O papel do dicionário na formação da identidade dos sujeitos
alunos[1]
Jailton
Lopes Vicente[2]
Este estudo tem por objetivo
analisar os significados dos termos “aluno” e “cidadão”, em dicionários de
Língua Portuguesa, observando como esses significados se historicizam, ou seja,
procurando compreender de que forma esses significados cristalizam-se e
tornam-se elementos constituintes e constitutivos do imaginário (da identidade)
do sujeito-aluno e dos que fazem uso de dicionários, ou ainda, como se dá o
funcionamento dos dicionários no processo de identificação do sujeito-aluno.
Utilizamos como referencial teórico para análise e
interpretação dos dados a Análise de Discurso (AD) de linha francesa,
baseando-nos, principalmente, nos trabalhos de Michel Pêcheux e de Eni
Puccinelli Orlandi.
Uma das afirmações mais comuns
é a de que nos dicionários encontra-se a língua em “estado puro”, ou seja,
livre de toda e qualquer determinação. Dessa forma, os mecanismos ideológicos,
fundamentais para a produção de sentidos, não deixariam marcas nas palavras
dicionarizadas.
Entretanto, não há, na
perspectiva discursiva, uma linguagem última, fora dos mecanismos de produção
de sentidos, pois não há linguagem fora da ideologia. Então, não existe a
língua em “estado puro”, mas, contrariamente, haverá sempre ideologia, uma
história que atravessa todo e qualquer dizer, tornando-o filiado a essa ou
àquela formação discursiva.
Mariza Vieira da Silva (1996),
ajuda-me a encaminhar essa reflexão quando diz que:
“O dicionário enquanto lugar da completude, da certeza, da
exaustividade, do dizível, que pretende dizer algo de tudo e tudo de cada algo,
que pressupõe uma relação termo-a-termo entre linguagem-mundo e naturaliza a
relação palavra-coisa, pareceu-me um lugar discursivo importante em uma
sociedade letrada, como a nossa...” (:153)
Interessante
notar que o mecanismo de significação do e no dicionário trabalha na perspectiva
do esquecimento, da negação. Ou seja, é ideológico, como toda produção de
sentido e, ao mesmo tempo, esse trabalho de construção é apagado, como se os
significados das palavras fossem sempre aqueles encontrados nos verbetes.
E isso é eficiente,
isto é, por ser bem articulado: o processo de negação do trabalho ideológico na
constituição do dicionário produz sentidos e configura um discurso consistente,
mas, como todo dizer, passível de análise e de apreensão dos mecanismos que
atuam na constituição dos sentidos.
Logo, o
dicionário assume uma posição discursiva e apresenta-se praticamente como uma
instituição ou, ao menos, com suas características básicas. As instituições
mostram-se como “lugares” a partir dos quais sujeitos “autorizados” produzem
determinados significados. Na Escola, o professor; na Igreja, o padre; na
Família, o pai. Em todas as instituições, os “escolhidos” para a produção de
sentidos falam em nome de uma voz maior que lhes concedeu este poder. Então, o
padre fala em nome de Deus, pois este assim o quis; o professor é o que sabe e
é elo principal entre o aluno e o conhecimento. O dicionário fala em nome da
metalinguagem ou, em outras palavras, sua linguagem é “a” linguagem.
Nesse espaço, o processo de
identificação dos sujeitos assume uma condição específica porque há um efeito
ideológico nessa interação entre os “autorizados” a interpretar e os
“outros" que, por estarem em uma posição (discursiva) hierarquicamente
inferior, são mais suscetíveis de sofrerem influências destes do que ao
contrário. Ou seja, o discurso do padre (já que faz falar a voz de Deus) tem
seus sentidos validados perante a sociedade e seus fiéis; assim como a fala do
professor é autorizada em detrimento do dizer do aluno. O dicionário tem,
conseqüentemente, um dizer autorizado, no qual os significados dos verbetes são
tidos como “naturais”, “corretos”.
As palavras
significam de acordo com a formação discursiva a que o sujeito está filiado. Os
alunos, em contato constante com o dicionário, têm seu discurso filiado tanto à
fala do professor, quanto à fala dos livros didáticos, das gramáticas, dos
dicionários. Por este motivo, a escolha dos verbetes “aluno” e “cidadão”. O
primeiro relaciona-se à definição do sujeito-aluno no ambiente escolar: um tipo
de aluno específico, com uma visão de mundo específica. O segundo verbete está
relacionado ao aluno fora do contexto da escola, que o preparou para ser um
cidadão pleno. Não nos prenderemos apenas aos dois verbetes, mas, de forma
ampla, procuraremos explicitar a rede de sentidos criada dentro do dicionário,
de acordo com o seu funcionamento, através da referência a outros verbetes.
