TEXTOS
Atuação parlamentar petista
Ação
do vereador petista nos municípios onde o PT
é governo
Estilac Xavier*
Uma nova realidade: somos governo
O
seminário organizado no mês de março deste ano, pela Secretaria de Assuntos
Institucionais do PT do Rio Grande do Sul, suscita o debate sobre um dos temas mais
relevantes para o futuro do nosso partido. O assunto é provocante para que possamos
refletir sobre o novo período que se abre à política partidária.
O resultado das eleições municipais, em 2000, no
Rio Grande do Sul, mostra que metade da população gaúcha, hoje, é
administrada pelo PT, coligado ou não. Somos governo em 38 prefeituras e temos mais de quatro
centenas (456) de vereadores. No Brasil, governamos os estados do Rio Grande do Sul, Acre
e Mato Grosso Sul. Fomos vitoriosos na disputa pela prefeitura de São Paulo, terceiro PIB
da América Latina, e em mais 185 municípios brasileiros. Em razão disto, podemos dizer
que estão se constituindo as bases sociais e políticas para incidirmos fortemente na
disputa pela presidência do país em 2002 e pretendemos vencê-la. Este crescimento célere do partido revela-nos, de
imediato, o seguinte: temos experiência acumulada e testada nas administrações
municipais Porto Alegre é o melhor exemplo. No entanto, o nosso conhecimento nos
governos estaduais ainda está por ser construído, sendo que as vivências recentes não foram exitosas e
trouxeram, como decorrência, graves prejuízos à política do PT. Estamos na segunda
geração de governos estaduais. A conquista do governo do estado do Rio Grande do Sul
marca uma nova fase para o partido, em que ele aparece em cena pública com novas
exigências e com outra qualidade. É a oportunidade que temos para sistematizar um
conjunto de políticas públicas que caracterizem a nossa ação político-administrativa
nos executivos estaduais. Portanto, este é
um desafio que se coloca tal como o tema que propõe este seminário, pois entendo que
são questões indissociáveis.
Creio
que o PT, daqui para frente, terá que precisar muito bem a sua situação enquanto
partido de governo e as suas relações com as demais instituições e com o movimento
social. Para provocar este debate, é preciso afirmar que não é mais possível o PT se
conduzir, na sua ação política, como fez na origem da sua organização, quando assumiu
plenamente as plataformas corporativas dos movimentos e, muitas vezes, sustentou sua
política com um cunho exclusivamente ideológico. Não é minha intenção fazer um
balanço desta postura e nem, tampouco, tecer juízos sobre ela. Para o debate de hoje,
sustento que esta posição não tem potência política e não corresponde aos desígnios
que penso para o nosso partido e para o nosso
país.
Perfil do parlamentar petista: ontem e hoje
Neste momento, é preciso assumir
radicalmente que a sociedade plural exige o reconhecimento de diversos interlocutores, das
suas legitimidades e da necessidade da existência desses atores heterogêneos como
garantia da existência da democracia. É preciso, portanto, pensar no aperfeiçoamento do processo
democrático formal e substancial para aprofundar a própria democracia, permanente
construção histórica, logo, ilimitada. O
que tem isto a ver com o papel do vereador petista nos municípios onde o PT é governo? Existe uma estreita relação, já que vários
companheiros petistas, que um dia foram implacáveis parlamentares de oposição, hoje
sustentam governos nascidos do último processo eleitoral. Aqui aparecem as
contradições, a riqueza e a complexidade da política, muitas vezes simplificada na
obtenção de resultados imediatos. À luz da nova realidade a de ser governo
, muitos parlamentares petistas percebem que poderiam ter feito outra oposição,
não menos firme nem menos comprometida com a população, porém mais eficiente e mais
construtora de hegemonia cultural. Eis, então, a questão: se assumimos o governo em 38
municípios, significa que somos oposição nos outros 429! E que tipo de oposição
estamos exercendo? Quantos parlamentares
petistas vigorosos oposicionistas no passado, hoje nos governos não
justificam suas ações alegando "razões de estado"? Qual, de fato, é a validade de um passado movido, em
alguns casos, pela máxima de que os "fins justificam os meios" e que continua a
orientar as ações do presente? Estas duas facetas, oposição/situação,
legislar/executar, não são realidades estanques e elas remetem a uma profunda análise
da nossa atuação enquanto agentes posicionados, em cada conjuntura, de acordo com o
regramento democrático.
