Se alguma virtude este libelo apresenta – chamem-lhe outro nome se não gostarem deste – é o título com que o Zé o baptizou. “Com Tradição e Contradição” resume e interpreta fielmente uma faceta da sociedade portuguesa deste novo milénio, em particular no que respeita ao seu sistema educativo.

Como nota prévia a este escrito, esclarecem-se alguns pressupostos a ter em consideração na sua leitura. As opiniões nele expressas apenas vinculam, como é óbvio, o seu autor que, apesar de não possuir nem a eloquência nem a arte dos que neste folheto vão escrevendo, como cidadão português no exercício da sua cidadania a elas tem direito. A reflexão que se segue não pode ser dissociada dos valores, opções políticas, carácter ou personalidade de quem a resolveu exprimir. Poderá, para alguns, conter aspectos polémicos. Se assim for o autor apenas estará a dar resposta a uma das pretensões deste libelo. Poderá também transparecer uma visão demasiado pessimista do actual estado educativo. Não se pretende neste artigo efectuar tal juízo de valor. Apenas se analisam algumas situações que o autor julga encaixarem com precisão no título deste folheto. Pede-se desde já desculpa aos que, distinguindo-se na sua acção individual, são aqui englobados na generalidade a que o escrito atende.

Como os bons exemplos são para seguir convém fazer como o Zé (agora o de Filosofia) e, antes de começar, ir ao dicionário ver o que significa essa palavra mágica dos nossos dias:

CONTRADIÇÃO, s. f. acção ou efeito de contradizer ou contradizer-se; afirmação em contrário do que se disse; incoerência entre actos ou ditos sucessivos; oposição de opiniões, sentimentos, ideias ou palavras; objecção; espírito de contradição: espírito da pessoa que sistematicamente contradiz os outros; princípio de contradição: (lóg.) uma proposição não pode ter simultaneamente o valor lógico verdade e o valor lógico falsidade; sem contradição: incontestavelmente. (Do lat. Contradictione-, «objecção; réplica»).

Dicionário da Língua Portuguesa, 7ª Edição, Porto Editora.

Não se consegue resistir à tentação de, em algumas linhas, ironizar sobre alguns dos vários significados desta palavra. Quanto ao espírito (de contradição) uma personificação quase perfeita é o amigo Zé (agora o Silva). No que respeita ao princípio lógico-matemático (da não contradição) encontra-se no actual Governo um bom conjunto de contra-exemplos. Os amigos de hoje serão inimigos amanhã. As leis, antes de o serem, estarão sempre sujeitas a alteração se não agradarem a determinado grupo de pressão e, por isso, será previamente testado na comunicação social o seu grau de aceitação. Enfim, mesmo uma lei nunca será uma certeza. A política governativa, na globalidade, ignora por completo este princípio e contraria novamente a lógica quando, sistematicamente, esquece o axioma do 3º excluído. Para o Governo, a decisão entre o sim e o não é uma tarefa complicada, pelo que na maioria das vezes introduz a terceira hipótese: o “nim”. Para finalizar este interlúdio de ironia falta referir o sem (contradição). Todos sabem que se existe algo que não se discute é o prescrito pelas circulares da Direcção Geral da Administração Educativa.

Pedindo perdão pelo intervalo de divagação, focaliza-se agora a atenção nas presenças e permanências da contradição no sistema educativo. Na realidade, é fácil encontrar nele situações de incoerência. A primeira envolve a própria filosofia do sistema que se baseia na ideia de uma educação para o sucesso. Todos de acordo neste ponto. O problema reside no facto de ser necessário conciliar este sucesso com a escola que temos, a escola de massas. É aqui que surge a contradição. O sucesso deixa de ser garantido pela qualidade para se sujeitar à quantidade, isto é, apenas tem como parâmetro indicador o índice percentual que é necessário ultrapassar para que se possa dizer que foi atingido o nível exigido como país da União Europeia. Compreende-se assim o actual estado da avaliação no Ensino Básico (segundo e terceiro ciclos em especial) que, infelizmente, tende a alastrar aos primeiros anos do Ensino Secundário.