Segundo o
“Minidicionário Melhoramentos”
(1997):
a.lu.no
sm 1 Que recebe instrução ou educação em escola. 2 Aprendiz, discípulo, educando.
A primeira
parte da definição é o que efetivamente nos interessa: “Que recebe instrução ou educação em escola”. Então, se recebe é
porque não tem e/ou precisa receber. Outro aspecto é o fato de que só é um aluno
quem estiver na escola, ambiente físico. É uma relação semelhante a que se
percebe em todas as instituições. O fiel só chega a Deus se, necessariamente,
estiver na Igreja (e não em qualquer uma), bem como o aluno só chega ao
conhecimento ou o valida pela via da escola, mecanismo das sociedades letradas
para legitimar discursos.
O “Aurélio: o
minidicionário da língua portuguesa” (2000) traz a seguinte definição:
a.lu.no sm. Aquele
que recebe instrução e/ou educação de mestre(s), em estabelecimento de ensino
ou particularmente; estudante.
É
interessante perceber nessa definição, que há uma maior abertura com relação ao
espaço físico onde o aluno “recebe instrução”. Entretanto, a questão da
passagem pelo professor mostra-se presente, pois é preciso um sujeito
“autorizado” a interpretar.
O aluno é,
então, aquele que recebe “instrução”. Ora, não se trata de qualquer instrução,
mas de um conceito ligado, como toda e qualquer produção de sentidos, a uma
formação discursiva. Dessa forma, o “Minidicionário Melhoramentos” diz:
ins.tru.ção sf 1 Educação. 2 Ensino, lição, preceito instrutivo. 3 Explicação,
esclarecimentos.
a
A primeira referência é à palavra
“Educação”. Vejamos o significado desse verbete nos dicionários utilizados
neste estudo:
a)“Aurélio” (2000):
e.du.ca.ção sf.
1. Ato ou efeito de educar(-se). 2. Processo de desenvolvimento da capacidade
física, intelectual e moral do ser humano. 3. Civilidade, polidez. [Pl.:
-ções.] § e.du.ca.ci:o.nal adj2g.
b) “Melhoramentos” (1997):
e.du.ca.ção sf
1 Desenvolvimento das faculdades físicas, morais e intelectuais do ser humano.
2 Arte de ensinar e adestrar animais. 3 Ensino.
c) “Moderníssimo Dicionário Brasileiro”:
Educação,
s. f. Ação exercida pelas gerações adultas sobre as gerações jovens para
adaptá-las à vida social; trabalho sistemático, seletivo e orientador, pelo
qual nos ajustamos à vida, de acordo com as necessidades, ideais e propósitos
dominantes; ato ou efeito de educar; aperfeiçoamento integral de todas as
faculdades humanas; polidez; cortesia.
A definição do “Moderníssimo
Dicionário Brasileiro” é a que mais chama a atenção. Primeiramente, “educação”
é, segundo esse dicionário, uma “ação exercida pelas gerações adultas sobre as
gerações jovens para adaptá-las à vida social”. A educação vista desta forma,
passa a ser uma via de “mão única”, pois uns estão determinados para ensinar
outros.
Além disso, as “gerações jovens”
precisam ser adaptadas à vida social. Segundo este mesmo dicionário, “adaptar”,
significa:
Adaptar, v. t.-rel. Ajustar uma coisa à outra; amoldar; apropriar; p.
acomodar-se; ajustar-se.
Se adaptar é “ajustar uma coisa à
outra”, logo, é adequar os alunos (“as gerações jovens”) a uma realidade específica,
é torná-los alunos específicos. Por isso, dissemos anteriormente que se a
Educação for vista conforme está no “Moderníssimo Dicionário Brasileiro”
transformar-se-á em uma via de mão única, a partir da qual o imaginário,
conseqüentemente, a própria identidade dos sujeitos alunos será levada em uma
direção específica.
Nesse processo de identificação do
aluno através de seu contato com dicionários, existem duas esferas ligadas
entre si. A primeira, mostrada até o momento, é a que se relaciona à formação
do aluno propriamente dito. A outra é aquela relacionada ao conceito de cidadão, pois, constantemente, os
Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN (1999) afirmam que não devem ser
formados apenas alunos, mas cidadãos plenos. Entretanto, não é, como vimos,
qualquer tipo de aluno nem tampouco qualquer tipo de cidadão, mas,
contrariamente, este é um processo que faz parte do jogo histórico/discursivo
do qual todos os sujeitos, necessariamente, participam para que haja produção
de sentidos.
