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A PALAVRA
*Estilac Xavier

Inek le Tajini min a'chauk al'inab.
(Do espinho não colhes uvas).
         - Provérbio Árabe -

 

A palavra, dita ou escrita, escraviza ou liberta. O filósofo francês Michel Foucault, no prefácio da sua obra "As palavras e as coisas" afirma: existem encontros impossíveis e inimagináveis que somente a voz imaterial que pronuncia ou a página que transcreve poderia aproximar. Somente a invenção criadora das idéias e dos pensamentos, pelas palavras, pode marcar e realizar o encontro destas coisas. Daí ele faz a indagação: Onde poderiam eles se justapor, senão no não-lugar da linguagem?. 

A palavra, marca da civilização, tem poderes mágicos. Ela transforma, ela cria, ela destrói. Quando proferida, carregada pelo hálito quente, ornada pela expressão e pelos gestos, faz marejar os olhos, iluminar os rostos, gerar a ira, convulsionar as faces, soltar a gargalhada. Ela pode dar asas à imaginação. Fazer chorar, sorrir, amar, odiar e sonhar sem amarras, mas, também, pode fazer enlouquecer. Cria vergonha, produz o escárnio e autoriza o flagelo.          

Quanto escrita, espreita, pela eternidade, os seus autores. Mesmo perdida no brônzeo tempo, azinhavrada, ela, nem por isto, perde o seu poder. Vagando, permanentemente, pelas dobras e esquinas, espera encontrar o autor-criador para, com seu bafo gélido ou abrasador calor, acusadora, cobrar: porque me renegaste?

Ela é multiforme. Ela pode ser doce ou ácida. Pode fazer sonhar acordado. Criar o pesadelo. Emocionar e mobilizar. Aterrorizar e paralisar.

Encontros impossíveis realizam-se através das palavras. Pode conviver a política com a ética, a honra, a moral e a honestidade? Poderá o impensado existir na concretude da vida e não só neste infindável mundo das palavras? As possibilidades humanas são infinitas.

Li, e recomendo, o excelente livro de Carlos Cirne-Lima, "Dialética para Principiantes". O brilhante autor, filósofo e professor da PUC, trata, entre importantes ensinamentos, da Linguagem e da Lógica: o homem fala por frases que, em nossa língua, se compõem sempre de sujeito e predicado, afirma.

Desenvolve, então, didaticamente, as relações para raciocinar. Passa pelo silogismo, por exemplo, que estabelece que duas proposições iniciais com premissas verdadeiras, resulta numa conclusão necessariamente verdadeira.

Trata do Princípio da Não-Contradição, de Aristóteles, onde um mesmo sujeito não pode ter predicado opostos, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto. Se isto ocorrer, um elimina o outro. Na parte referente à Ética, quando se refere a Kant, Cirne-Lima aponta a limitação da "descida" do Universal para o Particular. Que é a limitação do Imperativo Categórico através das Máximas da Razão para realizar-se como decisão dos indivíduos. É Kant quem afirma:

- Age sempre de tal maneira que a norma da tua ação possa ser elevada ao estatuto de uma lei universal.

Pretendo que estas questões sejam referências para a insistente pergunta: a palavra pode ter vida? A palavra política pode conviver com a ética para além da linguagem? Cirne-Lima ensina que o princípio universal kantiano é vazio e as respostas dadas não esclarecem totalmente o problema da passagem legítima (do Universal) para o Particular, como fizeram Apel e Habermas com o princípio do Discurso. Nesta solução, os membros da roda do discurso procuram universalizar o seu interesse particular, concreto. Se isto acontece, é ético. Senão, não é ético. Cirne-Lima não adota esta solução.

Para ele, o Individual e o Particular são apenas recortes que se faz dentro do Universal. E mais: a Lei é, no Universal Concreto da Sociedade, o que o Costume era na Família, o que a eticidade da ação boa é no Indivíduo. O Estado é apenas a outra face, a face universal, da própria Ética. E conclui:

- Por isso a Política tem que ser Ética. Por isso a Ética, ao desenvolver-se e concretizar-se em sua exterioridade, fica Política. Sem rupturas e sem mistérios.

É justo sublinhar que o excelente livro não se resume ao que exponho e nem traduzo com precisão as opiniões do autor, a quem peço, antecipadamente, desculpas. Mesmo correndo este risco, para a finalidade deste texto considerei importante me socorrer das principais impressões que recolhi deste ilustre professor.  Acho que estas reflexões podem ajudar, mesmo que por inferência, a elucidar o mundo abstrato das palavras - e o de desejo de alguns - que teimam em juntar política e ética, política e honestidade, porque elas não encontram vida no mundo real. Este encontro, nos gestos concretos, é um desafio e um dos dilemas fundamentais das relações humanas.

Porto Alegre, 12 de março de 2002.

 

* Engenheiro, Vereador e Líder da Bancada do PT e do Governo na Câmara Municipal de Porto Alegre. Foi Secretário Municipal de Obras e Viação de Porto Alegre de 1993 a 2000.