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Grupo de Pesquisa Ética e Justiça

A Herança da Filosofia da História de Immanuel Kant na Concepção de Direitos Humanos de Norberto Bobbio

Marcelo Aversa (Bacharel em Direito, especialista em Direito Constitucional pela PUCCamp e mestrando em filosofia pela PUCCamp).

© - PROIBIDA PUBLICAÇÃO SEM CONSENTIMENTO DO AUTOR - ©

RESUMO

O problema dos direitos do homem para a filosofia do direito é retomado após a II Grande Guerra com a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 10 de dezembro de 1948. Norberto Bobbio tratou este problema sob duas perspectivas: uma histórica e empírica e outra filosófica e teórica. Por isso, o jusfilósofo desenvolveu o processo histórico de conquista dos direitos do homem, segundo a perspectiva de uma história universal de bases kantianas. Para Kant, a lei moral é o motor da progressividade histórica: o dever moral de agir segundo uma máxima universal é o que faz o homem sair do estado de natureza para se organizar numa sociedade regida por uma constituição política perfeita, e desta, para uma organização cosmopolita que é a realização da paz perpétua. Já Bobbio, apesar de não ter como foco as condições do agir moral, assume o pressuposto de que há no gênero humano uma disposição para o progresso, porque a história é prova empírica deste desenvolvimento. Isto porque Bobbio compreendeu que os direitos humanos são conquistas históricas que representam signos de uma história universal.

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ABSTRACT

To the philosophy of law, the problem of human rights is recovered after the Second World War with the Universal Declaration of Human Rights, by 10 of december of 1948. Norberto Bobbio grasped this problem under the two perspectives: one in the historical and empirical way and another in philosophical and theoretical way. Terefore, te law philosopher developed the historical process of human rights conquist toward universal history perspectiv,which it is based on Kant’s philosophy of history. For Kant, the moral law is mobile of historical progressivity: ought of acting according to the universal maxim is that makes the man exiting from the nature state to the autonomous organization in society which is reguled by a perfect political constitution, and from this organization to the cosmopolitan one, that is the realization of a continually improve until the perpetual pace. Yet Bobbio, in despite of Bobbio’s aim does not focus to the conditions of moral act, he undertaked the mankind as owner of disposition to the progress, because the history is empirical prove of this improvement. That is the why Bobbio understood the human rights conquist as historical signs of universal history.

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CONVENÇÕES

As obras de Norberto Bobbio, relacionadas na Bibliografia, são referenciadas levando-se em conta a abreviaturas que se seguem:

- CTD - Contribuición a la Teoria del Derecho;

- Direito – verbete “Direito” in Dicionário de Politica;

- ED - A Era dos Direitos;

- FD - Futuro da Democracia - Uma defesa das regras do jogo;

- LD - Liberalismo e Democracia;

- PJ - O Positivismo Jurídico - Lições de Filosofia do direito;

- PKant - Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant.

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SUMÁRIO

1. Apresentação
2. Introdução
3. Historicidade dos Direitos do homem
3.1. Universalização dos Direitos do homem
3.1.1. Multiplicação dos Direitos do homem
3.1.2. Internacionalização dos Direitos do homem
4. O Progresso Histórico dos Direitos do homem
4.1. Idéia de Liberdade
4.2. Filosofia da História (“Weltgeshichte”)
4.3. O Papel das Idéias Reguladoras na Filosofia Política de Norberto Bobbio
5. Conclusão
6. Bibliografia
7. Notas

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1. Apresentação

O objetivo deste trabalho é identificar A Herança da Filosofia da História de Immanuel Kant na Concepção de Direitos Humanos de Norberto Bobbio. Por isso, ele se enquadra no eixo temático “Kant no contexto da filosofia contemporânea” do X Congresso Kant Internacional que tem por tema central “Direito e Paz na Filosofia de Kant”.

Este trabalho é uma reelaboração da iniciação científica apresentada ao Conselho de Ensino e Pesquisa da Pontíficia Universidade Católica de São Paulo em 1997, A Filosofia da História de Immanuel Kant em Norberto Bobbio.

2. Introdução

Um trabalho sobre o filósofo do direito Norberto Bobbio não só se impõe a dificuldade de sistematização da riqueza e profundidade dos escritos deste jusfilósofo, mas também a de percorrer extensa bibliografia que perpassa temas da filosofia, da política, da sociologia e do direito. Alfonso Ruiz-Miguel, em seu trabalho Filosofia y Derecho en Norberto Bobbio, possivelmente o único comentador que ousou percorrer toda a bibliografia de Bobbio, escrita entre os anos de 1934 e 1982, assegura que foi pretensioso em ter pensado que podia “encajar sinfónicamente todos los elementos [da obra de Bobbio] para abrir el exclusivo estudio de filosofía jurídica y hacer latir a una personalidade en todas sus manifestaciones” (1983: 16). Neste trabalho, o comentador encontrou vários Bobbios: o teórico e o filósofo da política, o teorizador da cultura e do papel dos intelectuais, o historiador da idéias ou mesmo o filósofo da história (1983: 16).

Bobbio percorreu diversas matrizes do conhecimento: iniciou pela filosofia na década de 1930; entre 1940 e 1960, concentrou-se na filosofia do direito; e, após a década de 1960, voltou-se para a filosofia política. Os primeiros passos na filosofia já são marcas da diversidade cultural da produção intelecutal do jusfilósofo. Bobbio se iniciou com o idealismo italiano, passando pela fenomenologia e marxismo, como perspecitva crítica ao positivismo. Com o pós-guerra, Bobbio se filia ao movimento neoiluminista italiano, pelo qual “lo uso de la razón había de cumplir un papel de humanización, un papel práctico en la renovación cultural, política y social de la Italia de la época” ( Ruiz-Miguel, 1983: 53). Dentro desse movimento, os escritos de Bobbio voltaram-se ao estudos de problemas concretos de teoria do direito e da política (Ruiz-Miguel, 1983: 52). Saliente-se que esses estudos marcaram os limites de sua adesão às correntes empiristas e analíticas. No tocante a filosofia analítica, de um lado, aceitava a cientificidade de um discurso baseado no rigor de sua linguagem, a partir da coerência interna dos enunciados (ver CTD(1) pp. 173-200)(2), mas, de outro lado, criticava a falta de perspectiva histórica desta filosofia. Esta mesma crítica, Bobbio dirigiu à filosofia empirista. Para Ruiz-Miguel, “Bobbio ha venido a diferenciar ambas cuestiones [convencionalismo e verificacionismo] a partir de 1959, manteniendo a la vez una concepción nominalista del lenguaje frente a la convencionalista” (1983: 63). Nas próprias palavras de Bobbio:

metodologicamente, el problema del concepto del Derecho es ante todo un problema lingüístico o de análisis del lenguaje, consistente en estalecer qué uso se quiere hacer del término; y en segundo lugar, un problema factual o de análisis empírica, consistente en fijar los elementos comunes o característicos de aquellos acontecimientos a los que se há convenido referir el término ‘Derecho’. En cuanto investigación lingüística no es investigación de esencias; en cuanto investigación empírica no es deducción de categorías primordiales, según la ilusión simpre renaciente de la filosofia especulativa (Ruiz Miguel, 1983: 64, publicado no verbete “Diritto”, in Novissimo Digesto Italiano, vol. V, Torino: UTET, 1960, pp. 419-424).