Vejamos, então, o que os
dicionários dizem sobre o verbete “cidadão”.
a)
“Melhoramentos”
(1997):
ci.da.dão sm 1 Habitante de uma cidade. 2 Indivíduo com direitos civis e
políticos. 3 Pop. Indivíduo, sujeito. Fem.: cidadã. pl: cidadãos.
b)
“Aurélio”
(2000):
ci.da.dão sm. 1. Indivíduo no gozo dos direitos civis e políticos de um
Estado. 2. Pop. Indivíduo, sujeito. [Fem.: cidadã, cidadoa. Pl.:
-dãos .]
c)
“Moderníssimo
Dicionário Brasileiro”:
Cidadão, s. m. Habitante da cidade; indivíduo no gozo dos direitos civis e
políticos de um Estado. (Fem.: cidadã e cidadoa; pl.:
cidadãos.)
As definições dos três dicionários
são muito parecidas, inclusive em suas respectivas estruturas. Nesse aspecto,
um ponto é fundamental para a análise: há nos três dicionários a separação do
significado de “cidadão” em duas partes distintas. Uma das partes do
significado diz que “cidadão” é um “habitante
da cidade, um indivíduo, um sujeito”. A outra parte diz que “cidadão” é um “indivíduo no gozo dos direitos civis e
políticos de um Estado”.
O fato em questão é que não está
se falando do mesmo cidadão, e, ao contrário, os três dicionários, sem exceção,
põem uma linha divisória entre esses “cidadãos”. Para alguns, só é cidadão
aquele que exerce, de fato, seus direitos civis e políticos. Para outros, basta
o fato de morarem em uma cidade, basta ser (e todos assim o são) um indivíduo
qualquer. Vistos dessa forma, os cidadãos são classificados em categorias
distintas.
Antes, contudo, de prosseguirmos
com a análise, faz-se necessário a análise do significado da palavra “direito”,
um ponto crucial dessa análise, pois é nesta palavra – ou nos seus sentidos –
que está o marco que delimita os dois “cidadãos” de que falamos anteriormente.
a)
“Melhoramentos”
(1997):
di.rei.to1 adj 1 Que segue em linha reta. 2 Que não é curvo. 3 Plano, liso. 4
Correto, íntegro. 5 Justo, razoável, legítimo. 6 Diz-se do lado do corpo humano
no qual os músculos são mais ágeis e fortes; destro.
di.rei.to2
sm 1 O que é justo e conforme com a lei e a justiça. 2
Faculdade legal de praticar ou não um ato. 3 Dir. Ciência das normas que
disciplinam as relações dos homens numa sociedade. 4 O lado principal de um
tecido. adv Em linha reta, sem desvio.
b)
“Aurélio”
(2000):
di.rei.to adj. 1. Pertencente a lado do corpo humano em que a ação muscular
é, no tipo normal, mas forte e mais ágil; destro. 2. Correspondente a esse lado
para um observador colocado em frente. 3 Diz-se do lado dos rios que fica à
direita do observador que olha a parte para onde as águas descem. 4. V. direto
(1). 5. Reto (1). 6. Ereto. 7. Íntegro, honrado. 8. Leal, sincero. sm. 9. O que
é justo, conforme à lei. 10. Faculdade legal de praticar ou não praticar um
ato. 11. Prerrogativa que alguém tem de exigir de outrem, em seu proveito, a
prática ou a abstenção de algum ato. 12. O conjunto das normas jurídicas
vigentes num país. 13. Imposto alfandegário. 14. O lado principal, ou mais
perfeito, dum objeto, tecido, etc. (em oposição ao avesso). adv 15. Em linha
reta; direto.
c)
“Moderníssimo
Dicionário Brasileiro”:
Direito, adj. Do lado ou pertencente ao lado do corpo humano no qual a
ação muscular é, no tipo normal, mais forte e mais ágil; que corresponde a esse
lado para um observador colocado em frente: ala direita de um edifício; nos rios, diz-se do lado que fica à mão direita do observador que olha
a parte para onde as águas descem; reto; plano; aprumado; íntegro; virtuoso;
acertado; justo; leal; franco; sincero; (V. Moagem, Médio, Pá e Primo);
s.m. o que é justo, reto e conforme à
lei; faculdade legal de praticar ou deixar de praticar um ato; prerrogativa que
alguém tem de exigir de outrem a prática ou abstenção de certos atos, ou o
respeito a situações que lhe aproveitam; ciência das normas obrigatórias que
disciplinam as relações dos homens em sociedade; jurisprudência; regalia;
tributo; o lado principal, ou mais perfeito, de um tecido (em oposição ao
avesso); anverso; (Bras.) murro ou golpe
do braço direito, no jogo do boxe; – adjetivo: conjunto de leis que estabelecem a forma pela qual se devem fazer
valer os direitos; conjunto de leis reguladoras dos atos judiciários.
