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A Máquina do Mundo
Análise de: Antonio Alder Teixeira

A MÁQUINA DO MUNDO

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

pausadamente se fossem diluindo
na escuridão, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspecção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e instituições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o ponto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuras-te em ti ou fora de

teu ser restrito nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante e toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mais hermética,

essa total explicação da vida,
este nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo."

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
da volta ao mundo e torna a se engolfar
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade;

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento da morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para o seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima - esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um Dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando a colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

 

Construído em tercetos clássicos, numa realização formal que bem revela o inquestionável domínio da carpintaria poética por parte do seu autor, "A Máquina do Mundo" pertence ao livro Claro Enigma (1951) e intitula a última parte da coletânea, constituída de dois poemas - o outro é "Relógio do Rosário". Nele o poeta "narra" o seu inusitado encontro, numa estrada pedregosa de Minas, com um objeto maravilhoso que lhe propõe desvendar o mistério do universo.

Objeto de algumas das mais completas análises já levadas a efeito sobre Drummond, "a máquina do mundo" tem sido considerada por quase todos como símbolo de uma epifania, o que, na perspectiva do seu autor, representaria a consolidação do tão ansiado encontro do poeta com o mundo, dicotomia em que identificamos uma das tensões temáticas que resultam singularmente dramáticas no caso de Drummond, escopo da análise que vimos realizando no presente trabalho. Affonso Romano de Sant'Anna [O. C. 246] considera os dois poemas aqui referidos "como uma epifania seja como um conjunto em si, seja como clímax de uma obra que é toda ela uma visão epifânica da realidade". Aceitá-lo, do ponto de vista da nossa análise, seria negar a essência do que temos procurado afirmar, porquanto significar isso o afrouxamento da dramaticidade de que vimos tratando, o que nos parece improvável, como tentaremos mostrar.

Há nos primeiros versos do poema, elementos que permitem uma leitura associativa deste com outra significativa realização do autor. Referimo-nos ao poema "No Meio do Caminho", do livro de estréia, cujas imagens centrais nos parecem evocadas na circunstância do eu poemático, do texto em análise, palmilhar "vagamente / uma estrada de Minas, pedregosa," e dar-se a "máquina do mundo" à admiração e surpresa de "pupilas gastas na inspeção / continua e dolorosa do deserto", que remete às "retinas fatigadas" do primeiro poema e à sugestiva imagem do substantivo pedra, detentor de forte carga significativa no poema referido.

Estabelecendo um paralelo com A Divina Comédia, de cujo primeiro canto extraiu Drummond a expressão insistentemente repetida no poema, em que pesem as convergências motivacionais ou situações significativas de um e outro (e nesse sentido "A Máquina do Mundo" guarda possibilidades mais aceitáveis de leitura comparada), constatamos desfechos profundamente diferenciados. Como observa Donaldo Schüler [O. C. 23], "A Divina Comédia é um poema em espiral. Começa na selva escura e culmina nos píncaros da luminosidade divina". Trata-se, como se pode concluir de sua leitura, de um poema, este sim, epifânico, que narra o encontro do homem consigo e com as verdades fundamentais da alma humana, processo de depuração ansiosamente buscado. "No Meio do Caminho", ao contrário, revela a impossibilidade desse encontro, metaforizado na palavra "pedra", símbolo de obstáculo intransponível para o homem. Poema circular, como afirma o citado ensaísta. É aqui, mais uma vez, que se evidenciam as perspectivas de associação entre o poema da pedra e "A Máquina do Mundo", em sua dramática circularidade. Demonstra-o, no primeiro, a estilística da repetição (usando de uma terminologia, por demais conhecida, de Gilberto Mendonça Teles) através do uso sugestivo de figuras como a epanástrofe e a anáfora "No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / tinha uma pedra" processo reiterativo adotado por Drummond para enfatizar a angústia do homem diante de uma existência rigorosamente sem sentido, enigma indecifrável que busca sem sucesso desvendar. Condenado a palmilhar continuamente o mesmo caminho, o eu poemático do primeiro poema projeta-se no segundo para "em vão e para sempre" repetir "os mesmos sem roteiro tristes périplos", verso, como diz Bosi, saturado de sugestões circulares.

No poema "A Máquina do Mundo", pois, deparamos com a mesma impossibilidade de comunicação tematizada em grande parte dos poemas aqui analisados, o que, ao nosso ver, torna recorrentes os aspectos dramáticos neles arrolados. Poema de cunho metafísico, vazado numa linguagem extremamente expressiva e formalmente perfeito, que bem representa o estilo refinado do terceiro Drummond, do ponto de vista do conteúdo, em que fundamentamos o nosso trabalho, expõe o artista empenhado em conceber o Universo e o enigma da vida, o que configura um impasse de natureza gnoseológica a partir mesmo do título da coletânea - Claro Enigma -, oxímoro que denuncia o motivo condutor da obra. A dramaticidade, no entanto, explicita-se na angústia de não poder desvendar o mistério, porque reluta "em responder / a tal apelo assim maravilhoso".

Nos tercetos iniciais, mostra-se o "eu" do poema tomado de absoluta disforia, circunstância explicitamente revelada pelos semas vagamente (1º terceto), pausado (2º terceto) e lentamente (3º terceto), acentuados pelo verso "e pela mente exausta de mentar", com que desfecha o sexto terceto e que vão se projetar no último verso do poema - "seguia vagaroso, de mãos pensas." - em que se completa círculo. Observemos, todavia, que a aparição da máquina do mundo se dá no quarto terceto, o que, embora pudesse tirar o caminhante do estado de torpor em que se encontrava, por sensação de medo e surpresa, não o faz, "para quem de a romper já se esquivava / e só de o ter pensado se carpia". Instala-se a dramaticidade, assim, já nos versos de abertura do poema, em que deparamos com a dualidade maravilhoso / real, o primeiro representado pela máquina do mundo - "majestosa e circunspecta" -, o segundo pelo personagem poemático - "noturno e miserável". Esta sugestão, parece-nos, materializa-se na topologia em que se dá o fato poeticamente narrado, também ela reveladora da tensão entre os personagens: existem dois espaços. O primeiro, em que se encontra o eu poemático , ou seja, "uma estrada de Minas, pedregosa" sob uma atmosfera entediante do "fecho da tarde"; o segundo, o da procedência do objeto, a máquina do mundo, por sua vez maravilhoso, enigmático, que estimula o imaginário do poeta, porque sempre associado ao sobrenatural, universo dos deuses, onde se processam as magias e os bruxedos.

Como afirma Bosi na sua análise, "mesmo quando se oferece ao caminhante, preserva a sua natureza contraditória de proximidade e distância, que é a própria cifra da transcendência" , diz ele, reportando-se ao que denomina de imago mundi . O texto está, desse modo, eivado de sugestões relacionais com o drama do encontro frustrado, a incomunicação corporificada na máquina do mundo. Importante frisar, no entanto, que o enigma permanece indecifrado em função de ser o eu poemático, não um ser indiferente ("incurioso") aos mistérios do mundo e à complexa raiz do conhecimento jamais alcançado. Deve-se esta circunstância a uma história marcada por conflitos pessoais profundos, decorrência de quem palmilha vagamente "os mesmos sem roteiro tristes périplos" à procura da identidade perdida - "O que procuraste em ti ou fora de / teu ser restrito e nunca se mostrou". Mais uma vez referimo-nos ao poema "No Meio do Caminho", em que o eu lírico afirma: "Nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida das minhas retinas fatigadas" - que se pode associar ao caráter moralizante da Divina Comédia, nas passagens em que Beatriz (e as outras almas) pede ao poeta que não se esqueça de socializar o que viu e ouviu: "Toma nota: e assim como as expressei / estas palavras transmita ao vivos, / cujo viver é um correr para a morte." Também no texto em exame, como o comprovam os tempos verbais utilizados pelo autor, o imperfeito, sobretudo, indicativo de permanência da ação, o personagem narra uma ocorrência pretérita, que, presume-se, teve grande duração em sua alma, marcando profundamente a sua psique. Prova-o o que separa cronologicamente o fato enunciado da enunciação.

Não é sem razão, portanto, que vimos adotando na exegese da "Máquina do Mundo" o método da comparação com "No meio do Caminho" (de inspiração dantesca), ambos examinados à luz da obra monumental do bardo florentino. A exemplo do que se vê na obra deste, cuja viagem pelos reinos do post mortem - tal como concebido pelos cristãos - alegoriza a penosa trajetória do homem em busca do aperfeiçoamento espiritual e da salvação, em Drummond deparamos com o eu poemático ainda uma vez trilhando o mesmo pedregoso caminho da purificação. Em Dante, diferentemente do que veremos no poeta mineiro, a passagem das trevas à luz, do pecado à virtude, sentido fundamental da obra, ocorre sob a mais intensa luminosidade, em oposição ao espaço infernal, tomado pela escuridão. Textualmente, chega o autor italiano a confessar não poder descrever com exatidão os mistérios do oitavo céu, porque ofuscado pelo excesso de luz. Ao caminhante da "máquina do mundo" , a aparição se dá "sem emitir um som que fosse impuro / nem um clarão maior que o tolerável". Por isso, parece-nos significativo lembrar, que, n' A Divina Comédia, Dante e Virgílio, ao cair da noite, interrompem a caminhada, posto que, sem luz, não é dado à inteligência humana conhecer a verdade eterna. É sintomático que, naquele, "A treva mais estrita já pousara / sobre a estrada de Minas, pedregosa," quando é a máquina do mundo repelida, circunstância reveladora do fracasso de quem está para sempre condenado a refazer o seu eterno retorno, paroxismo da dramaticidade em Drummond. Se, destaquemos mais uma vez, a comunicação (revelação mística do Universo) não ocorre por consequência de uma "vontade / que, já de si volúvel, se cerrava / semelhante a essas flores reticentes / em si mesmo abertas e fechadas" , falta ao ser (eu lírico) um dos princípios basilares para que se lhe torne possível o paraíso buscado, a harmonia individual. Falta-lhe o "querer", que em Dante concretiza-se na presença voluntária do poeta como protagonista da narrativa. Nela, como sabemos, a visão termina com a chegada do homem aos píncaros da glória, a viagem do poeta chega ao fim. Na estrada pedregosa de Minas, na quase absoluta escuridão, a máquina do mundo "se foi miudamente recompondo," enquanto um homem, "avaliando o que perdera, / seguia vagaroso, de mãos pensas." Fecha-se o círculo, os seus eternos retornos.

Resta-nos, como conclusão desta análise, assumir que esta leitura prende-se a uma convicção inarredável de que, certamente contrariando um dos pressupostos mais caros à modernidade, em se tratando de Carlos Drummond de Andrade, existe uma tensão que resulta dramática entre a experiência de criação artística, no nosso caso o poema "A Máquina do Mundo", e a personalidade empírica do poeta. A epifania do gauche é, também aqui, adiada.

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