Assim, é necessário apresentar um quadro geral da obra de Bobbio, para que se possa apontar ao leitor o sentido d’A Herança da Filosofia da História de Immanuel Kant em sua Concepção de Direitos Humanos dentro do contexto da produção intelecutal do jusfilósofo. Para tanto, a própria noção de filosofia do direito, que possui três áres de estudos, é suficiente para apresentar este quadro geral: Teoria do Direito; Teoria da Ciência do Direito; e, Teoria da Justiça (CTD, p. 98).

A Teoria do Direito tem como problema fundamental a determinação do conceito de direito. Trata-se de uma ontologia jurídica que estuda o ser do Direito para compreender o sentido totalizador do Direito no mundo, na realidade humana e social. Portanto, como totalização e compreensão dos resultados da Ciência Jurídica, Sociologia Jurídica, História do Direito, etc. (Diaz, 1983: 267). Importante salientar que um jusfilósofo, ao conceituar direito, estará articulando um sistema de elementos: norma, ordenamento, poder, força, Estado, etc.

Bobbio, no Dicionário de Política, apresenta o conceito de direito como ordenamento normativo coativo que fundamenta o monopólio coercitivo do poder estatal:

“Entre múltiplos significados da palavra Direito, o mais estritamente ligado à teoria do Estado ou da política é o do Direito como ordenamento normativo. Esse significado ocorre em expressões como ‘Direito positivo italiano’ e abrange o conjunto de normas de conduta e de organização, constituindo uma unidade e tendo por conteúdo a regulamentação das relações fundamentais para a convinvência e sobrevivência do grupo social, tais como as relações familirares, as relações econômicas, as relações superiores de poder, também chamandas de relações políticas, e ainda a regulamentação dos modos e das formas através das quais o grupo social reage à violação das normas de primeiro grau ou a institucionalização da sanção” (Direito, p. 349)

Estabelecento a convergência entre este conceito e o poder estatal na filosofia moderna, Bobbio, na seqüência, complementa:

“a superposição, característica das teorias políticas e jurídicas que acompanham a formação do Estado moderno, da imagem do Direito como ordenamento normativo relativamente concentrado com a do Estado como aparelho para uso da força concentrada, deu lugar à persistente imagem do ‘Estado de Direito’, na qual as duas idéias do Direito e do Estado estão estreitamente unidas, até constituírem um corpo só” (Direito, p. 353).

A Teoria da Ciência do Direito é o estudo da metodologia e dos procedimentos lógicos utilizados na argumentação jurídica e no trabalho de aplicação e realização do Direito. O problema da metodologia do conhecimento jurídico está em encontrar os pressupostos da ciência do direito. O paradigma de modelo de ciência jurídica foi a Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, cujo ponto de partida é a norma; ou melhor, a relação hierárquica de fundamento de validade de uma norma numa outra norma imediatamente superior.(3) Bobbio reconhece o mérito de Kelsen em ter identificado a norma como objeto da ciência do direito, o que permite descrever o direito como estrutura baseada na relação de validade das normas.

O estudo do direito a partir de sua estrutura possibilita uma ciência jurídica independente das outras áreas do conhecimento, ou seja um conhecimento puro como denomina Kelsen. Entretanto, é justamente este paradigma formalista da ciência do direito kelseniano que mobilza Bobbio, assim com tantos outros juristas a produzirem novos modelos científicos. Para Bobbio,

“este tipo de análisis constituye también el límite de la teoría pura del Derecho. No hay duda de que el desarrollo del análisis estructural há ido en detrimento del análisis funcional: en comparación com el relieve dado por Kelsen a los problemas estructurales del Derecho es tremendamente angosto el espacio por él reservado a los problemas relativos a la función del Derecho... Considerado el Derecho como medio y no como fin, definido como técnica social específica, el análisis funcional del Derecho queda pronto agotado. La función del Derecho es la de permitir la consecución de aquellos fines sociales que no pueden ser alcanzados com otras formas (más blandas, menos constrictivas) de control social. Cuáles sean estos fines varia de sociedad a sociedad: es un problema histórico, no un problema que pueda interesar a la teoría del Derecho” (CTD, p. 258).

E, por fim, a Teoria da Justiça como análise que determina a posição ideológica da experiência jurídica no sentido da valoração crítica do direito positivo. Esta valoração crítica do direito positivo não diz o que é o direito (ontologia jurídica), nem como é de fato o direito positivo localizado no tempo e no espaço (ciência jurídica) e sim como deve ser o direito posto, em suma, como parte da Ética Jurídica que realiza a análise crítica dos valores como liberdade, paz, igualdade, etc (4). Para Bobbio, diferentemente do que é para os jusnaturalistas clássicos, estes princípios não servem como fundamento para o direito posto, mas sim como instrumento crítico para análise do direito positivo. Assim, os compreende como fonte de um “direito racional ou crítico (ou se se quiser, de direito natural, no sentido restrito, que é para mim o único aceitável da palavra)” (E D, 15).

A discussão sobre os direitos do homem, como ponto central da Filosofia do direito, perdeu importância ao longo do século XIX e iníicio do século XX, à medida que o juspositivismo consolidou sua unidade na forma, em oposição a proposta de unidade substancial ou material do jusnaturalismo (PJ, p. 199)(5). Após a II Grande Guerra, com a Declaração Universal dos Direitos do homem de 10 de dezembro de 1948 pela ONU, a crítica dos jusnaturalistas ao juspositivismo ganha uma dimensão valorativa e ideológica. Pois, é inegável que o totalitarismo de países como Itália, Alemanha e Espanha, a partir da década de vinte, nos revelou a limitação epistemológica da Filosofia do direito tradicional; de um pensamento jusfilosófico que não deu conta da “não-razoabilidade”, na expressão de Celso Lafer, dos regimes nazi-fascistas.

“O amorfismo jurídico que caracteriza o Estado totalitário torna sem utilidade prática a definição do Direito pela forma... De fato —e nisto está o ineditismo da ruptura— o totalitarismo é uma proposta de organização da sociedade que escapa ao bom senso de qualquer critério razoável de Justiça, pois se baseia no pressuposto de que os seres humanos são, e devem ser encarados, como supérfluos”(6)(Lafer, 1991: 19, grifamos)(7).

Bobbio desenvolveu uma concepção de direitos do homem fundada numa perspectiva histórica de longa duração de inspiração kantiana. Tal abordagem, como se demonstrará, é de fundamental importância para a filosofia do direito por estabelecer um elo de ligação entre teoria do direito e teoria da justiça, o que, por si só, se apresenta como crítica a uma metodologia formal do conhecimento jurídico.

