O PODER DEMOCRÁTICO
- A magistratura sem olhos vendados -
Bacharel em Direito pela Universidade Regional de Blumenau
(SC)
Assessor no
Tribunal de Justiça de Santa Catarina
Os ares da
democracia pareciam estar se aproximando na década de 80, como uma dessas
massas de ar que os meteorologistas apontam no mapa todo dia. Contudo, assim
como eles não conseguem, muitas vezes, dizer precisamente se choverá hoje ou
amanhã, aqueles sopros democráticos parecem não ser tudo aquilo que se queria
ou que a mídia noticia se estar vivendo hoje. Mas há uma esperança, um Poder
efetivamente democrático que está atuando.
No
tangente à “redemocratização” do país, as eleições diretas, majoritárias e
proporcionais, para os diversos mandatos públicos de direção do Estado passaram
a maquilar uma pseudo-democracia representativa. Afinal, sem sombra de dúvida,
está-se percebendo que os eleitos – salvo as honrosas exceções de sempre – agem
como lhes tivessem dado um cheque em branco e a fundo perdido. Desvinculam-se
completamente do que o eleitor foi levado a pensar quando marcou o “x”,
preencheu a “bolinha” ou digitou o número em uma urna eletrônica.
Talvez por não ser esse o meio de escolha dos
magistrados, que também exercem uma parcela da soberania na direção do Estado,
algumas vozes se levantam para criticar suas escolhas independentes, os rumos
de suas decisões, remetendo à sua forma “anti-democrática” de escolha.
Não
obstante ser esta uma opinião tão difundida, pelos leigos no direito, quanto
inverídica, o fato é que a magistratura nacional – que também tem exceções,
desonrosas – tem se mostrado o mais democrático dos poderes.
Com
efeito, em importante pesquisa científica que pouco se divulgou, publicada na
obra Corpo e Alma da Magistratura Brasileira, registrou-se: “Observa-se
que o magistrado não provém de famílias com cultura de elite sedimentada e com
situação de status estabilizada, perfil, de resto, bastante compatível
com as exigências atuais de democratização do Poder Judiciário.” (Luiz Werneck
Viana, Maria Alice Rezende de Carvalho, Manoel Palácios Cunha Mel e Marcelo
Baumann Burgos. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 1997. p.112)
Enquanto
isso, os mandatos eletivos são preenchidos por indivíduos que precisam ser
vultuosamente financiados em caras campanhas que mostram, nas mais das vezes, a
embalagem do produto, já que o conteúdo, como se sabe, será uma surpresa. Só
depois de iniciada a refeição que se percebe que o prato eleito é aquele que
tirou seu nome da lista de assinaturas para ser investigada corrupção, ou
aquele que coagiu moralmente uma subordinada a revelar dados que deveriam ser
secretos, para deles se utilizar para auto-promoção e chantagem. Mas aí já é
tarde, só resta purgar a má-digestão, afinal, basta renunciar e ter uma boa
campanha com um gordo orçamento na próxima vez.
De seu
turno, o magistrado, que foi minuciosamente investigado durante o concurso público
(onde ainda se paga taxa de inscrição, mas são isentados os que comprovem a
impossibilidade de a custear, além dos doadores de sangue), estudou, enfrentou
muitas vezes seis, sete, oito fases de avaliações culturais, técnicas, de saúde
psicológica e psiquiátrica, além de meses (até mais de ano) de provas
exaustivas, e que passando, não deve favor a ninguém. Tal decorre de um dos
basilares princípios da democracia, que é o de um Poder Judiciário composto de
juízes independentes.
Muito
embora pudesse então achar que tem um “mandato-cheque-em-branco”, prossegue seu
trabalho diretamente em ligação com a sociedade, com o povo, que lhe deu o
estudo e lhe dá a vivência, para compreender os anseios sociais.
Ouve o
casal que está se separando e percebe que o fator econômico desagregou aquela
família, o empregado demitido que noticia que a empresa precisa economizar
energia elétrica, ou já está quebrada, e o mandou embora, o empresário que não
consegue quitar seus débitos devido à voracidade do sistema financeiro.
Esse juiz,
que vive no seio da sociedade que tem direitos doentes, cada vez mais próximo
do povo, agora não apenas em fóruns, mas também em “Casas da Cidadania”
(brevemente presentes em cada município ou bairro populoso de Santa Catarina),
que mora no município onde atua (por disposição constitucional, art. 93, inc.
VII, 1988), está sim democraticamente investido no poder de conhecer o desejo
da sociedade, bastando que se dedique a observar à sua volta. Nem tanto esforço
é preciso, já que as audiências são diárias e o contato com o povo é direto.
Ausculta-se das mais variadas maneiras a voz da coletividade.
Para que
tal seja alcançado, no processo de seleção de juízes, seguem os tribunais a lição
de Dalmo de Abreu Dallari, ao exigir que “a par de seus conhecimentos
jurídicos” sejam buscados os que “demonstrem ter consciência de que os casos
submetidos a sua decisão implicam interesses de seres humanos” (O Poder dos
Juízes. São Paulo: Saraiva, 1996, p.26).
