A VERDADEIRA HISTÓRIA DE UMA CINDERELA
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“Fundadora e Presidente da Oficina Profissionalizante Clube de Mães do Brasil. Nascida em São José do Basílio, interior do Maranhão. 45 anos, professora, casada, Mãe.” Fui uma menina bem criada, de família até tradicional na região. Meu pai era fazendeiro, sou a quarta filha de seis irmãos.Estudei em colégio de freiras e fiz o magistério em São Luiz tive uma criação rígida. Meu pai era o típico pai nordestino, aquela figura que dá tudo o que você precisa sem muito papo. A nossa relação era bem formal: eu pedia a benção, dava boa noite e se desobedecesse alguma ordem dele apanhava. No Maranhão na década de 70, casar e dar aulas era o Maximo que eu poderia desejar. Com 21 anos, minha família já estava preparando um casamento “forçado” para mim. Nordestinos são machistas, acham que mulher e para cuidar de casa e ter filhos. Eu pretendia ser algo mais Queria uma aventura na vida. Eu tinha contato por telefone com a Francinete. Uma prima que morava em São Paulo. Ela era casada com um médico e sempre falava para eu ir para lá. Resolvi aceitar o convite, contei para minha mãe, fiz as malas e fui embora contra a vontade dela e escondida do meu pai. Fui muito bem recebida pela minha prima. Cheguei em junho de 73, época friorenta. Tinha preguiça e até medo de sair. Depois de duas semanas, sem mais nem menos, o marido dela me disse: Sinto muito, mas você não pode ficar aqui. Eu me case com sua prima, não com sua família. Hoje recebo você, amanhã será outra. Não sei se eles acharam que eu ia voltar para o Maranhão, só sei que me puseram para fora.Fui para um posto de gasolina e fiquei o dia todo sentada, pensando no que fazer, pensei em voltar para casa, mas, voltar do jeito que eu vim? O que meus pais iriam dizer? Não queria dar o braço a torcer. O frentista falou que eu não poderia dormir ali e me indicou uma pensão. Tinha duas malas e dinheiro que só dava para pagar o pensionato por mais um mês. Fui dormir nu triliche! Eu era a última da cama. Chorava a noite toda com medo de despencar de lá. Descobri dias depois que aquela casa era um prostíbulo. A proprietária cafetinava as meninas, muitas vidas do norte. Eu via homens entrando e saindo. Chegaram a me chamar para sair com os clientes. Eu disse que não me sentiria bem, mas, se não tivesse berço, talvez caísse numa esquina dessas da vida. Eu tinha 21 anos, era bobinha, calçava sapatinho de veludo com meinha de crochê para ir a matinê. Não sabia trabalhar em escritório, nem como doméstica. Tinha o diploma de magistério, mas quem vem do norte não arruma nada. Passei um mês e dez dias desconsolada, não arrumava emprego, subia no triliche chorava. Quando o dinheiro acabou dei um relógio de ouro para a dona da pensão para ficar mais dez dias. Um dia ela foi até o quarto e falou: Eulina, você não quer seguir a vida da casa não tem dinheiro, não pode mais ficar aqui. Eu não tinha outro caminho se não a rua. Fui para antiga rodoviária na estação da luz. Na minha cabeça era o único lugar em que qualquer pessoa poderia ficar segura, por que o fluxo de gente é grande. Dormia ns bancos e de dia, saia procurando emprego, lá a restaurantes pedir para lavar pratos ou servir mesas, mas ninguém deixava. Uma noite roubaram minhas malas e eu fiquei só com uma colcha e a roupa do corpo. Na rodoviária eu não tinha como tomar banho. Só podia usar a privada e lavar o rosto na torneira. Ajeitava o cabelo e saia procurando trabalho. Fiz amizade com um senhor que era faxineiro. Todo o dia de manhã ele me trazia pão com mortadela, as vezes só com manteiga. A certa altura, ninguém acreditava em mim, eu olhava para os lados sem expectativas. Perdi o referencial. Quando você não tem um teto, sem endereço, você não existe. Onde tomar banho? Onde se olhar no espelho? Fiquei uns dois meses por ali. Até que um segurança me mandou embora. Fui para um banco de praça no Parque Dom Pedro. Na primeira noite me apavorei: me escondi atrás de um coqueiro enrolada numa colcha. Na rua você não dorme. Fica em estado de alerta; não sabe se alguém vai te tocar, te estrupar ou te matar. |
Eu tinha medo.As pessoas da rua eram andarilhos e não se comunicavam. Eu dormia de dia e a noite andava sem parar.Ao amanhecer, voltava para a praça, forrava a grama com papelão e dormia. Quando estava frio me embrulhava com jornais, passei a me alimentar dos restos de lixo de um hotel. Eram pedaços de pão, azeitonas, sobras de sanduíche misturadas com tudo – papel higiênico, casca de banana.Eu fazia uma seleção, tirava os pedaços de pão com recheio, ia até a rodoviária molhava tudo na torneira para tirar o cheiro e comia. Descobri num outro hotel um lixo mais rico, com pão italiano. Para mim era novidade porque no Maranhão não tinha. Até hoje sou apaixonada por pão italiano. No mercado central eu pegava frutas. Água eu bebia nas torneiras públicas E nos postos de gasolina. Nunca pedi nada. Ate sair de casa dos meus pais eu tinha tudo a idéia de pedir me parecia estranha. Suja maltrapilha eu não tinha mais chance nem esperança de arranjar emprego. Comecei a perder a noção de tempo, de tudo. Na rua você entra em estado de letargia, fica sonolenta quer mais que o mundo acabe e que você vá junto.E não pode nem se dar ao luxo de ficar deprimida, é tudo dos outros. Onde você encosta houve “sai daqui”. No começo passava pela minha cabeça ligar para os meus pais. Só depois soube que eles ligaram para minha prima e ela não fazia idéia de onde eu estava. Eu chorava muito. Voltar como para a casa dos meus pais? A Pé? Não tinha mais dinheiro. Sobraram apenas meus documentos. Com medo de perdê-los, enrolei-os num saquinho e enterrei debaixo de uma palmeira da praça onde morava. Sentia-me um fracasso. Eu queria esquecer o rosto das pessoas da minha família. Tentava tirar aquilo da mente, esquecer que um dia tive uma mesa farta, um pai que me colocava de castigo, amigas. Pensamentos negativos começaram a tomar conta de mim e entrei num mundo só meu. Acredito que isso aconteça com gente que esta nas ruas há muito tempo. Você deixa de interagir com o mundo, não sabe mais distinguir muito bem fantasia da realidade. Dá para enlouquecer. Tem gente que me olha e diz “não acredito que essa mulher morou na rua. Morei” fiquei suja, piolhenta, fedida. Tive caroços no corpo por causa das impurezas que comia e por falta de banho. Só havia o banheiro da rodoviária que era pago. Nessa situação. Só resta esperar a chuva ou se molhar numa torneira. Para fazer as necessidades colocava um papelão atrás de uma arvore. Quando menstruava me forrava com jornais. Eu fedia. Descobri uma coisa triste; mendigo não tem direito de tomar ônibus, mesmo pagando a passagem. Uma vez eu entrei em um ônibus, o motorista parou e fez o cobrador me empurrar da escada. Cai. O ônibus estava cheio e não encontrei ninguém que me desse a mão. Senti-me um cachorro magro-vira-lata. Em quase dois anos na rua apenas uma pessoa me olhou como ser humano e perguntou se eu precisava de alguma coisa. Eu estava embaixo de um viaduto chorando, parou um senhor bem-vestido perguntou se eu sentia fome. Respondi que sim. Ele me mandou esperar e voltou com algumas moedas e um marmitex de alumínio. Dentro tinha uma lasanha, um pedaço de bife a milanesa com ervilha por cima e outro pratinho com pudim.Só que eu já não conseguia me alimentar. Meu estômago só comportava pão, coisas liquidas. Eu mastigava, mas não descia. Sentia dores na garganta até para comer maçã. Comi o que deu da lasanha, no bife nem mexi. Nesse tempo todo fiquei muito deprimida. Só queria dormir, esquecer quem eu era. Mas nunca parei de sonhar sabia que não havia nascido para viver daquela maneira. Achava que aquilo era um teste uma espécie de preparação. Planejava a mudança na minha vida, me imaginava numa casa bonita, com marido, filhos. Um dia eu estava sentada no meu banco de praça e o fusca de uma moça quebrou bem na frente. Era uma moça magra, loira, toda bonitinha. Começou a chutar e a xingar. Alguma coisa me dizia: É tua chance. Queria atrair a atenção dela para mim. Ela ia e vinha, muito nervosa. Eu me perguntava será que ela não senta aqui porque está com medo de mim?. Eu devia estar muito feia, o cabelo cheio de nós uma hora ela olhou na minha direção e eu comentei:
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Pôxa,
você está xingando por tão pouco! Imagine se estivesse no meu lugar, ela
perguntou por quê? Porque um dia eu fui tão bonita como você, ela sentou
ao meu lado e ficamos conversando até o mecânico chegar. Eu disse que era
do Maranhão, ela falou que se chamava Vânia e que era de Pernambuco. Quis
saber porque eu estava ali. Contei. Em poucas palavras. Ela me perguntou
se eu roubava. Eu disse que não. Vânia falou que estava precisando de uma
empregada e me convidou para morar na casa dela. Quando entrei no
carro ela disse que ia me levar para cortar o cabelo. Parou no largo do
Arouche e voltou com uma moça com uma tesoura na mão. Mas a moça falou que
precisava raspar. Vânia era secretária da diretoria da vigor e dividia o
apartamento com a irmã mais velha e uma amiga. Chegando lá as meninas não
estavam. Ela me levou para o banheiro me deu sabonete, toalha, calcinha,
roupa, tudo. Fiquei mais de uma hora naquele chuveiro. A sujeira pesa. É
como se eu estivesse carregando o mundo nas costas e de repente a água
levasse tudo embora. Sai do banho direto para o quarto, não quis me olhar
no espelho. Há muito não me via – quando passava na frente de vidros
virava a cara. Lembro-me bem da cama com lençóis limpos. Eu só queria
deitar ali me espreguiçar, sentir o cheiro de um lençol não acreditava que
tinha quatro paredes me protegendo, que não ia ouvir barulho de trovão e
ter medo de chuva. Acho que dormi três dias seguidos. Quando acordei
estavam as três na porta do quarto. Cheguei na casa de Vânia com 32
quilos. Para quem pesava 50; mas não estava doente a pessoa de rua é
magra, mas saudável fica exposta a sol, chuva, vento, cria uma resistência
fora do comum. As meninas me deram tudo o que eu precisava – carinho. Eu
limpava a casa, lavava, passava. Não queria nem que me pagassem. Dormia no
quarto de empregada, mas toda noite elas me buscavam para ver TV na sala.
A gente conversava bastante. Eu sempre gostei de ler, discutia qualquer
assunto. Na rua eu lia revistas e jornais que usava para me embrulhar.
Depois de quatro meses. Vânia disse que não queria que eu continuasse como
empregada. Eu já havia engordado meu cabelo tinha crescido um pouco. Ela
me levou até a vigor e falou com o chefe do departamento pessoal para me
arrumar um emprego. Fui para a recepção atender telefones e anotar
recados.Vânia era secretária do diretor administrativo, que trabalhava
junto com o Sr. Alex, diretor superintendente. Avisaram-me que era o homem
Mais bravo da empresa. Alex era imponente, Alemão, olhos claro, bonito.
Uma vez deu uma carona para Vânia fui no banco de trás, quieta. Tratava-o
por Sr. Alex. Nunca imaginei que ele se tornaria meu marido. Conversamos
um pouco na festa de fim de ano da empresa. Eu brinquei que queria ser
artista, ele disse que poderia me fotografar. Na semana de natal, Vânia
foi visitar parentes no Rio e eu tive que trabalhar.Alex apareceu e me
convidou para almoçar. Imagine eu, almoçando com o diretor!Passamos o dia
junto. Fomos ao Simba Safári, ao Zoológico, ao Cinema. Ele tirou muitas
fotos minhas. Eu adorava ser fotografada. Já havia recuperado minha
vaidade, gostava de me arrumar, de me olhar no espelho. A partir daí
passamos a nos ver de uma forma diferente. Almoçamos e jantamos outras
vezes, começamos a namorar. Nossa diferença de idade era grande – eu tinha
23 anos e ele 56 – mas acho que isso até contribuiu para eu me apaixonar.
Eu era um bichinho assustado estava mesmo querendo o colo de um pai. Não
contei nada para ninguém que estávamos namorando, mas Vânia acabou
descobrindo e foi uma briga. Toda a bondade que ela havia me dispensado
virou ao contrario.
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