Aí temos que os problemas vividos
hoje pelas cidades não diferem daqueles que enfrentamos quando éramos oposição.
Faremos o que exigíamos dos nossos adversários? Não lhes faltavam dizíamos
somente vontade e compromisso político? Será possível respondermos às nossas
responsabilidades nos governos alegando que os problemas hoje enfrentados devem-se à
subordinação do governo federal, ao domínio do Império e ao neoliberalismo? Não. Um
parlamentar e um governo radicalmente comprometidos com a socialização e com a
ampliação de direitos não podem se satisfazer em dar esta resposta. Devem, na esfera
das suas competências e nos limites das suas ações, executar programas e políticas que
disputem, cultural e economicamente, com a minoria que detém direitos e privilégios.
Esta socialização faz parte de um processo cultural transformador que transcende às
ações práticas como saneamento, habitação, saúde e educação.
Isto significa que os atos do governo
e dos parlamentares, obviamente, estão carregados de conflitos e consensos, positividades
e negatividades. A questão está em saber qual destas atitudes é predominante. Estamos
certos, realmente, do que significa 'princípios'
na ação política? Qual é o nosso compromisso mais fundamental que, se dele abrirmos
mão, já não seremos nós mesmos? Estas perguntas exigem respostas. Não deste simples
texto, mas de todo o partido. Estou convencido de que o nosso movimento possui largueza
humana e generosidade que, talvez, o poder e o tempo corroam. No entanto, se isto ocorrer,
seremos nós os responsáveis e ninguém mais. Logo, é preciso manter acesa na sociedade
o ideal de democracia, de humanismo, de generosidade contra as saídas da barbárie, da
violência, do anti-humano. Manter na cena pública estes ideais, com apoio social e
decorrente prestígio, é uma das tarefas revolucionárias da esquerda moderna e
contemporânea. É assim que se poderá impedir que soluções totalitárias, únicas,
excludentes e anti-democráticas seduzam e dominem gerações que, porventura, estejam se
cansando da falta de 'resultado' da democracia. Então, quando o 'programa máximo' não
puder ser executado, devemos, no meu entendimento, analisar a questão sob o ângulo antes
proposto.
Os desafios do parlamentar petista
Qual será o papel dos vereadores
petistas neste contexto? Serão meras 'correias de defesa' dos projetos do Executivo
petista? Para esta pergunta, não existe somente uma resposta. Aproveito, então, para
fazer algumas considerações em sintonia com o que sustentei
há pouco. Primeiro, é preciso firmar a idéia de que o Executivo e a bancada de apoio ao
governo são partes de um mesmo Projeto. Logo, se completam, se combinam. São diferentes,
têm suas especificidades e são autônomas uma em relação à outra, não existindo
posição de hierarquia entre governo e bancada. Ambos pertencem a duas esferas de poder:
a Executiva e a Legislativa, respectivamente. O governo tem obrigação de prestigiar,
ouvir e manter informada a sua bancada. Esta, por sua vez, tem a obrigação de propor,
contribuir e sustentar o seu governo. Um conjunto de entendimentos e procedimentos entre
os dois atores pode dar conta satisfatória desta premissa.
Em segundo lugar, o partido tem como
linha programática a implantação de um método de decisão sobre os investimentos e as
despesas dos municípios que envolve plenamente a comunidade: o Orçamento Participativo.
Este processo permite a intervenção organizada dos cidadãos que quiserem, de forma
voluntária, decidir sobre o destino da arrecadação da sua cidade. O problema que se
coloca é: este processo não eliminou as possibilidades de atuação do Legislativo local
ou, ainda, as dos vereadores governistas? Serei sintético e não demonstrativo. No que
diz respeito ao Legislativo local, respondo que não,
o Orçamento Participativo não retirou nenhuma das suas prerrogativas. Quanto aos
vereadores governistas, preciso fazer algumas considerações. Partirei de um exemplo concreto: Porto Alegre tinha, na legislatura que
terminou no ano 2000, 12 vereadores do PT e teve uma administração bem sucedida, sob a
coordenação do Prefeito Raul Pont. O partido conquistou o quarto mandato na Prefeitura,
elegendo Tarso Genro com quase 500 mil votos em segundo turno. Porém, o PT perdeu duas
cadeiras no Legislativo e somente dois vereadores foram reeleitos! Aliás, um dos
objetivos questionável da campanha era o de a Frente Popular conquistar a
maioria na composição da Câmara de Vereadores. Afinal, o que aconteceu? Foi um erro
político na condução da campanha em relação a este objetivo? Talvez sim, mas esta
justificativa, além de insuficiente, é superficial. Acredito que o pano de fundo deste
problema está na indefinição do papel dos parlamentares petistas, resultado de uma
hipervalorização que o partido e os próprios vereadores dão ao Executivo, produto da
cultura presidencialista e autoritária da política brasileira. Perde-se, com isto, a
especificidade da ação parlamentar propriamente dita e tem-se, como conseqüência, uma
desvalorização do Legislativo. A bancada de vereadores do PT no Rio Grande do Sul teve
um pequeno crescimento de 368 para 456. Destes, somente 100 foram reeleitos. O que
aconteceu ? Nas cidades onde somos governo pode-se resumir o problema da seguinte forma:
as demandas da comunidade são canalizadas pelo Orçamento Participativo, as iniciativas
legislativas do governo têm que ser sustentadas nas Câmaras e as dos parlamentares
petistas têm que ter o aval prévio do Executivo, etc.
Então, o que pode um vereador petista de situação fazer? A bancada de oposição
pode fiscalizar, denunciar, mobilizar contra o governo, tomar iniciativas de repercussão
política, etc. Mas a bancada de situação, pode fazer o quê? Por outro lado, que tipo de ação exerceram
inúmeros petistas nos municípios aonde somos oposição que impediu a recondução dos
mesmos àqueles legislativos ? Foi
correlação de forças ? Uso do poder econômico ? ...Estas são perguntas ainda sem
respostas.
Certamente, não me contentarei com
uma resposta que ouvi, dias desses, que aconselhava os vereadores petistas, nas cidades
aonde somos governo, a mobilizarem as
comunidades para as reuniões do Orçamento Participativo. Esta simplificação é
respeitável mas, na minha opinião, não ajuda no avanço da democracia e do nosso projeto. Também não me
conforta a idéia de que o mandato se resuma a ser um aguerrido defensor do governo. Aonde
fica a especificidade do mandato? O que singulariza a ação de determinado vereador? É
preciso que cada um defina o perfil, a plataforma e o modo de operação política do
mandato. Assim, acredito que o vereador petista deve ser o mais arguto fiscalizador dos
negócios públicos, um debatedor firme das questões locais e nacionais se for
necessário, um legislador não demagógico, um conhecedor da Constituição, da Lei
Orgânica, um mobilizador de opiniões, um profundo respeitador das opiniões diferentes,
um argumentador por excelência, um organizador das bases sociais de apoio do projeto, um
incentivador da autonomia dos movimentos, um propositor criativo de saídas e soluções,
um negociador e articulador dos interesses dos projetos.