Os textos de direitos humanos de Bobbio estão reunidos em A Era dos Direitos, publicada em Turim no ano de 1990. O primeiro escrito sobre este tema teve origem numa aula ministrada em 4 de maio de 1951, de cujas teses nunca mais se afastou:

“os direitos naturais são históricos; estes direitos nascem no início da era moderna, juntamente com a concepção individualista da sociedade; e, tornam-se um dos principais indicadores do progresso histórico” (E D, 2).

O livro é um exame das conquistas dos direitos do homem, ao longo da história ocidental, desde o surgimento do Estado Liberal até a atualidade, desenvolvidos sob duas perspectivas: uma histórica e empírica e outra filosófia e teórica. A primeira é desenvolvida dentro do campo da teoria do direito, da história e da sociologia. A segunda, dentro do campo da teoria da justiça, estará buscando descobrir a tendência de desenvolvimento da história da humanidade a partir de um evento elevado a signo desta tendência, ao profetizar a efetivação dos direitos formalmente proclamados e o nascimento de outros (ED, 133 e 134). Este trabalho tem por finalidade, portanto, apresentar a progressividade histórica dos direitos do homem desenvolvida por Norberto Bobbio, a fim de se estabelecer a seguinte comparação. Para Kant, o dever moral de agir segundo uma máxima universal é o motor da saída do homem do estado de natureza para a constituição política perfeita, numa progressividade até a realização da paz perpétua. Já Bobbio, apesar de não se voltar para as condições do agir moral, assume o pressuposto de que há no gênero humano uma disposição para o progresso, porque a história é prova empírica deste desenvolvimento. Pois, para este, os direitos humanos são conquistas históricas que representam signos de uma história universal. Assim, o problema central deste trabalho é a distinção compreensão de signo histórico que cada um dos autores possui.

3. A Historicidade dos Direitos do Homem

A historicidade dos direitos do homem proposta por Norberto Bobbio, de um lado, relativiza as conquistas de direitos às transformações sociais ao longo da história européia; de outro lado, indica uma universalização dos direitos do homem a partir da consenso efetivado em declarações, tratados e convenções internacionais. Na historicidade empírica dos direitos do homem, Bobbio constata dois momentos que caracterizam o processo de emancipação e de lutas por direitos fundamentais para a constituição da sociedade: a “Declaração Universal dos Direitos do homem e do Cidadão” aprovada pela Assembléia Nacional Francesa em 26 de agosto de 1789; e, a “Declaração Universal de Direitos do homem” aprovada pela Organização das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. Ambas declarações são marcos históricos que dão juridicidade às exigências sociais e que, em seus momentos, possibilitaram e, ainda hoje, possibilitam o surgimento de outros direitos fundamentais. Estes dois momentos são fases de um processo que culmina com a constitucionalização em vários países e a proclamação em várias Convenções e Tratados dos direitos do homem, respectivamente. Bobbio denomina este processo de universalização (E D, 28).

A conquista do universalismo dos direitos do homem é um lento processo que constatamos a partir da análise da história política das declarações. Neste processo se observa três fases: a transformação da relação política do antigo regime para a moderna, sistematizada pelo ideário clássico liberal; a passagem da teoria para a prática com a constitucionalização desse ideário no ordenamento dos Estados (declaração de 1789, dos Estados Unidos da América e das monarquias constitucionais do século XIX, por exemplo); e, por fim, a fase em que “a afirmação dos direitos é, ao mesmo tempo, universal e positiva”: universal por se dirigir aos cidadãos do mundo, e positiva por não serem reconhecidos idealmente, mas efetivamente protegidos contra o Estado que os violar, fase esta conquistada a partir da Declaração Universal dos Direitos do homem de 1948 (E D, 30).

Do processo de universalização decorrem dois outros: o da multiplicação (E D, 67) e o da internacionalização(8). Estes três processos se interrelacionam na medida de sua historicidade política, sociológica e jurídica. O primeiro ocorre com a incorporação dos conceitos filosóficos iluministas pela praxis; o segundo com a variabilidade dos direitos do homem conforme o tempo e espaço das transformações econômicas, políticas e sociais; e o terceiro processo, com a adoção desses direitos primeiramente pelos Estados, e após a Segunda Guerra pelos organismos de representação internacional.

Com efeito, neste item do trabalho estaremos expondo os fatos históricos que motivaram a conquista dos direitos do homem no mundo ocidental. Deste percurso, Bobbio eleva a signos de um progresso histórico as “Declarações de Direitos”, bem como a constituição de “Cortes Internacionais”. Assim, ao mesmo tempo em que exporemos a historicidade dos direitos homem, estaremos caracterizando o conceito de signo histórico da perfectibilidade do homem. Em suma, percorremos a história dos direitos do homem como já enunciamos na introdução do trabalho: os direitos do homem que nascem no início da era moderna juntamente com a concepção individualista da sociedade, tornaram-se no curso do tempo indicadores do progresso histórico.

3.1. Universalização dos Direitos do homem

As normas de condutas sempre foram observadas pela perspectiva dos deveres dos indivíduos e não dos direitos. No cerne desta forma de relação entre governante e governado está a idéia do Estado Paternalista: o pai que conduz seus filhos à felicidade. A “hipótese do homem como animal político, que remonta a Aristóteles, permitira justificar durante séculos o Estado paternalista (e, em sua expressão mais crua, despótica(9)) no qual o indivíduo não possui por natureza nenhum dos direitos de liberdade, direitos do quais, como uma criança, não estaria em condições de se servir, não só para o bem comum, mas nem mesmo para o seu próprio bem” (E D, 75 e 76). Nesta colocação de Bobbio podemos observar a dicotomia da história do pensamento político entre organicismo e individualismo (ver em L D, pp. 45 e ss). Pela concepção organicista dos antigos, os indivíduos não possuem autonomia, no sentido que o Estado é um corpo composto de partes que concorrem para a vida do todo. A Cidade (“Pólis”) é por natureza anterior ao indivíduo. Com isso, em apertada síntese constatamos a concepção organicista ao longo da história política do ocidente: na democracia dos antigos exercida através da participação direta e coletiva dos cidadãos num processo de unificação dos interesses para a realização do fim último do animal político, a vida em comum da Polis; na sociedade estamental da Idade Média cujo poder era exercido pelo o Senhor Feudal, que tinha a função social de proteger os súditos e servos; e, no Estado Absolutista, pelo Monarca, que concentrava todos os poderes para conduzir os súditos para o seu bem estar moral, espiritual e material.

Com a formação do Estado Moderno, a relação política é modificada pela concepção individualista. A relação política passa a ser observada sob a ótica da proteção dos direitos do indivíduo, que é anterior a sociedade civil (anterior à cidade). Bobbio descreve essa reviravolta no pensamento político, dizendo que a subverção das relações políticas entre indivíduo e sociedade tornou a sociedade não mais um fato natural, que exista independentemente da vontade dos indivíduos, mas um corpo artificial, criado pelos indivíduos à sua imagem e semelhança para a satisfação de seus interesses e carências, e para garantir-lhes o exercício de seus direitos” (E D, 15 e 16; cf também F D, 22).