Mas não é
só o procedimento seletivo que garante e a atuação diária direta que fomenta a
instrução dos juízes na sapiência da vontade social. Constante aperfeiçoamento
lhes é exigido, muitas vezes como condição para ascensão na carreira. Em nosso
Estado, hoje, mais de 10% dos juízes estão cursando mestrado, sem mencionar os
tantos que já têm os títulos de especialista, mestre e doutor (quando não mais
de um). No mesmo norte, congressos, seminários, conclaves científicos se
sucedem no tempo. Neles, os magistrados fundem-se a Advogados, Procuradores de
entidades estatais dos poderes Legislativo e Executivo, membros do Ministério
Público, Estudantes e Estudiosos do Direito e de outras áreas, percebendo o
“terceiro” lado da moeda, e que não são só dois, tampouco três, os lados que
ela tem.
Lá, não se
entregam, mas também não lhes afeta a dignidade (para os que assim possam pensar) reconhecer em público que
precisam refletir sobre suas posições, quando percebem o entusiasmo dos estudados e
estudantes, em vista de tese a que até então não aderiam.
Como se
pode chamar esta magistratura de cega ? A pouco entendida venda da madrinha da
Justiça apenas quer mostrar que não se olha “quem” quer “aquele” direito
“naquele” caso concreto. A justiça pode ser cega (e há quem queira trocar a
tira de pano de lugar – dos olhos para a boca), mas o juiz não é cego, como
bradam alguns ao perceber que alguma das partes tentam ludibriar seu
convencimento.
Esse, o
convencimento, que é livre e decorre daquela referida prerrogativa de
independência, e que é alimentado pelo convívio direto com a sociedade e com a
cultura jurídica, legitima e democratiza, contando hoje com poderosa aliada: a
Internet.
No Estado
com a máquina Judiciária mais informatizada do país, tanto em qualidade como em
quantidade, antes de decidir uma causa nodulosa, pode o juiz do mais recôndito
rincão consultar praticamente todas as decisões do Tribunal de Justiça
Catarinense, desde 1989, em poucos segundos. Tem à sua disposição, além disso,
o acesso aos Tribunais Superiores de Brasília, e ainda, a todo imenso acervo
jurídico nacional e mundial sobre o tema em discussão – tudo isso na comunidade
virtual internética.
Pode-se
perceber, por exemplo, que nos mais variados portais jurídicos, repete-se uma
enquete: “as medidas do apagão são constitucionais ?”; que os percentuais de
repulsa dessa legislação engendrada pelo Poder Executivo estão em média acima
de 90%. Realmente, o juiz não consegue vendar as vistas.
Ainda
assim existem os que não só vendam como espiam por baixo buscando somente seus
interesses particulares, não há negar esse fato. Injusto é querer utiliza-los
como bandeira para colocar o povo contra o Judiciário. Um Lalau que nunca fez
um concurso público, um Ministro escolhido pelo Presidente da República que
mantém presos em seu gabinete processos que, se julgados, “prejudicariam” o
Governo, esses não são exemplo da magistratura de que se está falando.
Aqueles
que adentram a magistratura pelas representações nos tribunais garantidas a
Advogados, Ministério Público, e aqueles que são apenas escolhidos em listas ou
indicados pela chefia do Executivo, como os antes referidos, não são tão só por
esse motivo a “chaga” do Judiciário. Pelo contrário, democratizam ainda mais a
formação da vontade do corpo judiciário – mas certamente não quando atuam pautados
nos exemplos precitados. Especificamente este tema, será aprofundado em estudo a ser publicado em breve.
Nesse
sentido, exemplar proeminente em nível nacional é o atual Presidente do Supremo
Tribunal Federal, só para ficar num exemplo.
Em que
pese ter sido escolhido por seu primo, de quem nossa memória se recusa a querer
lembrar, poucos são os reparos oponíveis à atuação que imprime ao poder que lhe
foi conferido. Não se importou com as críticas por ter libertado aquele
banqueiro italiano, e de outro lado não envergonha de admitir que lhe pesou a
consciência ter votado – no passado – contra a limitação de juros que a
Constituição de 1988 impôs, passando a decidir de modo diverso.
Nesse contexto, por – felizmente – não conseguirem
dissociar-se da comunidade, do povo, da sociedade organizada, da academia e dos
estudos, sendo lhes jogado à mesa, todos os dias, os reflexos dos problemas
sociais, em sua maioria criados por sucessivas administrações desastrosas, é
que fica impossível negar: a magistratura é a forma de exercício do poder
estatal mais efetiva, considerado como derivado de uma democracia
representativa; é o instrumento mais contundente de atuação da vontade social.
Como citar este artigo:
HAPPKE,
André Alexandre. O Poder Democrático – A
magistratura sem olhos vendados. Portal dos Alunos da Escola Superior da
Magistratura de Santa Catarina – Turma 2000/I. 24/6/2001. Disponível em: http://esmesc2000.cjb.net.
Data de acesso: XX/XX/XXXX.