Estas generalidades não são
suficientes, eu sei. Mas creio que elas emolduram alguns elementos para definirmos o papel
futuro dos parlamentares petistas nos municípios. Aqui, talvez, seja importante assinalar
uma contradição do partido: toda a nossa política afirma que a vida acontece no
município, o cidadão vive no município, os problemas existem na cidade, é nela que
acontece ou não a habitação, a educação, a cultura, a saúde, o
transporte. Não são sentidos e nem acontecem nos entes abstratos, nos estados-membros ou
na União. Mas todas estas assertivas não são suficientes para que o Legislativo
municipal receba o investimento e o destaque
de poder basilar do processo político nacional. Não desconheço a situação concreta
que instaura as composições legislativas locais e nem a desqualificação que isto
representa. Todavia, a sensação que paira é de que no município a política é
primária ou, até mesmo, uma 'pré-política'. Acho
isto equivocado.
O Parlamento como instância estratégica para a democracia
Penso que, agora, é importante o
partido assumir, com radicalidade, que a
ação do Legislativo e, portanto, também a do parlamentar petista é
estratégica e, no mínimo, está em pé de igualdade com a ação do Executivo. Digo 'no
mínimo' porque a existência das idéias e dos projetos nos parlamentos é mais perene
que nos executivos, substituídos, de tempos em tempos e democraticamente, pelo princípio
da alternância do poder, que também adotamos. O desafio do pensamento democrático de
esquerda moderno é aperfeiçoar os parlamentos, tornando-os mais próximos dos anseios
das maiorias e, em alguma medida, sob controle público e social. Esta tarefa se estende
também para o Judiciário. O conjunto de reformas que devem ser feitas, ao contrário de
diminuir ou limitar estes dois poderes, deve, antes, dotar-lhes de competências para
melhor representarem o conjunto dos cidadãos. Logo, não se pensa em substituir os
legislativos por processos de participação popular como o Orçamento Participativo que,
a meu ver, alguns definem equivocadamente como uma forma de democracia direta. O
Orçamento Participativo está em uma outra esfera que não é estatal, e sim
participativa. A imagem e a prática dos Legislativos atuais não devem ser referência
para esta reflexão, nem devem ser tratadas como parâmetro (neste momento assistimos as
confissões sobre a violação do painel de votação do Senado perpetrada pelo seu
ex-presidente e o ex-líder do governo federal). O debate que o partido deve enfrentar diz
respeito à visão instrumental, que ainda existe internamente, da democracia
representativa e da defesa não sustentada teoricamente da democracia direta. Aliás,
sobre esta última, entre romantismos e revolucionarismos, pouco se tem dito. Como
tornar-se-ia possível, numa sociedade complexa e de massa, o exercício da mesma? Qual
seria a competência deste exercício? Seria, de fato, uma democracia direta? O PT tem que
resolver o velho dilema entre Estado x Partido x Sociedade e, além disto, tem que
esclarecer política e teoricamente diante de sua posição ambivalente suas
políticas como governo e como oposição, como partido e como estimulador dos movimentos
sociais.
Finalizo afirmando que é um erro de
caráter estratégico contrapor a representação legislativa à participação da
comunidade na forma de Orçamento Participativo, assim como é um equívoco submeter as
bancadas petistas a uma lógica subordinada aos executivos governados pelo partido,
coligado ou não. Eis um instigante debate para nos debruçarmos: qual a concepção de
democracia que estamos praticando/construindo? Nesta democracia, qual o papel da
oposição, dos poderes Legislativo e Judiciário? Qual o papel dos cidadãos, das
organizações civis e dos movimentos sociais nos negócios públicos? A resposta está na
concepção de democracia que se está construindo e exercitando. Se ela for radicalmente
plural, promotora da diversidade, transigente e estimuladora das diferenças
quaisquer que sejam já é um bom caminho para um projeto que se pretende generoso,
humanista, justo e socializador de direitos.
Porto Alegre, 24 de Abril de 2001
* Engenheiro, Vereador e Líder do
Governo na Câmara Municipal de Porto Alegre (RS). Membro do Diretório Nacional pelo PT
do RS. Foi Secretário Municipal de Obras e Viação de Porto Alegre de 1993-2000. |