O PODER DEMOCRÁTICO

- A magistratura sem olhos vendados -

 

André Alexandre Happke

Bacharel em Direito pela Universidade Regional de Blumenau (SC)

Assessor no Tribunal de Justiça de Santa Catarina

 

Os ares da democracia pareciam estar se aproximando na década de 80, como uma dessas massas de ar que os meteorologistas apontam no mapa todo dia. Contudo, assim como eles não conseguem, muitas vezes, dizer precisamente se choverá hoje ou amanhã, aqueles sopros democráticos parecem não ser tudo aquilo que se queria ou que a mídia noticia se estar vivendo hoje. Mas há uma esperança, um Poder efetivamente democrático que está atuando.

No tangente à “redemocratização” do país, as eleições diretas, majoritárias e proporcionais, para os diversos mandatos públicos de direção do Estado passaram a maquilar uma pseudo-democracia representativa. Afinal, sem sombra de dúvida, está-se percebendo que os eleitos – salvo as honrosas exceções de sempre – agem como lhes tivessem dado um cheque em branco e a fundo perdido. Desvinculam-se completamente do que o eleitor foi levado a pensar quando marcou o “x”, preencheu a “bolinha” ou digitou o número em uma urna eletrônica.

 Talvez por não ser esse o meio de escolha dos magistrados, que também exercem uma parcela da soberania na direção do Estado, algumas vozes se levantam para criticar suas escolhas independentes, os rumos de suas decisões, remetendo à sua forma “anti-democrática” de escolha.

Não obstante ser esta uma opinião tão difundida, pelos leigos no direito, quanto inverídica, o fato é que a magistratura nacional – que também tem exceções, desonrosas – tem se mostrado o mais democrático dos poderes.

Com efeito, em importante pesquisa científica que pouco se divulgou, publicada na obra Corpo e Alma da Magistratura Brasileira, registrou-se: “Observa-se que o magistrado não provém de famílias com cultura de elite sedimentada e com situação de status estabilizada, perfil, de resto, bastante compatível com as exigências atuais de democratização do Poder Judiciário.” (Luiz Werneck Viana, Maria Alice Rezende de Carvalho, Manoel Palácios Cunha Mel e Marcelo Baumann Burgos. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 1997. p.112)

Enquanto isso, os mandatos eletivos são preenchidos por indivíduos que precisam ser vultuosamente financiados em caras campanhas que mostram, nas mais das vezes, a embalagem do produto, já que o conteúdo, como se sabe, será uma surpresa. Só depois de iniciada a refeição que se percebe que o prato eleito é aquele que tirou seu nome da lista de assinaturas para ser investigada corrupção, ou aquele que coagiu moralmente uma subordinada a revelar dados que deveriam ser secretos, para deles se utilizar para auto-promoção e chantagem. Mas aí já é tarde, só resta purgar a má-digestão, afinal, basta renunciar e ter uma boa campanha com um gordo orçamento na próxima vez.

De seu turno, o magistrado, que foi minuciosamente investigado durante o concurso público (onde ainda se paga taxa de inscrição, mas são isentados os que comprovem a impossibilidade de a custear, além dos doadores de sangue), estudou, enfrentou muitas vezes seis, sete, oito fases de avaliações culturais, técnicas, de saúde psicológica e psiquiátrica, além de meses (até mais de ano) de provas exaustivas, e que passando, não deve favor a ninguém. Tal decorre de um dos basilares princípios da democracia, que é o de um Poder Judiciário composto de juízes independentes.

Muito embora pudesse então achar que tem um “mandato-cheque-em-branco”, prossegue seu trabalho diretamente em ligação com a sociedade, com o povo, que lhe deu o estudo e lhe dá a vivência, para compreender os anseios sociais.

Ouve o casal que está se separando e percebe que o fator econômico desagregou aquela família, o empregado demitido que noticia que a empresa precisa economizar energia elétrica, ou já está quebrada, e o mandou embora, o empresário que não consegue quitar seus débitos devido à voracidade do sistema financeiro.

Esse juiz, que vive no seio da sociedade que tem direitos doentes, cada vez mais próximo do povo, agora não apenas em fóruns, mas também em “Casas da Cidadania” (brevemente presentes em cada município ou bairro populoso de Santa Catarina), que mora no município onde atua (por disposição constitucional, art. 93, inc. VII, 1988), está sim democraticamente investido no poder de conhecer o desejo da sociedade, bastando que se dedique a observar à sua volta. Nem tanto esforço é preciso, já que as audiências são diárias e o contato com o povo é direto. Ausculta-se das mais variadas maneiras a voz da coletividade.

Para que tal seja alcançado, no processo de seleção de juízes, seguem os tribunais a lição de Dalmo de Abreu Dallari, ao exigir que “a par de seus conhecimentos jurídicos” sejam buscados os que “demonstrem ter consciência de que os casos submetidos a sua decisão implicam interesses de seres humanos” (O Poder dos Juízes. São Paulo: Saraiva, 1996, p.26).

Mas não é só o procedimento seletivo que garante e a atuação diária direta que fomenta a instrução dos juízes na sapiência da vontade social. Constante aperfeiçoamento lhes é exigido, muitas vezes como condição para ascensão na carreira. Em nosso Estado, hoje, mais de 10% dos juízes estão cursando mestrado, sem mencionar os tantos que já têm os títulos de especialista, mestre e doutor (quando não mais de um). No mesmo norte, congressos, seminários, conclaves científicos se sucedem no tempo. Neles, os magistrados fundem-se a Advogados, Procuradores de entidades estatais dos poderes Legislativo e Executivo, membros do Ministério Público, Estudantes e Estudiosos do Direito e de outras áreas, percebendo o “terceiro” lado da moeda, e que não são só dois, tampouco três, os lados que ela tem.

Lá, não se entregam, mas também não lhes afeta a dignidade (para os que assim possam pensar) reconhecer em público que precisam refletir sobre suas posições, quando percebem o entusiasmo dos estudados e estudantes, em vista de tese a que até então não aderiam.

Como se pode chamar esta magistratura de cega ? A pouco entendida venda da madrinha da Justiça apenas quer mostrar que não se olha “quem” quer “aquele” direito “naquele” caso concreto. A justiça pode ser cega (e há quem queira trocar a tira de pano de lugar – dos olhos para a boca), mas o juiz não é cego, como bradam alguns ao perceber que alguma das partes tentam ludibriar seu convencimento.

Esse, o convencimento, que é livre e decorre daquela referida prerrogativa de independência, e que é alimentado pelo convívio direto com a sociedade e com a cultura jurídica, legitima e democratiza, contando hoje com poderosa aliada: a Internet.

No Estado com a máquina Judiciária mais informatizada do país, tanto em qualidade como em quantidade, antes de decidir uma causa nodulosa, pode o juiz do mais recôndito rincão consultar praticamente todas as decisões do Tribunal de Justiça Catarinense, desde 1989, em poucos segundos. Tem à sua disposição, além disso, o acesso aos Tribunais Superiores de Brasília, e ainda, a todo imenso acervo jurídico nacional e mundial sobre o tema em discussão – tudo isso na comunidade virtual internética.

Pode-se perceber, por exemplo, que nos mais variados portais jurídicos, repete-se uma enquete: “as medidas do apagão são constitucionais ?”; que os percentuais de repulsa dessa legislação engendrada pelo Poder Executivo estão em média acima de 90%. Realmente, o juiz não consegue vendar as vistas.

Ainda assim existem os que não só vendam como espiam por baixo buscando somente seus interesses particulares, não há negar esse fato. Injusto é querer utiliza-los como bandeira para colocar o povo contra o Judiciário. Um Lalau que nunca fez um concurso público, um Ministro escolhido pelo Presidente da República que mantém presos em seu gabinete processos que, se julgados, “prejudicariam” o Governo, esses não são exemplo da magistratura de que se está falando.

Aqueles que adentram a magistratura pelas representações nos tribunais garantidas a Advogados, Ministério Público, e aqueles que são apenas escolhidos em listas ou indicados pela chefia do Executivo, como os antes referidos, não são tão só por esse motivo a “chaga” do Judiciário. Pelo contrário, democratizam ainda mais a formação da vontade do corpo judiciário – mas certamente não quando atuam pautados nos exemplos precitados. Especificamente este tema, será aprofundado em estudo a ser publicado em breve.

Nesse sentido, exemplar proeminente em nível nacional é o atual Presidente do Supremo Tribunal Federal, só para ficar num exemplo.

Em que pese ter sido escolhido por seu primo, de quem nossa memória se recusa a querer lembrar, poucos são os reparos oponíveis à atuação que imprime ao poder que lhe foi conferido. Não se importou com as críticas por ter libertado aquele banqueiro italiano, e de outro lado não envergonha de admitir que lhe pesou a consciência ter votado – no passado – contra a limitação de juros que a Constituição de 1988 impôs, passando a decidir de modo diverso.

Nesse contexto, por – felizmente – não conseguirem dissociar-se da comunidade, do povo, da sociedade organizada, da academia e dos estudos, sendo lhes jogado à mesa, todos os dias, os reflexos dos problemas sociais, em sua maioria criados por sucessivas administrações desastrosas, é que fica impossível negar: a magistratura é a forma de exercício do poder estatal mais efetiva, considerado como derivado de uma democracia representativa; é o instrumento mais contundente de atuação da vontade social.

 

 

Como citar este artigo:

 

HAPPKE, André Alexandre. O Poder Democrático – A magistratura sem olhos vendados. Portal dos Alunos da Escola Superior da Magistratura de Santa Catarina – Turma 2000/I. 24/6/2001. Disponível em: http://esmesc2000.cjb.net. Data de acesso: XX/XX/XXXX.