Os que ainda acreditam na tradição vêem também como contradição os novos modelos que este ensino de sucesso começa a despoletar.  Espera-se que a criança, à velha pergunta da profissão desejada, não passe a responder: “Quando for grande quero ser como o Zé Maria” (agora o do “Big Brother”).

 

No rol de contradições surge também o professorado. Como é possível que uma classe com tanta importância na estrutura de um país, em todas as suas vertentes, não consiga relevância ou a concretização das suas aspirações? Como se compreende que não assuma papel primordial nas decisão que, constantemente, a afectam no desempenho diário dos seus profissionais?

Trata-se de uma classe numerosa, parece que propositadamente desunida, sem objectivos comuns e, socialmente, com um nível de influência e ambição baixo. Os seus membros pouco fazem para abolir a discrepância entre o valor médio do seu salário e o índice remuneratório de um profissional, com idênticas habilitações literárias, de outro sector de actividade. Aceita também com letargia as decisões superiores que sabe contribuírem para a sua insatisfação diária no exercício da docência. Tem a percepção que, a cada ano que passa, exige menos saber dos alunos e avalia segundo parâmetros menos exigentes. Seguindo à risca as indicações que lhe são dadas, na procura do sucesso, utiliza cada vez mais nessa avaliação as recém inventadas competências, a maior parte delas exteriores à disciplina que lecciona.

Perante tudo isto não discute, não age, não se faz notar na sociedade civil, não exige dos grupos que a representam cumprimento das obrigações que lhes foram investidas. Não, apenas se limita a, rotineiramente, cumprir.

Finaliza-se com o novo sinónimo de contradição: autonomia.

Aquilo que se julgava ser o momento da concretização de uma aspiração há muito desejada – a escola conseguir gerir os seus recursos (humanos e materiais) de acordo com a sua realidade própria e o meio envolvente – rapidamente se transformou num pesadelo. A capacidade financeira da escola ficou reduzida e é desadequada para o modelo de gestão criado. A participação nos órgãos de gestão dos membros exteriores à escola não foi conseguida. A tentativa, dita democrática e de promoção de cidadania, de participação dos alunos na Assembleia e no Conselho Pedagógico, para além de não conseguida, demonstra o quão afastados estão da escola os teóricos que fazem as leis. A ideia de gestão tripartida ainda está por avaliar mas são visíveis já alguns problemas. A Assembleia tem  dificuldade  em  estabelecer  o seu  normal  funcionamento,  porque  não

 

consegue eleger alguns dos seus membros, ou porque nada os obriga a comparecer às sessões. A comunidade escolar manifesta algumas dificuldades em distinguir as competências de cada um dos órgãos. As Direcções Regionais são quem menos está preparado para auxiliar as escolas neste debutar da autonomia (só é contradição para os mais desatentos!). Alguns órgãos manifestam extremo receio em assumir posições que, apesar do seu carácter puramente autonómico, podem colocar em causa modos de actuar superiormente instituídos.

Mas a maior contradição da autonomia é o facto de só alguns organismos a considerarem. Com o recente exemplo dos horários zero e das inspecções administrativas ficou notório que aquilo que alguns definem em Decreto-Lei é completa e propositadamente ignorado por directivas e actuações de outros. Surgem verdadeiros atropelos a algum bom senso de gestão autonómica com base no argumento do pretenso rigor da gestão económico-financeira. Seria interessante averiguar quanto dinheiro o Ministério da Educação poupará aos contribuintes este ano com esta imposição dos horários zero. Depois de conhecer esse montante mais interessante seria fazer a sua comparação com os défices orçamentais das empresas públicas, com as derrapagens orçamentais resultantes da construção do Centro Cultural de Belém, da EXPO 98, do EURO 2004, do metro do Porto, do Porto 2001, com os buracos da saúde, com o valor das contribuições obrigatórias que se consegue não pagar com a criação das fundações do próprio estado, com o que se gasta em ordenados, prémios e incentivos a gestores públicos. Talvez o resultado dessa comparação fosse mais uma contradição: a educação deixou de ser paixão!

João Vieira Gomes, Professor da Escola Secundária do Cerco, Janeiro de 2001


Voltar à página principal