O jusnaturalismo moderno(10) é uma construção doutrinária posterior à “luta entre a monarquia e as outras forças sociais (especialmente na Inglaterra), que se concluiu com a concessão da Magna Carta por parte de João Sem Terra (1215)” (L D, 13). Por essas lutas, Bobbio identifica que entre soberanos e súditos se estabeleceram pactos reformadores da tradicional relação —o rei tinha o dever de proteção; e o súdito, o de obediência— à medida que as cartas ampliaram a esfera de liberdade destes ao rediscutir as formas e os limites da obediência. Contraditoriamente, a denominação jurídica desses pactos era a de cartas de concessões soberanas, pelas quais o rei concedia unilateralmente liberdades aos súditos; assim como as cartas constitucionais outorgadas (octroyées) pelas déspotas esclarecidos do século XIX, que por meio de uma ficção jurídica promoviam o princípio da superioridade do rei, não obstante o real processo de limitação dos poderes tradicionais e absolutos da realeza.

Neste contraditório processo de limitação do poder absoluto, os iluministas proporcionaram uma unidade geral ao movimento revolucionário que determinou a Revolução Francesa. O papel dos “filósofos” e “economistas” foi o de sistematizar a ideologia burguesa. Neste ponto, “podem ser, com justiça, considerados responsáveis pela Revolução. Ela teria ocorrido sem eles; mas eles, provavelmente, constituíram a diferença entre um simples colapso de um velho regime e a sua substituição rápida e efetiva por um novo” (Hobsbawm, 1996: 18).

Pela concepção geral e hipotética da natureza de homem do jusnaturalismo moderno, concebe-se um limite externo ao poder do Estado decorrente de “um direito que não é proposto por vontade alguma, mas pertence ao indivíduo, a todos os indivíduos, pela sua própria natureza de homens, independentemente da participação desta ou daquela comunidade política”: um direito preexistente ao Estado, e perante o qual o Estado Civil deve reconhecimento; e, garantia integral à medida que o Estado reconhecer e assegurar o efetivo exercício destes direitos (P Kant, 15). Dessa forma, a concepção individualista do contratualismo transformou as relações políticas ao elevar à condição de cidadão (sujeito de direitos e deveres), o súdito (apenas sujeito de deveres, segundo o modelo absolutista), contribuindo para a racionalização do poder estatal.

O processo de limitação do poder absoluto culminou com a positivação dos direitos do homem no interior dos Estados, tendo como marcos históricos as “Declarações de Direitos” proclamadas em 1776 pelos Estados Unidos da América do Norte e em 1789 pela “Assembléia Nacional” da Revolução Francesa. Pois até este momento, os direitos do homem era uma criação filosófica de que o homem enquanto tal possui direitos que lhe são inerentes por natureza, não podendo ser subtraídos por outrém e nem por ele mesmo alienado. Dizer que os homens são livres e iguais com relação ao nascimento ou natureza ideais é realizar uma derivação de direitos de ordem racional, baseado no plano do dever ser, uma concepção teórica e hipotética de natureza humana. Com efeito, a teoria filosófica dos direitos do homem são universais no conteúdo, na medida em que se dirigem a um homem racional fora do espaço e do tempo, mas extremamente limitadas em relação a sua eficácia, pois (na melhor das hipóteses) são propostas para um futuro legislador. Assim, o que determinou a mudança para a fase seguinte, foi a proclamação das Declarações de Direitos do século XVIII. Estas Declarações foram “o ponto de partida para a instituição de um autêntico sistema de direitos no sentido estrito da palavra, isto é, enquanto direitos positivos ou efetivos” (E D, 29).

Com a proclamação destas Declarações, o processo de universalização passou por uma segunda fase, a da constitucionalização dos direitos naturais, ou seja, período da racionalização da relação entre o cidadão e o governante fundada no primado da lei. Segundo Bobbio esta fase se caracterizou pela transformação dos ideais em direitos juridicamente protegidos, isto é, direitos positivos, e por isso, com força coercitiva. “Na doutrina liberal, Estado de direito significa não só subordinação dos poderes públicos de qualquer grau às leis gerais do país, limite que é puramente formal, mas também subordinação das leis ao limite material do reconhecimento de alguns direitos fundamentais considerados constitucionalmente” (L D, 18 e 19). A partir do momento em que essa nova concepção de Estado foi acolhida pelas constituições, processo que se seguiu durante o século XVIII e XIX, observamos a passagem do plano teórico para o plano prático. Com esta fase de constitucionalização, os direitos do homem ganharam em concreticidade, mas perderam em universalidade: a concreticidade de se tornarem direitos válidos e exigíveis, mas somente exigíveis no interior dos Estados subscritores, fato este que particulariza o reconhecimento dos direitos do homem. “Não são mais direitos do homem e sim apenas do cidadão, ou, pelo menos, são direitos do homem somente enquanto são direitos do cidadão deste ou daquele Estado particular” (E D, 29 e 30).

Não poderíamos passar para a fase seguinte do processo de universalização, sem antes deixar explícita a correlação entre os direitos do homem e a democracia. O que une a doutrina dos direitos do homem, o liberalismo e o método democrático é a concepção individualista da sociedade. Para Bobbio a democracia é fruto da concepção individualista da sociedade, “da concepção para a qual a sociedade, qualquer forma de sociedade, e especialmente a sociedade política, é um produto artificial da vontade dos indivíduos” (F D, 22), ou seja, o exercício da soberania dos cidadãos a partir da participação direta ou indireta nas decisões coletivas, realizada apenas pelos indivíduos singularmente, no momento em que depositam seu voto na urna; pois “a sociedade democrática não é um corpo orgânico, mas uma soma de indivíduos” (E D, 102)(11).

A segunda fase somente terminará no pós segunda guerra, com a proclamação pela ONU da Declaração de 1948. Entramos, com isso, na última fase do processo de universalização dos direitos do homem. Esta é a fase em que “a afirmação dos direitos é, ao mesmo tempo, universal e positiva: universal no sentido de que os destinatários dos princípios nela contidos não são mais apenas os cidadãos deste ou daquele Estado, mas todos os homens; e, positiva no sentido de que põe em movimento um processo em cujo final os direitos do homem deverão ser não mais apenas proclamados ou apenas idealmente reconhecidos, porém efetivamente protegidos até mesmo contra o próprio Estado que os tenha violado” (E D, 30). A partir desse momento esses valores não serão apenas reconhecidos idealmente, mas sim protegidos pelos 48 países signatários da Declaração. Isto determina uma universalidade, apesar de limitada aos países pactuantes, dos conceitos de direitos do homem com a ascensão dos cidadãos destes países ao grau de cidadãos do mundo.

A Declaração de 1948 é algo mais do que um sistema doutrinário, e algo menos que um sistema jurídico. É sim um “ideal comum a ser alcançado por todos os povos e por todas as nações”. E ainda, em seu preâmbulo: “é indispensável que os direitos do homem sejam protegidos por normas jurídicas, se se quer evitar que o homem seja obrigado a recorrer, como última instância, à rebelião contra a tirania e a opressão” (E D, 31). Para Bobbio a “Declaração Universal representa a consciência histórica que a humanidade tem dos próprios valores fundamentais na segunda metade do século XX. É uma síntese do passado e uma inspiração para o futuro mas suas tábuas não foram gravadas de uma vez para sempre” (E D, 34). Não podendo ser, portanto, um conjunto de fórmulas solenes e estáticas, e sim um conjunto de valores que servem de base para as modificações exigidas pela história. Assim, diante da multiplicação de documentos complementares que vimos assistindo, ele interpreta tal desenrolar como sendo “um verdadeiro desenvolvimento (ou talvez, mesmo, de um gradual amadurecimento) da Declaração Universal, que gerou e está para gerar outros documentos interpretativos, ou mesmo complementares, do documento inicial” (E D, 34).

3.1.1. Multiplicação dos Direitos do homem

Analisando o processo de multiplicação dos direitos sob a perspectiva da sociologia jurídica, Bobbio demonstra que o desenvolvimento dos direitos do homem advém da realidade social da época, das contradições e das mudanças que são produzidas em cada situação concreta. Assim, a exigência de transformação da realidade sócio-jurídica é conseqüência das transformações sociais e das inovações técnicas. Para Bobbio, a “conexão entre mudança social e mudança na teoria e na prática dos direitos fundamentais sempre existiu” (E D, 75 e 76). A discussão teórica dos direitos do homem e sua jurisdicização são produtos culturais de uma necessidade social que exige a transformação do status quo.

A transformação da teoria e da prática dos direitos do homem é observada em três momentos da relação política entre governados e governantes. No primeiro, com a formação do Estado Moderno, os direitos do homem são previstos constitucionalmente. Este Estado, o chamado Estado Liberal, é limitado pelas garantias individuais. Neste momento são assegurados os direitos de liberdade em relação ao Estado, ou seja, a “chamada liberdade negativa, entendida como esfera de ação em que o indivíduo não está obrigado por quem detém o poder coativo a fazer aquilo que não deseja ou não está impedido de fazer aquilo que deseja” (L D, 20).

Num segundo momento é estabelecido os direitos de natureza políticos, aqueles que concebem as liberdades como autonomia dos indivíduos. Estas liberdades promoveram uma participação cada vez mais ampla no poder político, e culminou com a conquista do sufrágio universal, visto que o direito de participação no poder político, como foi concebido no Estado Liberal, era apenas concedido aos proprietários. Chamamos estes por direitos de liberdade positiva por possibilitarem a participação dos cidadãos no Estado que caracterizam o Estado Democrático.

E por fim, os direitos do homem que exigem a intervenção estatal, os chamados direitos sociais(12). Estes são caracterizados pela atribuição de direitos a sujeitos coletivos; são direitos cujo sentido é o de equilibrar as relações sociais em busca do bem estar social. Estas liberdades só se efetivam por meio de uma intervenção ativa do Estado. Este é denominado pelos cientistas políticos por Estado Social (“Estado dos Cidadãos”)(13).

Os direitos de liberdade negativa valem para o homem abstrato, uti singulus. Como já foi dito, atribuir direitos naturais ao homem teve a finalidade de limitar o poder absoluto da realeza a partir dos princípios de liberdade e igualdade. “Os homens são todos iguais, onde (sic) por ‘igualdade’ se entende que são iguais no gozo da liberdade, no sentido de que nenhum indivíduo pode ter mais liberdade do que o outro” (E D, 70). O consenso em torno destes direitos é constatado nas Declarações de direitos: o artigo 1° da Declaração Universal afirma que “todos os homens nascem iguais em liberdade e direitos”. Entretanto essa universalidade dos direitos naturais foram atribuídas ao homem de determinado contexto histórico, qual seja o da Revolução Burguesa.

Nos direitos políticos e sociais observa-se “diferenças de indivíduo para indivíduo, ou melhor, de grupos de indivíduos para grupos de indivíduos”, o que nos leva a não mais considerar o homem abstratamente, e sim em suas condições peculiares na sociedade: o homem no grupo familiar, na condição de pessoa em desenvolvimento (criança e adolescente) ou na sociedade como mulher, idoso, deficiente físico, minoria étnica ou religiosa etc. Dessa forma, para Bobbio o homem deve ser considerado em suas relações concretas, o que, portanto, o faz reconhecer novos sujeitos de direitos e novos objetos a serem tutelados (E D, 70 e 71).

Em síntese, para Bobbio essa multiplicação ocorreu de três modos: a) pelo aumento da quantidade de bens merecedores de tutela; b) pela extensão de titularidade de alguns direitos típicos a sujeitos diversos do homem; c) pela concretude que o homem passa a ser encarado em suas condições específicas na sociedade como criança, idoso, doente, etc (E D, 68).

Estes três modos demonstram o reconhecimento de novos sujeitos e de novos bens jurídicos implicando a multiplicação dos direitos do homem. No primeiro, com o aumento de direitos assegurados: a partir dos direitos de liberdades negativas passam a ser também assegurado os direitos políticos e sociais. No segundo, com a passagem da consideração do indivíduo humano uti singulus “para sujeitos diferentes do indivíduo, como a família, as minorias étnicas e religiosas, toda a humanidade em seu conjunto”; passando até mesmo para sujeitos diferentes dos homens, como os dos animais ou da natureza a ser respeitada. E no terceiro, “a passagem ocorreu do homem genérico para o homem específico, ou tomado na diversidade de seus diversos status sociais, com base em diferentes critérios de diferenciação (sexo, a idade, as condições físicas)”; sendo que, cada condição específica em que se encontra o indivíduo determina um tratamento e proteção correlatas. Com isto, multiplicou-se as convenções e as declarações por temas, objetivando a normatização das relações do homem contemporâneo segundo seu status na sociedade (E D, 69).

O pressuposto da reflexão de Bobbio, a necessidade da passagem da hipótese racional para a análise da sociedade concreta reflete-se na determinação espacial e temporal da discussão dos direitos do homem. O problema atual é a proteção dos direitos sociais, que são assegurados pela intervenção ativa do Estado. Estes direitos, cuja efetividade se dá por meio do Estado, estão encontrando obstáculos em virtude da redefinição do papel do Estado, chamada popularmente de “onda neoliberal”. Diante dessa necessidade social, o atual desafio para o filósofo do direito é o de justificar estes direitos que necessitam de efetiva proteção; bem como os direitos que estão nascendo, os direitos de quarta geração, cujo bem a ser protegido não é o homem em si, mas o reflexo que o meio ambiente natural e cultural exerce sobre sua qualidade de vida(14).

As exigências da sociedade contemporânea vão além daquelas fundamentadas numa hipótese racional de homem (as liberdades em relação a e da liberdade de). Para Bobbio a “hipótese abstrata de um estado de natureza simples, primitivo, onde o homem vive com poucos carecimentos essenciais, não teria mais nenhuma força de persuasão e portanto, nenhuma utilidade teórica ou prática” (E D, 74 e 75). Este distanciamento entre a realidade e os textos normativos de direitos sociais nos remete ao problema da busca pelo fundamento dos direitos do homem: encontrar a cada momento histórico o meio mais rápido e eficaz para justificá-los e protegê-los.

3.1.2. Internacionalização dos Direitos do homem

Passamos a tratar do processo de internacionalização dos direitos do homem, tendo como por ponto de partida Declaração de 1948. A partir desta Declaração iniciou-se o processo de proliferação de Convenções Internacionais. Estes tratados e convenções ao mesmo tempo que vinculam os signatários mediante sanções, os influenciam a converterem os acordos em normas de direito público nacionais.

A discussão do problema da sociedade no direito(15), ou seja, da efetividade das normas é inseparável da análise jurídico-política do direitos do homem internamente aos Estados e entre os Estados. Assim, passamos para a descrição do processo de internacionalização. Inicialmente trataremos do conceito de direito para a partir disto, estabelecer a relação entre os direitos do homem proclamados internacionalmente e no interior dos países que constitucionalizaram estes direitos.

Bobbio estabelece a distinção entre direitos em sentido forte, aqueles que possuem coercitividade, dos direitos em sentido fraco, que apenas são diretivas de condutas, denominados “exigências”. Diz o autor que para cada direito em sentido forte está correlacionada uma obrigação. As exigências por melhores fundamentos que possam ter, não vinculam uma decisão judiciária ou determinam uma sanção no caso de serem violadas. Esses “direitos” exigências na melhor das hipóteses são diretivas para direitos futuros, o que “significa criar expectativas, que podem jamais serem satisfeitas” (E D, 79).

Segundo esta perspectiva juspositivista dos sistemas de direitos do homem é que Bobbio observa a passagem dos direitos do homem prescritos em códigos morais ou naturais para os denominados códigos fortes. O primeiro é um sistema filosófico que almeja a jurisdicização, e por isso um sistema fraco; o segundo, em virtude da constitucionalização dos conteúdos filosóficos é um sistema de direitos em sentido forte, pois é a norma positivada que lhe fornece a coercibilidade.

Atualmente encontramos dispositivos de direitos do homem, e principalmente de direitos sociais, constitucionalizados, porém sem força coercitiva. São meros programas a serem seguidos, sem vincular os poderes executivos e judiciários, normas “chamadas pudicamente de ‘programáticas” (E D, 77). Internacionalmente o mesmo ocorre, Bobbio prevê algumas condições necessárias para que os direitos do homem passem para norma em sentido forte no sistema internacional: o reconhecimento e a proteção das “Declarações” sejam considerados condições necessárias para que um Estado possa pertencer à comunidade internacional; e, a existência de um sistema internacional forte para prevenir e reprimir a violação dos direitos declarados (E D, 82).

Não obstante ser um sistema fraco, o sistema internacional emprega formas de controle social. Bobbio distingue as formas de proteção dos direitos do homem em vis directiva e vis coactiva, conceitos estes que são repetidos pela atual teoria política em influência e poder como duas formas de controle social. “Entendendo-se por ‘influência’ o modo de controle que determina a ação do outro incidindo sobre sua escolha, e por “poder” o modo de controle que determina o comportamento do outro pondo-o na impossibilidade de agir diferentemente” (E D, 39).

A tutela dos direitos do homem pelos organismos internacionais tem se dado por três aspectos: promoção, controle e garantia. Promover os direitos do homem é induzir a positivação desses direitos no interior dos Estados, ou se já fizerem parte do ordenamento, buscar o aperfeiçoamento destes direitos. Controlar as ações é observar em que grau as convenções estão sendo acolhidas e respeitadas por meio da exigência de relatórios de cada Estado signatário ou pela a análise de comunicados de algum Estado denunciando outro em caso de não cumprimento do acordo. E por garantia “entende-se a organização de uma autêntica tutela jurisdicional de nível internacional, que substitua a nacional” (E D, 40). Observa-se, dessa forma, que as duas primeiras formas de tutela levam em consideração o aperfeiçoamento da legislação interior de cada Estado, e a terceira cria “uma nova e mais alta jurisdição”. Bobbio cita a Convenção Européia dos Direitos do homem como documento internacional que inovou no aspecto da garantia o atual sistema de proteção de direitos do homem. “Mas só é possível falar legitimamente de tutela internacional dos direitos do homem quando uma jurisdição internacional conseguir impor-se e superpor-se às jurisdições nacionais, e quando se realizar a passagem da garantia dentro do Estado —que é ainda a característica predominante da atual fase— para a garantia contra o Estado”(16) (E D, 40 e 41).

4. O Progresso Histórico dos Direitos do Homem

Percorrendo a historicidade proposta por Norberto Bobbio, vimos até este momento os direitos do homem como objeto das Ciências Sociais e Jurídica. Com efeito, os fatos históricos apresentados comprovam a variabilidade e a heterogeneidade dos direitos do homem, conforme a determinação espaço-temporal das necessidades sociais que impulsionam as transformações estruturais da sociedade. Se Bobbio restringisse sua análise dos direitos humanos a esta perspectiva, poderíamos interpretar sua historicidade como uma proposta relativista. Entretanto, Bobbio não se limita a pensar a história dos direitos do homem somente a partir das antinomias em que suas normas vão se constituindo. Se fizéssemos esta leitura, estaríamos apenas considerando os aspectos de sua filiação ao juspositivismo de Kelsen, o que limitaria a compreensão do autor italiano.

Nos itens que se seguem examinaremos os direitos do homem sob a perspectiva da filosofia da história. Analisaremos o problema de sua universalização, que percorre a historicidade proposta por Bobbio. Neste aspecto, Bobbio filia-se a Kant, haja vista apresentar a Declaração de 1948 como marco histórico de uma progressividade da humanidade, em que os direitos do homem passaram a ser direitos positivos universais. Assim, faz-se necessário apresentar inicialmente a filosofia da história kantiana, para que, ao final, estabelecermos em que medida há uma filosofia da história kantiana na concepção de direitos humanos de Bobbio.

Kant impõe o dever do homem de se desenvolver até a perfeição por meio da própria razão, cujo processo é o livre uso público da razão. A realização do fim-último do homem pode ser constatado com o progresso do gênero humano, que, apesar das contradições, dá sinais históricos (signum rememorativum, demonstrativum, prognostikon) dessa tendência ao progresso. Trata-se de uma história universal que,

“a partir do conceito de ação como ligado à livre adesão, institui o espaço a ser pensado de uma prática cuja efetividade põe em questão as relações entre a razão e a trama dos acontecimentos, assinalando o sentido de uma questão que busca a razão no confronto inevitável a que estão expostos os homens” (Zingano, 1989: 20)

Por isso, é necessário, para percorrer a filosofia da história kantiana, partir do problema da liberdade.

4.1. A Idéia de Liberdade

A liberdade é o conceito central da filosofia de Kant. É assim que o próprio filósofo declara na Crítica da Razão Prática: “na medida em que a sua [a da liberdade] realidade é demonstrada por uma lei apodíctica da razão prática, constitui a pedra angular de todo o edifício de um sistema da razão pura” (KpV, 1999: 12). Isto porque a liberdade é tida por Kant como um problema metafísico, assim como, Deus e mortalidade. Estes dois últimos conceitos adquirem realidade objetiva, por meio da efetividade da liberdade, que lhes confere a possibilidade de realidade prática (Terra, 1995: 20).

Segundo o Professor Francisco Javier Herrero, Kant se deu conta, depois de vários anos, de que a fundamentação moral não se dá, conforme a dedução transcendental, e sim, que o conhecimento moral é totalmente diverso do saber teórico. Esta virada se dá com o desenvolvimento da doutrina do fato da razão (“Faktum der Vernunft”). Guido Antônio de Almeida, após analisar todos os contextos em que aparece o termo na Crítica da Razão Prática, bem como ter realizado o percurso do problema que se inicia na Crítica da Razão Prática e passa pela Fundamentação da Metafísica dos Costumes, caracteriza o “facto da razão” como “a liberdade da vontade para seguir a lei moral de que se tem consciência” (2002: 102).

O conhecimento moral é constituído de forma peculiar, totalmente diverso do saber teórico, porque a necessidade que se implica o dever moral é absoluta e sem condições (Herrero, 1975: 25). Para se identificar à idéia de liberdade kantiana, deve-se remeter a crença religiosa racional cujo fundamento está na lei moral independente, na natureza moral do homem. Conforme Herrero, “para Kant, la libertad sólo se consuma por la religión, y la religión debe responder a la pregunta: qué le es permitido esperar al hombre?, y eso significa que la consumación de la libertad es objeto de esperanza...” (Herrero, 1975:10). Ao relacionar Liberdade e Religião, Herrero aponta para a unidade sistemática do pensamento kantiano. Pois, Kant traz o problema da religião como a possibilidade de realização do soberano bem no mundo, o qual impõe a unificação de moralidade e felicidade, para que o fim-último da natureza seja fim-último do homem. Mas, para alcançar estas explicações o comentador parte do seguinte:

“resumamos primero el planteamiento del problema de la posibilidad de realización del Soberano bien en el mundo para tener clara el proceso a seguir, pues la filosofía de la libertad de Kant experimenta aquí um cambio de orientación. Hasta ahora la libertad y sus principios han sido encontrados en una orientación eminentemente práctica, perfectamente delimitada del conocimiento teórico. La crítica de la razón há encontrado que la esencia propia de ésta consiste en ser prática y como tal deve realizar el incondicionado en su acción que le es impuesto por la lei moral. Pero al estudiar las condiciones de posibilidad del objeto total de la razón práctica, esta orientación práctica se vuelve de alguna manera hacia el conocimiento teórico, lo cual puede poner en peligro la característica esencial del ámbito práctico. Este peligro de volverse hacia el conocimiento teórico es dado en la deducción de las ideas de la razón práctica, e. d., de los postulados. Es verdad que estas ideas están lejos de pertencecer a um saber teórico, pero tambíén es verdade que no pertenecen pura y simplemente a la razón práctica. Su constitución oscila así entre una y outra y su valor queda reducido a una necesidad sólo subjetiva. Así la esencia misma de la razón no parece estar más simplemente en la moralidad, sino a la vez en ser también especulativa, aunque la función de las ideas, en lo que tienen de especulativo, sea sólo estar a servicio de la moral” (Herrero, 1975: 71).

O problema da diferença de método dedutivo entre a Crítica da Razão Pura e a Crítica da Razão Prática não é objeto deste trabalho. Entretanto, na Metafísica dos Costumes a liberdade como idéia, ou seja como “princípio regulativo da razão” (KrV, 543, p. 94) é colocado de forma coerente com a Crítica da Razão Pura. A filosofia política kantiana propõe a liberdade como fundamento último da Metafísica dos Costumes. Para Kant a liberdade é o único direito inato, ou seja o único direito que é transmitido pela natureza independentemente de qualquer ato jurídico. Mas, qual a essência da natureza do homem para Kant? O Professor Ricardo Terra, acompanhando a distinção de Guéroult entre homem essencial e homem real, nos responde:

“para Kant, a natureza é inicialmente o homem essencial, o homem enquanto homem; o que o opõe ao animal, ou seja, sua liberdade, sua razão teórica e prática. Daí se poder falar de direito inato, igualdade natural que cada um possui por ser homem e toda a fundamentação do direito natural na autonomia” (Terra, 1995: 160)(17).

Este é o “homem essencial”, mas a natureza do homem também possui uma outra dimensão, que é a real, cujo móbil de suas ações tem uma causa condicionada pelo mundo sensível e pelas inclinações e paixões; diferentemente do homem essencial cujas ações são incondicionadas. Desta resposta podemos inferir o que a Revolução Copernicana(18) que Kant realiza na história da filosofia introduz na oposição básica entre autonomia e heteronomia de vontade.

Ao lado da causalidade natural, cuja causa é determinada ulteriormente por uma outra causa precedente segundo leis necessárias, Kant insere a causalidade por liberdade que é aquela que tem início em si, admitindo-se uma espontaneidade absoluta (KrV, 474, 233). Com isto, diferencia a causalidade que se dá no plano do fenômeno (phaenomenon) daquela que se dá no plano da coisa em si (noumenon). A liberdade transcendental é vista como uma esfera regida pela ausência de leis. O contrário se dá na esfera da liberdade natural, em que as ações se conformam às leis naturais.

Portanto, a crítica especulativa, por um lado, expõe as suas limitações em conhecer a liberdade como um objeto concreto; e, por outro, demonstra a possibilidade de uma autodeterminação espontânea da vontade. Assim, o uso do conceito de liberdade como idéia transcendental é apenas “regulativo e não constitutivo, porque a ele não se pode dar qualquer esquema de sensibilidade correspondente e nem um objeto em concreto” (Herrero, 1975: 21). É assim que podemos conceber a liberdade como critério universal de reconhecimento do que é justo ou injusto.

O jurista, o operador do direito, não pode estabelecer o que é justo ou injusto (quid sit ius), mas somente qualificar um ato como lícito ou ilícito a partir de um direito de determinado lugar e época (quid sit iuris), ou melhor o direito positivo vigente. O problema da justiça permanece completamente obscuro ao operador do direito, “se não abandonar por um certo tempo aqueles princípios empíricos, e se (ainda que possa servir-se daquelas leis como excelentes fios condutores), não buscar as origens daqueles juízos na razão pura como único fundamento de qualquer legislação positiva possível”(19).

A partir da distinção entre o que seja homem essencial e homem real, Kant deriva os conceitos de autonomia e heteronomia, respectivamente(20). O sujeito age autonomamente, se age conforme as regras que seu próprio espírito (interior) dá a si mesmo; e, age heteronomamente, se age conforme regras que a sociedade (exterior) determina. Segundo o filósofo, “autonomia da vontade é aquela sua propriedade graças à qual ela é para si mesma a sua lei (independentemente da natureza dos objectos do querer)”(21). Esta vontade moral não obedece a outra lei que não seja a moral, e que não se deixa determinar por inclinações ou cálculos interessados. Ressalte-se que “esta definição de autonomia coincide com a definição dada por Rousseau à liberdade, entendida como a obediência à lei que cada um prescreve para si mesmo” (Bobbio, PKant: 62)(22).

