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"Vestígios & Resíduos" e "Inventário da Luz", de Ivan Miziara
de: Aroldo Zindevo

A poesia brasileira desse final de século está anêmica, padece da falta de músculos e ossos. Em seu desfibrado corpo em decomposição, há uma hipertrofia do próprio umbigo (parafraseando o exigente crítico Wilson Martins) e pouco tutano nas milhares de palavras colocadas a esmo em laudas e laudas, sem o menor senso de direção poética. Não por acaso, após a morte de João Cabral, a crítica, atônita, percebeu que, Gullar fora, poucos podiam ocupar o posto de "maior poeta do país". E, pior, deu-se conta de que, a longo prazo, um número ainda mais reduzido de vates demonstra potencial e "punch" para, no futuro, vir a suceder ao maranhense.

Nesse cenário desolador para a jovem poesia tupiniquim, existem algumas tentativas cheias de referências concretistas (Regis Bonvicino, Arnaldo Antunes, Carlito Azevedo), dotadas de conhecimento teórico em demasia, que os leva a navegar em círculos, e ainda sobrevivem "dinossauros" remanescentes da poesia marginal dos anos 70 (Wally Salomão) ou alguns poucos formalistas (Alexei Bueno). Todos eles, no entanto, estão em um "beco sem saída" árido e desgastante, a cada livro, enfadonhamente, repetindo a si mesmos.

Entre as raras exceções que confirmam a regra, como Nelson Ascher, estão dois jovens poetas paulistas que surgiram no final dos anos 90: Donizete Galvão e Ivan Miziara. Este último, com dois livros lançados em 1999 - "Vestígios & Resíduos" e "Inventário da Luz" (BMGV Net Editora).

Jornalista e médico, Miziara estreou em poesia em 1981, com "Cotidiário" (Massao Ohno / Roswitha Kempf Editores). As duas obras em questão refletem, possivelmente, o trabalho elaborativo do poeta nesses 18 anos de interregno. Entretanto, é possível acompanhar a evolução de seu "modus operandi" através de ambos os livros, em que os versos mais antigos, aparentemente (há pouca informação a esse respeito), se concentram em "Vestígios & Resíduos". Há aqui, uma busca incessante da aproximação com a pintura, através da divisão da obra em "quadros", compondo poemas longos, cujos títulos remetem a técnicas pictóricas (i.e, "Estudos para aquarela", "Oil on canvas" e até o irônico "Spray em parede de metrô").

A irregularidade de algumas partes desta obra (os poemas amorosos) é superada pela alta voltagem poética dos textos, como, por exemplo, os que trabalham as memórias de infância do poeta ou o belo "Poemas da Noite", metáfora da morte, resumida nos versos finais: "inútil tentar fugir desse círculo / desse labirinto que é teu ser / - teu ser que é prisioneiro de ti." 

Aliás, o livro em sua totalidade nada mais é que uma alusão à passagem do tempo, que, no dizer de Miziara, nos envolve com seus "sons mágicos". Para recriar essa "música das horas", o poeta lança mão de rimas internas, cadências suaves, assonâncias, à moda de Eugenio Montale. Como se os versos simulassem os movimentos de um pêndulo de relógio, com suas indas e vindas, medindo a lenta passagem do tempo, que é "Cego e manso. Lerdo. / Tão lerdo que a gente nem sente passar".

Se Cronos é o deus que está por trás de "Vestígios & Resíduos", em "Inventário da Luz" o mundo (e seu jogo de claro/escuro) passa a ser o objeto de interesse. O poeta se põe a observar os seres e as coisas que nele gravitam, enquanto se insere nessa realidade para transfigurá-la. Aqui, as palavras são escolhidas a dedo, para dar voz àqueles que não a têm, ao mesmo tempo que buscam iluminar a condição humana.

A claridade do Universo é "inventariada" em suas diversas formas: "A vida em si bemol / arde cheia de pernas / clareia a cidade", diz ele, fundindo genialmente a luz, a música e o movimento do amanhecer. Mais adiante, essa fusão de sentidos se revela no anoitecer ("Depois da tarde / o perfume / da lua imatura / se instaura"). 

Esta técnica de montagem, muito pouco utilizada entre nós, é comum na poesia americana moderna, da qual o autor, sem dúvida, é tributário. A diferença é a concisão com que Miziara organiza seus poemas, esculpindo-os através da justaposição mais exata. Foge da verborragia anglo-saxônica. 

Mas não se pense que sua poesia se resume a um simbolismo tardio ou que ou a um formalismo inócuo. O fado humano, inexorável, parece ser a sua maior obsessão, e nesse ponto ele se aproxima em demasia da grande Hilda Hilst. Logo na primeira parte, que dá título ao livro, ele canta nossa natureza transitória: "Precária esta luz / que te governa / e se desmancha / em graves matizes". E vai mais além, constatando nosso naufrágio: "A vida é mesmo assim: ombros / submersos; homens ao mar". 

"Inventário da Luz" segue alternando dúvidas sobre nossa função neste planeta ("vamos explodir / virar semente / ou tão somente / seguir em frente?"), com momentos de real explosão emocional ("Algo em meu cérebro / me impele ao abismo / ao mormaço / ao canto mais escuro do cinema / ao beco mais sujo da cidade"), em um desabafo pessoano de elevada carga dramática.

Herdeiro de nossas melhores tradições poéticas, com um domínio espantoso tanto do verso curto como do longo, a poesia de Ivan Miziara necessita, urgentemente, de reconhecimento. A pouca divulgação de seus versos, a falta de leitores atentos, aliada à involuntária reclusão de uma editora pequena (serão esses livros de "edição do autor"?) é um crime de lesa-língua que precisa ser reparado. 

Pesquisando há três anos a poesia brasileira feita nos anos 90, para uma tese de pós-doutoramento, posso afirmar sem temor que "Inventário da Luz" é um dos melhores livros lançados no Brasil nos últimos cinco anos. Vale a pena garimpá-lo em sebos ou pequenas livrarias (que é onde, eu presumo, esse pequeno tesouro poético está escondido). 

São Francisco, junho, 2000.

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