A dicotomia na definição de
cidadão mostra-se, aqui, mais evidente. Conforme foi mostrado, há duas formas
de “tornar-se” um cidadão. Na primeira delas, basta habitar uma cidade, na
outra, é preciso que os direitos políticos e civis do indivíduo sejam
exercidos. Segundo estes mesmos dicionários, os que andam “direito” ou “no
direito”, recebem atributos tais como: “justo”, “reto”, “íntegro”, “honrado”, e,
conforme a lei, “legítimo”. Se estes possuem as características mostradas, os
que não têm seus direitos exercidos são, conseqüentemente, o oposto disso. Isso
aponta para uma especificidade na constituição do sujeito de direito no Brasil.
Ao longo de sua história os
sujeitos são filiados a determinadas formações discursivas. A conseqüência
disso é que seu discurso assume certos sentidos e não outros e, de forma ampla,
os outros discursos assumem sentidos igualmente particulares, característicos
daquela filiação ideológica a partir da qual o sujeito produz e atribui
sentidos.
Então, o dicionário, bem como a
escola, tem um papel importante nesse processo de filiação, sobretudo, no
período de alfabetização. Entretanto, é preciso destacar que, discursivamente
falando, isso não é um “mal”, mas faz parte do funcionamento discursivo (e de
fato funciona) de dicionários, do discurso pedagógico, isto é, o discurso da
escola, de uma formação social historicamente determinada, a brasileira. Nessa
perspectiva, não se pode falar em dominadores e dominados. Não estão de um lado
dicionários e a escola tentando “dominar” alunos e, de outro lado, alunos sendo
“dominados”. Essas relações são bem mais complexas e, na verdade, são discursos
que se cruzam, que estão, embora pareçam díspares, muito mais próximos um do
outro e fazem parte do jogo histórico tanto dos sujeitos quanto dos sentidos,
ou seja, essas relações não são resultado do acaso, mas resultam de outras
relações tecidas na e pela ordem econômica e social: aquelas estabelecidas
entre os sujeitos. Daí dizer que o discurso é parte do funcionamento geral da
sociedade.
Portanto, espera-se que a discussão acerca deste tema possa
ampliar-se, pois a dessacralização dos dicionários é o primeiro passo para que
as mudanças possam acontecer. Vê-los não como um objeto intocável, mas como
linguagem, sujeito a falhas, a equívocos e que possui uma tradição histórica e
política, percebendo que o dicionário é um tipo de conhecimento produzido por
pessoas em um período específico, sob condições específicas.
Bibliografia
BRASIL. Ministério da Educação
(1999). Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio. Volume 1. Brasília:
Secretaria de Educação Média e Tecnológica.
FERREIRA, Aurélio Buarque de
Holanda. (2000) Miniaurélio Século XXI: O
minidicionário da língua portuguesa, 4ª ed. rev. ampliada, Rio de Janeiro:
Nova Fronteira.
LEROY, Maurice. (1967) As grandes correntes da Lingüística moderna.
Trad. Izidoro Blinkstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix.
MELHORAMENTOS Minidicionário da língua portuguesa. São Paulo: Companhia
Melhoramentos, 1997.
ORLANDI, Eni Puccinelli. (1983) A linguagem e seu funcionamento: as formas
do discurso. São Paulo: Brasiliense.
_________. (1992) As formas do silêncio: no movimento dos sentidos.
Campinas, SP: Editora da UNICAMP.
_________. (1996) Interpretação: autoria, leitura e efeitos do
trabalho simbólico. Petrópolis, RJ: Vozes.
_________. (1999) Análise de discurso: princípios e
procedimentos. Campinas, SP: Pontes.
PÊCHEUX, Michel. (1988) Semântica e discurso: uma crítica à
afirmação do óbvio. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. Campinas, SP: Editora da
UNICAMP.
_________. (1991) O discurso: estrutura ou acontecimento.
Trad. Eni Puccinelli Orlandi. Campinas, SP: Pontes.
SILVA, Mariza Vieira da. (1996) O
dicionário e o processo de identificação do sujeito analfabeto. In: GUIMARÃES,
Eduardo e ORLANDI, E. P. (orgs.): Língua
e cidadania: o Português no Brasil. Campinas, SP: Pontes, 151 – 162.
SOARES, Armando. Moderníssimo Dicionário Brasileiro. São
Paulo: Angelotti.
VYGOSTKY,
Lev Semenovitch. (1998) Pensamento e
linguagem. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes.