O tempo em Carlos Drummond de Andrade: uma cruzada[1]
Jailton
Lopes Vicente[2]
Universidade Católica de Brasília
Neste
trabalho, serão analisados três poemas de Carlos Drummond de Andrade, nos quais
o foco principal estará voltado para um aspecto específico: o tempo.
O
primeiro poema é Passagem do ano do
livro “A rosa do povo”. Neste poema, a referência ao tempo se inicia no título.
Tanto nas palavras “passagem” e “ano”, quanto na idéia de tempo em movimento,
em progresso.
O último dia do ano
Não é o último dia
do tempo.
Outros dias virão
E novas coxas e
ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas,
rasgarás papéis, farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção,glória, doce morte com
sinfonia e coral,
que o tempo ficará
repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis
uivos
do lobo, na solidão.
O último dia do
tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma
franja de vida
onde se sentam dois
homens.
Um homem e seu
contrário,
uma mulher e seu
pé,
um corpo e sua
memória
um olho e seu
brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se
Deus...
Recebe com
simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver
mais um ano.
Desejarias viver
sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu
avô também.
Em ti mesmo muita
coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo.
Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.
O recurso de se
embriagar.
O recurso da dança
e do grito,
o recurso da bola
colorida, o recurso de Kant e da poesia,
todos eles... e
nenhum resolve.
Surge a manhã de um
novo ano.
As coisas estão
limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se
em espuma.
Todos os sentidos
alerta funcionam.
A boca está comendo
vida.
A boca está
entupida de vida.
a vida escorre da
boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda,
oleosa, mortal, sub-reptícia.
Há
uma verdadeira comoção e mobilização nas pessoas que, ao chegarem ao final de
um ano, ponderam a respeito do ano que se acaba e daquele que está prestes a
chegar. Esperanças, saudades, expectativas, desejos, entre outros sentimentos,
passam a dividir o mesmo espaço na mente e nos corações das pessoas neste
período. Nos primeiros versos, o poeta assume uma postura otimista: “O último dia do ano / não é o último dia do
tempo. / Outros dias virão / e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da
vida”. Há uma perspectiva para o futuro, pois o ano acabou, não o tempo.
Na primeira estrofe, duas
idéias antagônicas se chocam: vida/morte; solidão/ celebração,
formatura/glória. Este aspecto é evidenciado pela idéia de passagem do tempo
como elemento central na renovação das esperanças e também como “protagonista”
nas festas de fim de ano, fazendo com que os fatos da vida sejam esquecidos
(vida, morte, solidão, celebração), ficando apenas o tempo, repleto, surdo.
A idéia de passagem de
tempo é evidenciada pelos tempos verbais. Neste poema, os versos perambulam
entre passado, presente e futuro sem se fixarem em nenhum deles. Esta é uma
característica marcante nos finais de ano, nos quais as pessoas relembram o que
passou, e clamam, no presente, por um futuro melhor. Alguns versos do poema
mostram estes percursos do poeta. Indicando o passado temos: “Teu pai morreu, teu avô também. / Em ti
mesmo muita coisa já expirou”; indicando o presente: “O último dia do tempo / não é o último dia de tudo”; e, indicando
o futuro: “Beijarás bocas, rasgarás
papéis, / farás viagens”.
De uma maneira otimista, o
poeta descreve a vida na última estrofe: “ela
continua apesar de tantas questões”. E, mais uma vez, o tempo torna-se o
ponto central. Todo o ciclo da vida se retoma e novamente um ano cronológico se
inicia e a vida continua, conforme diz o último verso, “gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia”.
Em oposição à euforia das
festas de fim de ano, temos o poema Os
ombros suportam o mundo, do livro “Sentimento do mundo”.
Chega um tempo em
que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta
depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor
resultou inútil.
E os olhos não
choram.
E as mãos tecem
apenas o rude trabalho.
E o coração está
seco.
Em vão mulheres batem
à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a
luz apagou-se,
mas na sombra teus
olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já
não sabes sofrer.
E nada espera
esperas de teus amigos.
Pouco importa venha
a velhice, que é a velhice?
Teus ombros
suportam o mundo
e ele não pesa mais
que a mão de uma criança.
As guerras, as
fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a
vida prossegue
e nem todos se
libertaram ainda.
Alguns, achando
bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os
delicados) morrer.
Chegou um tempo em
que não adianta morrer.
Chegou um tempo em
que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem
mistificação.
Neste
poema, o tempo aparece sob três perspectivas: um tempo passado, que conduz à
completa falta de perspectiva; um tempo presente, no qual há a reflexão sobre o
que se passou; e, finalmente, uma referência ao futuro, sob a ótica da falta de
esperança e de desconfiança.
A
primeira estrofe dá o tom do poema e aponta para os três tempos mencionados
anteriormente: “Chega um tempo em que não
se diz mais: meu Deus. / Tempo de absoluta depuração. / Tempo em que não se diz
mais: meu amor. / Porque o amor resultou inútil. / E os olhos não choram. / E
as mãos tecem apenas o rude trabalho. E o coração está seco.”. Estes versos
permitem afirmar que houve uma série de fatos (passados) que levaram a este
estágio, que faz do futuro algo quase impossível, na medida em que os corações
se embruteceram, que o amor não deu em nada.
Há,
nessa mistura dos tempos, um ponto fundamental: o contexto da época, a 2ª Guerra
Mundial. Este período é interpretado, ou melhor, fotografado com precisão
cirúrgica por Drummond. O mundo, segundo esta perspectiva, é praticamente uma
causa perdida. A falta de esperança é marcada pelo verso que diz: “E o coração está seco”.
O
futuro, neste poema, é sempre um tempo que virá, não de forma amena, mas,
contrariamente, é percebido como áspero, em virtude, obviamente, do passado e
do presente, como no trecho: “Ficaste
sozinho, a luz apagou-se, / mas na sombra teus olhos resplandecem enormes”.
O
interessante na estrutura do poema é que os verbos das duas primeiras estrofes
estão no presente, ou seja, trata-se do olhar de hoje acerca do que se passou.
A
última estrofe inicia-se com um desafio ao futuro: “Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?”. Neste ponto, a
estrutura verbal começa a mudar de configuração, como se pode perceber no
trecho que diz: “As guerras, a fome, as
discussões dentro dos edifícios / provam apenas que a vida prossegue / e nem
todos se libertaram ainda”. O futuro, que outrora era visto como
infrutífero, do ponto de vista das relações, torna-se, enfim, presente e tudo o
que o poeta imaginava para o futuro confirmou-se: as pessoas, de fato,
embruteceram-se.
Em
função disso, o olhar é todo voltado para o presente, embora os versos estejam
no passado: “Chegou um tempo em que não
adianta morrer. / Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.”. Confirma-se
então, o primeiro verso: “Chega um tempo
em que não se diz mais: meu Deus”. O ponto central desta retomada do mote
do poema, isto é, a vida sem mistificação, é que os problemas humanos, segundo
a perspectiva apresentada no poema, devem ser resolvidos pelos homens, sem a
interferência de nada que seja sobrenatural.
Esta
recusa ao divino tem uma profunda relação com a temática do tempo. Deus está
fora do tempo, logo, não poderia interferir, segundo o poema, na vida dos que
vivem sob o julgo do tempo. Por isso, o poema encerra-se com “A vida apenas, sem mistificação”,
mostrando que os problemas surgem na vida, no tempo e não se pode “apelar” para
aquilo que está fora da vida, do tempo.
A
palavra “apenas”, principalmente, mostra que a vida tem de ser vivida. Não há,
segundo Drummond, soluções místicas para problemas reais, concretos. A atenção
do poeta volta-se para as questões simples, do dia-a-dia. Há uma canção de
Belchior, chamada Alucinação que
aborda temática semelhante. Diz a canção: “Eu
não estou interessado em nenhuma teoria, em nenhum fantasia, nem no algo mais. [...]
Minha alucinação é suportar o dia-a-dia, o meu delírio é a experiência com
coisas reais.”
Isto
mostra que a poesia é temporal, na medida em que sua fonte é também o
dia-a-dia, são as “coisas reais”. A noção de temporalidade da poesia não está,
obviamente, relacionada ao “prazo de validade” do poema, mas, de uma forma
complexa, está ligada ao fato de que não surge do nada, de uma inspiração
misteriosa. A poesia é, antes de tudo, percepção da vida se movimentando no rio
do tempo.
