
Wallon
não negligencia a existência das dificuldades de aprendizagem
e propõe no Plano para esses casos as "sections
particulières", onde pedagogo e psicólogo escolar
trabalhariam juntos na readaptação (SECTIONS
DE RATTRAPAGE ) da aprendizagem sem que haja atraso do aluno na
progressão pelas classes . A idéia é reverter
o número de 22% de crianças nas escolas primárias
parisienses com 2, 3 ou até 4 anos de distorção
classe/idade, à época do plano, é claro. O que
ele considera inaceitável.
Para
Wallon, a existência de um homem dual, onde cultura se contrapõe
à especialização, é um erro conceitual.
O indivíduo existe através da completude de suas características
e aptidões. A idéia de que cultura exclui especialização,
quer dizer, se há uma não pode haver a outra, fragmenta
este homem. E a luta na Educação naquele momento, como
acredito seja ainda hoje, já não era para fragmentar,
mas pela integração do homem com ele mesmo e com a humanidade.
"A cultura geral representa o que aproxima e une
os homens enquanto a profissão representa freqüentemente
o que o separa. Uma cultura geral sólida deve por conseguinte
servir de base à especialização profissional
e prosseguir-se durante a aprendizagem, de modo que a formação
do homem não seja limitada e obstruída pela técnica.
Num Estado democrático, onde qualquer trabalhador é
cidadão, é indispensável que a especialização
não seja um obstáculo à compreensão
dos problemas e que a ampla e sólida cultura libere o homem
das estreitas limitações do técnico. É
por isso que o papel da escola não deve limitar-se a despertar
o gosto da cultura durante o período da escolaridade obrigatória,
qualquer que seja a duração. A organização
nova do ensino deve permitir o APERFEIÇOAMENTO CONTÍNUO
do CIDADÃO e do TRABALHADOR. (Principes
Généraux - La Reforme De L'enseignement - Ministère
De L'éducation Nationale)
Nesta
concepção de uma Educação humanista, a
formação de um cidadão participante, crítico,
ativo, integral, assumindo sua cidadania, tendo respeitado o pluralismo
cultural que crie uma nova identidade nacional, impulsiona o pensamento
dos ciclos apresentado por Wallon.
Buscar
em suas propostas sugestões que possibilitem a implementação
do sistema de ciclos no nosso município pode ser viável.
Algumas das idéias que perpassam o documento podem nos orientar
no sentido de entendermos o "como" realizarmos a implementação:
uma delas diz respeito à enturmação, outra à
questão dos conteúdos e ainda aquela que nos faz atentar
para as diversas formas de pensar possíveis às crianças
no processo pedagógico. Porém, ao meu ver, o que de
mais relevância a proposta de Wallon nos apresenta é
a reiterada valorização da cultura e do social como
possibilitadores da construção de um novo indivíduo,
de uma nova comunidade/humanidade.
Para
tentarmos entender os ciclos, precisamos ter a compreensão
de que a "gestação do novo" pensamento educacional
se dá de forma paulatina e certamente diferenciada em cada
rede, em cada escola que opte por essa nova concepção.
Talvez por isso, as unidades escolares, seus professores e as próprias
redes de ensino encontrem dificuldade para visualizar o que seria
uma "definição" de ciclos e a partir daí
consolidarem a passagem do pensamento seriado para o em ciclos (seja
o ciclo de formação ou o de aprendizagem).
Como
já foi visto, antes mesmo da nova LDB oficializar a possibilidade
do ensino por ciclos, várias Prefeituras já haviam iniciado
estudos que culminariam com a posterior adoção dos ciclos,
como é o caso da prefeitura de Porto Alegre, Rio de Janeiro,
São Paulo, Belo Horizonte. Na realidade, se associarmos ciclos
à premente necessidade do Estado de comprovar escolaridade,
teremos que nos remeter ao início do século XX quando
surge a proposta de promoção automática e ao
final dos anos 60, quando várias experiências em direção
aos ciclos se concretizam (Mainardes,
2001), mas, na verdade estas experiências não se
desligaram do pensamento seriado, e ainda, nas palavras de Silva e
Davis (Silva e Davis apud Mainardes,2001:41),
continuaram a buscar organizar classes homogêneas e os professores
não foram instrumentalizados para trabalharem com grupos heterogêneos.
"a
polêmica em torno da promoção automática
vem se acumulando e, a medida que se expande e se inflama, acaba
por escamotear a realidade, impedindo o exame da questão
central: a incapacidade da escola brasileira abandonar práticas
centenárias e virar do avesso sua organização
interna."(Silva e Davis apud Mainardes,
2001:pág.41)
Para
outros autores, falhou o compromisso com a aprendizagem dos professores
que deveriam ser "capacitados" (Mainardes,
2001) a fim de poderem garantir a efetiva aprendizagem dos alunos
e não apenas deslocá-los pelas séries sem reprovação.
Ainda, para Rita Durso (2002),na
promoção automática
"sustentada a lógica do regime seriado, admiti-se
o mascaramento do insucesso escolar, partindo da meritocracia,
do esforço pessoal e do pressuposto de que os sujeitos
interagem com o conhecimento e permanecem sem aprender."
Os ciclos,
sejam de aprendizagem ou de desenvolvimento Humano, são na
sua concepção opostos a essa "política"
de escolarização.
As duas
concepções educacionais, série e ciclo, são
conceitualmente diferentes. Na seriação, sistema no
qual fomos formados e que foi "fortemente marcado pela escola
francesa do séc XIX" (Lima,
2000), a ordenação do tempo escolar era de tal forma
rígida que impunha ao estudo do sujeito aprendiz um ritmo de
aprendizado dos conteúdos pedagógicos que não
lhe era próprio. Contudo, como esse aluno pertencia a um grupo
relativamente pequeno que vivia experiências culturais e até
emocionais muito próximas entre si, essa forma de Educação
parecia dar conta. Nesta escola, o sucesso escolar era encarado como
esforço individual (Durso,
2002) e isso é como dizer que se o professor ensinou, a situação
de aprendizagem foi estabelecida, o aluno estava lá e mesmo
assim não aprendeu foi porque não se esforçou,
não teve méritos, ou seja, fracassou por culpa dele
mesmo.
Com o
ingresso de uma população cada vez mais numerosa na
escola, o fracasso começa a se tornar incômodo . A diversidade
cultural, a convivência com o diferente, múltiplas etnias
e credos convivendo em um mesmo espaço/tempo começam
a provocar problemas que, anteriormente, a série amortecia,
justamente porque a diversidade era minimizada. A explicação
para esse fracasso em massa dos alunos nas escolas públicas
passou pela meritocracia, pelo dom, pela compensação
e, hoje, está posta na questão da necessidade de reestruturação
da escola como espaço de aprendizagem significativa e não
mais como um espaço onde conteúdos arbitrariamente selecionados
ditam o cotidiano escolar.
O pensamento
que se apresenta não está em busca de uma unificação
dos saberes (Morin, 2000) com
uma simplificação reducionista, mas sim, de uma forma
mais "realista" de enxergar os fatos que compõem
o mundo, em busca de uma forma que nos auxilie na complexidade dessa
nova Era Planetária preconizada por Morin. E , se existem os
"saberes" diferenciados, existem suas especificidades e
não nos cabe simplesmente negá-los, mas articular estes
saberes (Morin,2000) tendo em mente que a complexidade não
é alcançada com a totalização das partes
nem no isolamento de cada parte, mas antes, é na interação
entre parte-todo que a complexidade se revela e certamente não
podemos perdê-la de vista se tivermos como objetivo maior a
formação global de nossos alunos.
Edgar
Morin, um teórico do Pensamento Complexo, não nega a
especificidade, ao contrário, em várias passagens mostra
que do complexo faz parte o específico : "É
a unidade humana que traz em si os princípios de suas múltiplas
diversidades. Compreender o humano é compreender sua unidade
na diversidade, sua diversidade na unidade. É preciso conceber
a unidade do múltiplo, a multiplicidade do uno."(Morin,2000)
Essa
fala de Morin mostra o quanto precisamos ter cuidado nessa mudança
de olhar da série para o ciclo para evitarmos a banalização
das propostas. Descartar os conteúdos disciplinares construídos
na história da Ciência não é a proposta
dos ciclos, a função deles é que é alterada.
"Na
escola primária nos ensinam a isolar os objetos (de
seu meio ambiente), a separar as disciplinas (em vez de reconhecer
suas correlações), a dissociar problemas, em
vez de reunir e integrar. Obrigam-nos a reduzir o complexo
ao simples, isto é, a separar o que está ligado;
a decompor, e não a recompor; e a eliminar tudo que
causa desordens ou contradições em nosso entendimento."
(MORIN,2002:15)
A hiperespecialização, segundo Morin(2002), pode ter
sua utilidade nos campos específicos, que permitem o recorte,
o isolamento do conhecimento, mais propriamente no trato com as chamadas
máquinas artificiais. Mas, certamente não dá
conta da complexidade que exigem as relações humanas,
que se encontram ameaçadas pela lógica "inumana"
das máquinas artificiais podendo nesse processo se afastar
daquilo que é "subjetivo, afetivo, livre, criador"
(MORIN,2002:15).
A idéia
de segmentação, fragmentação do conhecimento,
disciplinarização são vetores que diferenciam
drasticamente as duas propostas de ensino. Ao contrário do
ciclo, para o qual os conteúdos pedagógicos são
meios para um fim maior, na seriação estes conteúdos
são definidos como objetivos finais. Nessa afirmativa, encontramos
um ponto nevrálgico para a compreensão dos ciclos: conteúdos
como meio ou como fins?
Para ilustrar essa dificuldade no desvio de olhar possível
aos educadores que estão atuando em sala de aula, o que significa
que têm sua formação calcada na seriação,
relato a seguir uma passagem acontecida comigo na escola onde realizei
esta pesquisa.
No início
do ano letivo de 2002, eu estava a frente de uma turma do 2º
ano de escolaridade, dentro do sistema de ciclos instituído
pela Fundação. Fiquei com a turma durante o primeiro
trimestre, quando saí para assumir outra função
dentro da escola, no mês de abril, a professora que me substituiria
também esteve atuando na turma. Salvo algumas exceções,
o conjunto da turma se encontrava num processo inicial de alfabetização.
Ao final do 1º trimestre, eu deveria lançar as notas,
juntamente com a freqüência, de cada um dos alunos no mapa
da secretaria, assim o fiz, porém a lápis, para que
a outra professora que já trabalhara com a turma e que daria
continuidade ao trabalho pudesse participar desta etapa, opinando
e contribuindo.
Para
encontrar o famigerado conceito, que no município se traduz
na escala A, B , C, D e E, procurei avaliar o processo revelado por
cada um, seus avanços, retrocessos, sua motivação
para aprender, suas relações, enfim, tudo que pudesse
ajudar nessa atribuição de "valor", a nota
que eu deveria "aferir". O resultado médio da turma
não foi A, mas muito menos E!! Os conceitos ficaram acima do
esperado pela supervisão, como eu pude constatar depois!
Estava
já na outra sala preparando meu plano, quando a supervisora
da escola entrou e me perguntou pelo mapa, avisei que já estava
pronto e que o deixara junto com o diário da turma. Expliquei
que estava a lápis porque gostaria que a outra professora opinasse.
Foi aí que eu me surpreendi, a supervisora não estava
preocupada com o fato do lápis mas pelas notas que eu havia
atribuído a cada um. Ela questionou as notas, me lembrando
que eu estava pensando em termos de alfa mas minha turma era do 2º
ano de escolaridade ou seja 1ª SÉRIE! Será que
eles teriam essas notas na 1ª série? Foi a pergunta que
ouvi, com a sugestão, nem um pouco velada, de que as notas
deveriam ser mais baixas, D ou E. De início não soube
nem responder, depois tentei argumentar mas não acho que tenha
conseguido. Resultado? Peguei minha caneta preta e passei por cima
do lápis, sobre as notas que eu havia dado e que não
alteraria, pelo menos não pelo motivo apresentado.
Sem dúvida,
o pensamento da supervisora é regido pela da lógica
seriação, o que parece impedir que a sua percepção
da educação por ciclos não vá além
da justaposição das séries, alterando em sua
possibilidade de entendimento tão somente o número de
dias que compõem um período letivo, encarando os ciclos
como uma forma diferente de dividir este período. Ao invés
de bimestres ou trimestres agora são biênios ou triênios
cada qual com seus conteúdos fragmentados e devidamente estipulados
antes dos períodos começarem.
Pensei ser este um pensamento isolado do profissional, mas estava
enganada. No Conselho de Classe que se seguiu, escutei uma narrativa
muito semelhante de outra professora, ela apenas não usou o
termo série:
-"Precisamos
de um plano de avaliação, temos todos que avaliar
da mesma forma. O professor não tem que avaliar o seu
trabalho, é preciso saber o que queremos no fim do
ciclo e se o aluno aprendeu ou não o conteúdo
preparado para cada ano de escolaridade."
O preço
que pagamos (nós professores e os alunos por reflexo) pela
negação do processo vivido pelo aluno em prol dos conteúdos
estabelecidos para as séries ou anos de escolaridade, determinados
pela lógica estereotipada da seriação, é
a descontinuidade do processo de formação do educando,
o isolamento do professor (cada um faz a sua parte) e a continuidade
do fracasso escolar. Um dos resultados imediatos dessa perspectiva
de avaliação é a permanente tentativa de se montarem
turmas homogêneas, onde o processo de formação
do aluno é "classificado" a partir dos conteúdos
adquiridos, que foram "selecionados" visando à formação
do sujeito numa perspectiva seriada.
A pergunta
que me faço é:
- Como
viver este conflito de concepções? Melhor, como elucidar
questões e assim causar conflitos?
Em entrevista
ao Jornal do Brasil, Miguel Arroyo, tratando da questão da
implementação dos ciclos em Belo Horizonte, se coloca
e faz uma breve, mas plena, diferenciação entre o que
se entende por série e o que se espera do ciclo:
"- Se considerarmos que a escola é uma transmissora
de saberes técnicos, um bom transmissor é fundamental
e isso se relaciona ao sistema seriado. O centro da escola seriada
é a habilidade a ser transmitida. Tudo chega de forma
dosada, como se fosse um prédio em que vai se construindo
um andar sobre o outro e se um andar não é bem
construído, não se sai dali. O sistema de ciclos
é o sistema do sujeito em cada tempo de sua vida. O conhecimento
não é um fim, mas um meio. " Jornal
do Brasil, Caderno Educação e Trabalho, 03/12/2000
(grifo nosso)
Miguel Arroyo nos fala dos ciclos de desenvolvimento humano, Elvira
Lima nos fala de ciclos de formação. Os termos escolhidos
pelos teóricos para referirem-se a esta essa nova "semente"
educacional, já trazem em si uma nova visão. Ou seja,
os ciclos de formação não são um modismo,
tampouco uma "corriqueira", porém "nova",
proposta pedagógica. E, assim sendo, não podem ser entendidos
através de "fragmentos", primeiro currículo,
depois, avaliação, depois formação de
alunos e professores, mas, ao contrário, a complexidade imanente
do sujeito em constante "estado de formação"
é a única possibilidade de olhar que podemos ter ante
uma concepção de ensino por ciclos.
O que
existe de novidade na prática do ensino por ciclos e que tem
por objetivo favorecer o processo de aprendizagem/ensino vivido pelo
aluno não é a simples introdução no cotidiano
escolar de estratégias pedagógicas "alternativas",
apesar delas existirem e marcarem a implantação dos
ciclos em alguns municípios (aulas germinadas, salas temáticas),
o ciclo em si é a novidade estratégica, isso, lógico,
se considerarmos que mesmo as classes multisseriadas do início
do século XX eram planejadas seguindo a lógica da seriação.
"Ciclo
de formação é conseqüência da reconceituação
da escola como espaço de formação, não
só de aprendizagem" (Lima,2000:8)
o que requer muito mais do que mera renomeação, do que
nova divisão dos tempos letivos. Ainda segundo
Elvira, ciclo significa:
"uma
proposta de reestruturação da escola, que envolve,
de maneira fundamental, a gestão: o gerenciamento do
tempo, da utilização do espaço, dos instrumentos
culturais, da coletividade que se reúne em torno do espaço
escolar e , finalmente, da socialização do conhecimento."
Um fator
importante é ter claro que os ciclos são "dependentes"
do coletivo, sua implantação depende de forças
que trabalhem visando a globalidade da formação do homem
na Educação. Este coletivo precisa trabalhar o ciclo
sem dissociar seus "núcleos vertebradores"².
Pensar separadamente cada "fragmento" que compõe
o ciclo, ou seja compartimentalizá-lo, pode se tornar o fator
determinante para que sua implementação não obtenha
sucesso, porque é o mesmo que simplesmente "forçá-lo"
na direção oposta da sua concepção.
O crasso
erro que podemos incorrer ao pensar os ciclos é o de que apenas
a reestruturação dos tempos escolares basta para construir
uma escola diferenciada da estabelecida, chamada, por isso mesmo,
de tradicional. Os ciclos pressupõem a construção
de uma nova prática pedagógica, de uma nova visão
de currículo e avaliação, e, acredito antes de
tudo,de uma nova visão do sentido de EDUCAR. Os ciclos de formação
requerem uma avaliação diagnóstica, cotidiana,
coletiva que possibilite ao professor "verificar" (acompanhar
para poder intervir) o mais exato possível o ponto do processo
de aprendizagem em que se encontra seu aluno e, ao aluno, ir desenvolvendo
seu "processo de conhecer". Nesse aspecto, encontramos em
Vygotsky a sustentação teórica, seus conceitos
de "aprendizado, nível de desenvolvimento real e potencial
e zona de desenvolvimento proximal" nos auxiliam na análise
que fazemos de nossos alunos enquanto juntos construímos o
processo de ensino/aprendizagem.
Considerando que, em Vigotski, a Zona de Desenvolvimento Proximal
é a
"
distância entre o nível de desenvolvimento
real,que se costuma determinar através da solução
independente de problemas, e o nível de desenvolvimento
potencial, determinado através da solução
de problemas sob a orientação de um adulto ou
em colaboração com companheiros mais capazes."
(Vigotski,1998:112)
e que
"o "bom aprendizado" é aquele que se adianta
ao desenvolvimento" (idem:117), torna-se claro que a ação
pedagógica (que resulta num aprendizado diferente do espontâneo,
não só porque é sistematizada mas principalmente
porque "produz algo fundamentalmente novo no desenvolvimento
da criança" (Idem:110)) para ser eficaz tem que ser dirigida
para a Zona de Desenvolvimento Proximal e nela atuar.
A preocupação
com a aprendizagem no sistema de ciclos não deve ser sobre
o que o aluno já é capaz de fazer sozinho, sem ajuda,
afinal, seria ineficaz uma educação voltada para o que
já passou. Ao contrário, a preocupação
da educação no sistema de ciclos é, ou deveria
ser, "prospectiva" e valorizar o processo de aprendizagem/desenvolvimento
que está em formação.
O aprendizado
segue despertando no aluno diversas zonas de desenvolvimento, que,
ao serem "internalizadas", vão se constituindo no
desenvolvimento independente da criança, quando não
mais precisa de auxílio. Assim, aprendizado e desenvolvimento
não se dão de uma forma linear, primeiro um depois o
outro, apesar, de que para Vygotsky, o aprendizado deva anteceder-se
ao desenvolvimento, o processo de internalização desses
aprendizados se dá, como sugestão do autor, em espiral,
justamente por conta da complexidade e dinâmica que existe entre
aprendizado e desenvolvimento. A interferência do outro neste
processo é imprescindível para o desenvolvimento do
sujeito.
Uma das
questões a serem trabalhadas pela Zona de Desenvolvimento Proximal
é a "imitação" (que não é
em si perniciosa) e que é, sim, possibilitadora de aprendizagem.
Justo porque, diferentemente dos animais que ao imitarem não
passam disso, não conseguem elaborar soluções
para situações que já não tenham sido
treinadas, as crianças através da imitação
conseguem ultrapassar seus limites, recriar, conseqüentemente
desenvolver seu intelecto e contribuir para seu desenvolvimento global.
Ainda
segundo Vygotsky, é necessário respeitar os níveis
de desenvolvimento da criança, ou seja, não adianta
propor uma resolução de problema muito além de
seu desenvolvimento, estaria fora das possibilidades da criança.
Não é sensato pedir à criança para escrever
uma frase, quando ela não sabe ainda escrever seu próprio
nome. Ela poderá "falar" a frase para que outro a
escreva e nesse processo, o professor, trabalhará em cima da
Zona de Desenvolvimento Proximal apresentada pela criança.
Mas é imprescindível estimular, orientar, não
se contentar com o "já alcançado", investigar
emque momento do processo a criança está e ali agir.
Ao ouvir
uma professora surpreender-se por descobrir que a produção
escrita que ela acabara de escutar uma colega lendo era de uma aluna
dela, imaginei o que estava sendo priorizado por ela na relação
ensino-aprendizagem, qual interação existia que a fazia
perceber as impossibilidades dos alunos e cegar-se ante as possibilidades.
Se a preocupação dessa professora levasse em conta os
processos apresentados pela aluna, se as zonas de desenvolvimento
proximal fossem encaradas produtivamente, ou pelo menos encaradas,
a professora não se surpreenderia (não negativamente)
com as possibilidades demonstradas por sua aluna numa produção
extraclasse. Mas o olhar desta professora está sobre o quê
essa aluna conseguiu "demonstrar" do que aprendeu dos conteúdos
estabelecidos como fundamentais para o período em que estavam
e esse olhar é o que produz sua descrença no aluno.
Para ela, essa aluna já fracassara...
A perspectiva
de educação como processo não é a valorizada
pela professora, que exalta aqueles conhecimentos que os alunos sobrepõem
uns sobre os outros sem que realmente se apropriem de seus significados.
Os profissionais que têm essa concepção de Educação
e por acreditarem que os ciclos chegaram para "mascarar"
o insucesso dos alunos, grande parte das vezes, recaem no que nos
alerta Elvira Lima: "Equivocadamente,
a idéia de ciclo é, muitas vezes, associada à
aprovação automática e à ausência
de avaliação."
Os ciclos
de formação requerem uma visão "humanizadora"
do processo de ensinar/aprender. Para o ciclo de formação,
a aprendizagem enciclopédica não é o objetivo,
não é a razão de ser das instituições
de ensino, nele há uma reconceituação da escola
como espaço de formação global do indivíduo.
Ao contrário
do que possa transparecer, o ciclo de formação não
exclui da escola os conteúdos escolares, o que parece ser uma
certeza entre os professores e justificativa para rejeição,
justamente porque iria contra a própria proposta desconsiderar
a dimensão histórica social destes conteúdos.
A idéia é ressignificá-los, dotar-lhes de sentido
na vida dos alunos.
O gráfico
abaixo apresenta um exemplo de organização curricular,
demonstra como a escola Plural estrutura suas disciplinas curriculares
e como os temas da atualidade são transversos aos conteúdos:
Temas
Transversais
"A
Educação para a cidadania é o tema transversal
nuclear, que se insere em todas as disciplinas e impregna todos
os demais temas." (Belo Horizonte,1995)
Para
a proposta dos ciclos de formação da escola Plural,
os temas transversais se inserem como conteúdos curriculares
com a finalidade de "dotar de valor social" as disciplinas
trabalhadas, não são "temas atuais" aglutinados
nas disciplinas.
A escola
por ciclo de formação é organizada por idade,
no caso de Belo Horizonte temos
a seguinte ordenação :
1º
) ciclo da infância: 6,7,8/9 anos
2º) ciclo de pré-adolescência: 9,10,11/12
anos
3º) ciclo da adolescência: 12,13,14/15 anos
Essa
divisão por idade é justificada pela proposta como adequada
aos tempos de formação onde existe uma combinação
íntima de conteúdos culturais e de vivências de
formação intelectual, volitiva, artística, física,
politécnica." (ARROYO,1997:11-26
)
Os ciclos
de formação na proposta da escola Plural são
estruturados buscando a aprendizagem do aluno e não apenas
sua permanência na escola, neles a percepção de
promoção automática não é nem aceitável
porque não existe a possibilidade de retenção
ou promoção, mas sim uma concepção de
educação processual, onde a estruturação
priorizada é a divisão por idade. De acordo com o documento
da proposta da escola Plural, os ciclos foram criados para acompanhar
o desenvolvimento dos alunos e essa postura invalida a prática
de "empurrar para o ano seguinte" . A avaliação,
eixo central na percepção dos ciclos de formação,
deve abandonar a medição, a verificação
de conteúdos escolares mínimos e encarar o aluno em
seu tempo contínuo de desenvolvimento biológico e cultural.
Dessa forma a avaliação deixa de ser entendida com "um"
instrumento para fins de aprovação ou reprovação,
passando a ser um elemento facilitador ou possibilitador de aprendizagem
do aluno na medida em que deixa de ser pontual e passa a ser contínua
permitindo ao professor recolher indícios sobre o desenvolvimento
do aluno, habilitando-o a intervir no processo.
O acompanhamento
do desenvolvimento do aluno não apenas pelo professor regente,
mas por todos que junto com ele compõem o ciclo, garante ao
aluno a continuidade no desenvolvimento do seu processo de aprendizagem.
Esta é a plasticidade verificada no sistema de ciclo e quando
verdadeiramente praticada é o que o possibilita! A observação
de cada aluno pelo coletivo de professores é um dos fatores
que torna possível que este aluno caminhe em seu desenvolvimento
bio-sócio-cultural sem que seja necessário pular etapas
ou estacionar em algum ponto do processo educacional já que
este fica atrelado incondicionalmente ao desenvolvimento global do
educando.
Os ciclos
de aprendizagem encontram na referência aos conteúdos
a diferença de proposta com os ciclos de formação.
Para Perrenoud (2000), "Um
ciclo de aprendizagem é associado a um conjunto de objetivos
a serem alcançados em vários anos."
Minha
pesquisa indica que, no cotidiano escolar, freqüentemente estes
objetivos acabam sendo traduzidos em listagem de conteúdos,
de competências que devem ser atingidas ao final do período
recortado como ciclo. A divisão por idade também ocorre
nessa modalidade de ciclo, mas fica subordinada aos conteúdos/competências
fixados previamente. O caráter processual que engendra o ciclo
de aprendizagem subordina-se não ao processo do aluno, mas
ao processo de apreensão de conteúdo. Ao contrário
do ciclo de formação que vê no conteúdo
um caminho para um fim outro que é a formação
do sujeito em todos os tempos de sua vida, o ciclo de aprendizagem
prevê o conteúdo com objetivo final. Este fato permite
uma leitura do que seja ciclo, bem distanciada da possibilidade de
entendimento do que seja um ciclo dividido por idade. Ocorre que,
como o priorizado é o conteúdo, recaímos na existência
da retenção ou promoção. Neste ciclo a
preocupação, assim como no ciclo de formação,
também é com a aprendizagem, mas se ao final do ciclo
o aluno não demonstrou ter "aprendido" os objetivos
estabelecidos, qual a saída senão a retenção?