Outro
poema emblemático na temática do tempo é Lembrança
do mundo antigo, também do livro “Sentimento do mundo”.
Clara passeava no
jardim com as crianças.
O céu era verde
sobre o gramado,
a água era dourada
sob as pontes,
outros elementos
eram azuis, róseos, alaranjados,
o guarda-civil
sorria, passavam bicicletas,
a menina pisou a
relva para pegar um pássaro,
o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era tranqüilo em
redor de Clara.
As crianças olhavam
para o céu: não era proibido.
A boca, o nariz, os
olhos estavam abertos. Não havia perigo.
Os perigos que
Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos.
Clara tinha medo de
perder o bonde das 11 horas,
esperava cartas que
custavam a chegar,
nem sempre podia usar vestido novo. Mas passeava no jardim,
pela manhã!!!
Havia jardins,
havia manhãs naquele tempo!!!
O
título do poema já denuncia “seu tempo”: o passado é visto a partir de uma
perspectiva nostálgica. São as lembranças de um tempo que não existe mais.
A
história de Clara, personagem do poema, é toda voltada para o passado, mas está,
nitidamente, localizada no presente, pois há verbos no pretérito perfeito, ou
seja, as ações estão plenamente encerradas em relação ao momento da enunciação:
o presente. Isto dá a idéia de que “antes era assim e hoje não é mais”, como no
seguinte trecho: “o guarda-civil sorria,
passavam bicicletas, / [...] o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo
era tranqüilo em redor de Clara”.
O
poema mostra o processo pelo qual o mundo atravessou para chegar ao estágio em
que se encontrava no momento em que Drummond escreveu o poema, em plena 2ª
Guerra Mundial, evidenciado pelo seguinte trecho: “As crianças olhavam para o céu: não era proibido. / A boca, o nariz,
os olhos estavam abertos. Não havia perigo.”. A referência ao fato de que
antes as pessoas podiam olhar para o céu é uma referência às bombas, à guerra.
Dois
momentos contrapostos dão a idéia de movimentação temporal. O primeiro
refere-se aos perigos que Clara temia: “Os
perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos. / Clara tinha medo
de perder o bonde das 11 horas, / esperava cartas que custavam a chegar, / nem
sempre podia usar vestido novo. / Mas passeava no jardim, pela manhã!!!”.
Este trecho mostra que a vida era tranqüila antes da guerra, pois os verbos
estão no passado, ou seja, os medos foram estes e hoje são outros, mais graves
do que os mencionados no poema.
O
segundo momento, decretando que definitivamente o tempo mudara, é evidenciado
no verso final: “Havia jardim, havia
manhãs naquele tempo!!!”. Neste momento, os jardins e as manhãs já foram
totalmente destruídos e resta ao poeta constatar esta triste realidade. Assim,
o presente em que Clara viveu está totalmente no passado e não há mais volta; o
futuro é sem jardins e sem manhãs, logo, sem perspectivas.
Seria
impossível analisar aqui todos os poemas em que esta temática está presente. No
entanto, o tempo está presente em todos os poemas de Drummond, na medida em que
o tema primeiro do poeta é a vida e não existe vida sem homens que, por sua
vez, só existem em um tempo. Logo, toda a obra de Drummond discute de alguma
forma a questão do tempo, sua passagem e as conseqüências advindas deste fato.
Este
trabalho procurou dar ênfase ao fato de que o tempo não é visto por Drummond (e
pelos modernistas de um modo geral) como algo linear, mas é percebido na
perspectiva do (entre-)cruzamento, não havendo, portanto, a possibilidade de se
ter passado, presente e futuro apartados uns dos outros.
Bibliografia
SANT’ANNA, Afonso Romano de. “Carlos
Drummond de Andrade: análise da obra”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1980.
ANDRADE, Carlos Drummond de.
“Obra Completa”. Rio de Janeiro: Aguilar Editora, 1967.
[1] Texto apresentado no “II Encontro Marcado com Escritores
Brasileiros: 100 anos de Drummond”, na Universidade Católica de Brasília,
promovido pelo Curso de Letras e pela Comissão Nacional Organizadora do
Centenário de Drummond, de 27 a 29 de maio de 2002.
[2] Graduando em Letras e bolsista de Iniciação Científica da
UCB no projeto “O Português do Brasil”.