Esta
característica dos ciclos de aprendizagem proporciona um retorno
disfarçado ao regime seriado, já que com os "ciclos"
organizados sobre a possibilidade de promoção ou retenção
dos alunos ao final de cada etapa (que pode ter um período
de 2 ou 3 anos), numa clara tentativa de suprir a "necessidade"
de reter o aluno que não atingiu o objetivo estipulado para
o fim do ciclo, mantém-se uma distribuição fragmentada
dos saberes que, conseqüentemente, estão distanciados
do cotidiano dos alunos. Transformar as competências em listagem
de conteúdos é ignorar que estas, mesmo quando referentes
a objetivos a serem atingidos, o fazem dentro de uma nova relação
escolar (Perrenoud, 2001),
onde o conteúdo é valorizado por sua condição
de pertencimento na vida do aluno e utilizado de forma a propiciar
ao indivíduo que os recursos intelectuais adquiridos possam
ser mobilizados .
"A competência não reside nos recursos ( conhecimentos,
capacidades...)a serem mobilizados, mas na própria mobilização
desses recursos. A competência pertence à ordem
do "saber mobilizar". Para haver competência,
é preciso que esteja em jogo um repertório de
recursos (conhecimentos, capacidades cognitivas, capacidades
relacionais...)."(Le
boterf apud Perrenoud, 2001:21)
A relação
série/ciclo, bastante presente, como vimos, nos debates na
rede municipal de Niterói, não me parece uma questão
isolada, desconectada do contexto mais amplo em que a estruturação
da organização escolar vem ocorrendo. Parece-me relevante
trazer para o estudo o encaminhamento que vem sendo dado a esse processo
pelo Ministro da Educação, traduzindo a implementação
de uma determinada política educacional em nível nacional.O
Ministério da Educação desenvolveu para a Educação
um documento que visa a integração do gigantesco sistema
de ensino existente no país e através dele recomendou
linhas e pensamentos educacionais, uma das sugestões dos Parâmetros
Curriculares Nacionais.
"Os Parâmetros Curriculares Nacionais adotam a
proposta de estruturação por ciclos, pelo reconhecimento
de que tal proposta permite compensar a pressão do
tempo que é inerente à instituição
escolar, tornando possível distribuir os conteúdos
de forma mais adequada à natureza do processo de aprendizagem."
(Parâmetros Curriculares
Nacionais-p.59)
A leitura
que me é possível fazer da postura apresentada nos Parâmetros
Curriculares Nacionais na questão referente aos ciclos é
aquela na qual a priorização da Educação
está na sua capacidade de "escolarizar" os alunos.
Quando o referencial nos fala de uma "estruturação
por ciclos", fica-me a impressão de que tão somente
o "tempo" referente ao "ano letivo" foi ampliado
de forma que os conteúdos encontrem os espaços que acabaram
por lhes serem negados no processo de estruturação (destes
conteúdos) por série, ou seja, é como se distribuíssem
o chamado"fracasso" do aluno e da escola por séries
com períodos de tempo dilatados. O que pode impedir a real
supressão das séries.
No momento
atual, podemos perceber que os objetivos desta Nova Educação
perpassa os Parâmetro Curriculares Nacionais em várias
de suas recomendações, o que já virou jargão
educacional, " educar para a cidadania" é orientação
geral deste documento e seu discurso se afina com o princípio
dos ciclos. Porém não podemos reduzir os ciclos à
função eminentemente política, a saber, índices
de escolaridade, que subtrai da proposta a revolução
educacional que é a verdadeira responsável pelo novo
pensar o "aprender".
Não
é suficiente, como parece querer nos fazer aceitar os PCN's
, a simples reorganização dos conteúdos ou mesmo
a adoção de um "sistema de avaliação"
que evite "que a aprendizagem tenha obstáculos inúteis,
desnecessários e nocivos" (PCN-volI-p61)
pelo período que for estabelecido aos ciclos para que se concretize
a filosofia desta nova proposta de Educação. A idéia
de ciclos nos remete ao desenvolvimento do aprendiz num determinado
espaço de tempo, e não ao dispor de "conteúdos"
estabelecidos "genericamente" por este período!
Um dado,
no mínimo, interessante é o de o conteúdo dos
PCN's estar aparentemente "socializado" pelos professores
da rede mesmo que apenas uma minoria deles tenha tido em mãos
algum dos volumes do referido documento.
Em dezembro
de 2002, realizamos uma pesquisa (Anexo VIII)
para buscar perceber como estava se dando a apropriação
dos PCN's pelas professoras, 42 questionários foram respondidos.
Exatamente a metade, 21 professoras, atestaram que:
-
Tinham conhecimento dos PCN's, mas que não eram lidos.
- Apesar de não os lerem, os PCN's orientam o trabalho
pedagógico das escolas na medida em elas sabem que as
propostas (que chegam prontas) a elas trazem as tendências
impressas nos PCN's.
Pelas respostas dadas, fica claro que a utilização dos
PCN's nas escolas se dá de forma utilitarista (quando julga
necessário, o professor diz: - conforme os PCN's....) e distante
do processo de reflexão do professor.
Esta
constatação me leva a crer que, infelizmente, o professor
ainda parece se manter alheio ao processo de reflexão,
aceitando sem muitos questionamentos às receitas prontas que
lhes entregam. Como queremos que nossos alunos construam conhecimentos,
como está posto no atual discurso sobre Educação,
se nós nos contentamos em receber o conhecimento pronto?
A formação
de sujeitos mais reflexivos é de fundamental relevância
para que propostas oficiais, como os PCN's, não se transformem
em receituários cerceando, assim, as possibilidades de ação
dos profissionais da educação.
Na escola pesquisada, uma das reuniões de planejamento no início
de 2002 foi sobre "competências", o que são,
o que trabalhar e nessa reflexão podemos perceber algumas contradições
importantes. Os profissionais foram divididos em dois grupos e cada
um apresentou sua reflexão, que tiveram como referência
teórica recortes de textos do Perrenoud sobre competência.
O grupo
que ficou com a reflexão sobre as competências para o
1º ciclo retornou com o que denominou de "objetivo geral"
:
- Respeito
à realidade do aluno; valorização da produção
de textos; formação pessoal e social através
da construção da identidade e autonomia; educação
pelo movimento; conhecimento das artes; natureza física,
biológica e social; conhecimento matemático baseado
num ensino contextualizado.
O grupo concluiu que os objetivos acima deveriam ser alcançados
com o ensino guiado pelo programa apresentado na proposta político
pedagógica da rede e que era preciso "somar" as competências
do 1º ciclo às competências da educação
Infantil.
O grupo
responsável pelo 2º ciclo definiu competência como
ser capaz de reunir recursos, saberes, capacidades, informações,
etc. que possibilitem o indivíduo a solucionar os problemas
de ordem prática, cotidiana. Sendo assim, é necessário
ter como eixos:
-
Motivar o aluno a ter vontade de aprender; desenvolver o
raciocínio (fazer pensar); propiciar o domínio
da leitura, da escrita e das diversas linguagens; dar mais
significação aos conteúdos (contextualizar);
despertar o pensamento crítico como cidadão.
O grupo concluiu como pontos principais: integrar os conteúdos;
encontro entre professores para troca de experiências e trabalhar
os conteúdos seqüencialmente nos ciclos.
Podemos
perceber que mesmo com algumas diferenças internas nos grupos,
os dois apresentaram definições próximas do que
seriam as competências a serem trabalhadas: desenvolver cidadania,
domínio das linguagens, valorização da produção
dos alunos,etc. Agora, quanto ao que concluíram foram idênticos
: somar as competências de uma etapa a outra observando um seqüência
definida de objetivos.
As observações
e a conclusão a que os grupos chegaram e algumas outras colocações
individuais na escola me fazem crer que para a maioria dos profissionais
a centralidade, a importância do ensino está naquilo
que o aluno apreende do conteúdo. Determinados pensamentos
viram "slogans" educacionais, como : "desenvolver o
raciocínio ", mas na verdade mantém alta a bandeira
dos conteúdos como verdadeiros responsáveis por "desenvolver
o raciocínio".
Numa
espécie de desabafo, algumas professoras reunidas em um horário
de recreio fizeram colocações que explicitam ainda mais
essa indefinição quanto ao ensino apresentada acima:
Professora
A - "Nós não sabemos trabalhar em ciclos.
E não tem ninguém que nos ensine!"
Professora
A - "A gente senta para tentar definir isso (os ciclos),
mas toda vez que a gente senta e discute acaba saindo série!"
Professora
B - "Eu acho que tem que agrupar sim pelo que a criança
sabe! Sabe letra? Fica aqui! Sabe frase? Fica ali!"
Professora
A -"Eu acho que o ciclo é isso: trabalhar a partir
do que a criança sabe!"
Fica
nítido que apesar de certo incômodo, a concepção
seriada ainda prevalece no imaginário das professoras, a tal
ponto que se torna muito difícil conceber o ensino de outra
forma que não a rigorosamente seriada.
NOTAS:
¹.
O 1º ciclo do ensino no plano francês inicia-se aos
3 anos, mas só é obrigatório a partir dos 6 anos.
(Conséquences de ces príncipes - Plan Langevin-Wallon)
².
A escola Plural ( Belo Horizonte), ao alterar a organização
do trabalho na escola, articula quatro "núcleos vertebradores"
que são : Eixos norteadores da escola; Organização
dos tempos escolares; Conteúdos e processos; Avaliação.(
Dalben,2000)
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