“À idéia de liberdade está inseparavelmente ligado o conceito de autonomia e a este, o princípio universal da moralidade, o qual na idéia está na base de todas as acções de seres racionais, como a lei natural está na base de todos os fenómenos... Quando nos pensamos livres, nos transpomos para o mundo inteligível como seus membros e reconhecemos a autonomia da vontade, juntamente com a sua conseqüência – a moralidade; mas, quando nos pensamos obrigados, consideramo-nos como pertencentes ao mundo sensível e, contudo, ao mesmo tempo também ao mundo inteligível” (Kant, 1995: 89-90, grifamos).

O conceito de heteronomia é derivado por oposição: “quando a vontade busca a lei, que deve determiná-la, em qualquer outro ponto que não seja a aptidão das suas máximas para a sua própria legislação universal, quando, portanto, passando além de si mesma, busca essa lei na natureza de qualquer dos seus objectos, o resultado é então sempre heteronomia” (Kant, 1995: 78).

Com efeito, os conceitos de liberdade interna e liberdade externa se revelam, podendo, também, serem denominados por liberdade moral e liberdade jurídica, respectivamente. A liberdade interna, ou melhor dizendo, a relação de liberdade interna refere-se a responsabilidade do eu com ele mesmo. Já a relação de liberdade externa, a minha responsabilidade perante os outros.

A liberdade moral é a faculdade de adequação às leis que a própria razão do homem dá a si mesmo. Na relação consigo mesmo, o dever é moral; pois, a necessidade de agir segundo a regra moral (interior) somente se dá em virtude de impedimento interno ao ser, quais sejam, as paixões, os desejos, as inclinações e os interesses. Com efeito, agir segundo o dever moral para Kant é justamente servir-se de si mesmo, sem a necessidade de um tutor (externo) para pensar.

A liberdade jurídica é a faculdade de agir sem o impedimento dado pela igual liberdade dos demais seres humanos. Com isto, seus impedimentos são externos, uma vez que provêm dos outros. Aqui a relação é intersubjetiva, cujos limites (regras) à ação são dados pela relação com os outros. É um dever jurídico que é posto pela sociedade civil. Em outras palavras Bobbio apresenta o problema de forma muito esclarecedora:

Do conceito de liberdade externa deriva a característica do dever jurídico de ser um dever pelo qual somos responsáveis frente aos outros; desta característica do direito como liberdade externa de gerar uma responsabilidade frente aos outros deriva que os outros podem exigir de mim o cumprimento da minha obrigação (o que se chama direito subjetivo); finalmente, do direito dos outros de exigir o cumprimento da minha obrigação, deriva a característica própria da experiência jurídica de oferecer espaço para relações intersubjetivas de direito-dever, ou seja, para relações jurídicas” (Bobbio, PKant, 61).

A liberdade, moral ou jurídica, como um direito tem seu reverso num dever (imperativo). Com o rigor lógico proposicional peculiar kantiano, a Fundamentação da Metafísica dos Costumes desenvolve a distinção entre imperativo categórico e imperativo hipotético, conforme a seguinte passagem da Fundamentação da Metafísica dos Costumes o problema pode ser esclarecido:

“Todos os imperativos se exprimem pelo verbo dever (‘sollen’), e mostram assim a relação de uma lei objectiva da razão e para uma vontade que, segundo a sua constituição subjectiva, não é por ela necessariamente determinada (uma obrigação). Eles dizem que seria bom praticar ou deixar qualquer coisa, mas dizem-no a uma vontade que nem sempre faz uma coisa porque lhe é representado que seria bom fazê-la...
Todos os imperativos ordenam ou hipotética —ou categoricamente. Os hipotéticos representam a necessidade prática de uma acção possível como meio de alcançar qualquer outra coisa que se quer (ou é possível que se queira). O imperativo categórico seria aquele que nos representasse uma acção como objetivamente necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra finalidade” (Kant, FMC: 51-52).

Assim, os imperativos categóricos ou morais seguem a seguinte fórmula: “Você deve executar a ação A”. E os hipotéticos: “Se você que alcançar B, deve executar a ação A” (hipotéticos de habilidade); “Porque você deve alcançar B, deve executar a ação A” (hipotéticos de prudência) (ver Bobbio, Pkant, 65).

A liberdade como autonomia do querer é sintetizada no imperativo categórico que fundamenta Metafísica dos Costumes: “age de tal maneira que a máxima de tua ação possa tornar-se uma lei universal”. O indivíduo que quiser ser livre deve-se pautar por esta forma de agir moral e interior. Pois, assim, o homem desenvolve sua natureza racional e supra-sensível, à medida que ultrapassa a ordenação mecânica de sua (também) natureza animal, por meio da própria razão (Kant, Idee: 12)(23).

“Se, pois, deve haver um princípio prático supremo e um imperativo categórico no que respeita à vontade humana, então tem de ser tal que, da representação daquilo que é necessariamente um fim para toda a gente, porque é fim em si mesmo, faça um princípio objectivo da vontade, que possa por conseguinte servir de lei prática universal. O fundamento deste princípio é: - A natureza racional existe como fim em si. É assim que o homem se representa necessariamente a sua própria existência; e, neste sentido, este princípio é um princípio subjectivo das acções humanas” (Kant, FMC: 66).

O problema da justiça em Kant é, numa só palavra, o problema da liberdade como realização do imperativo categórico. Com esta idéia, Kant pretende estabelecer aquilo que deve ser o direito para corresponder a um ideal de justiça, e não aquilo que é o direito na realidade histórica (Bobbio, PKant: 71-73). A razão última pela qual os homens se constituíram em sociedade política é a de garantir a expressão máxima da própria personalidade, o que somente se alcançará, se o homem agir de tal maneira que a máxima de sua ação venha a se tornar uma lei universal.

4.2.Filosofia da História (“Weltgeshichte”)(24)

A filosofia da história é o exercício de se buscar entre os acontecimentos a determinação de um sentido, seja ele progressivo ou regressivo da História da Humanidade. No século XVIII emergiu o confronto teórico entre a concepção progressiva ou linear de história e a regressiva ou cíclica. Esta concepção é suplantada pela progressiva a partir da idéia de tempo desenvolvida pelo cristianismo. Com base no ideário cristão, restou possível pensar os acontecimentos fora do esquema do eterno retorno da doutrina clássica da repetição(25).

Kant faz a distinção entre a história (“Historie”), composta apenas empiricamente, da História do Mundo (“Weltgeschichte”), possuidora de um fio condutor a priori. A “Historie” é composta pelo acúmulo de fatos determinados empiricamente, da observação e comparação entre as culturas das distintas civilizações; já a filosofia da história é a determinação de um sentido para o devir. A história narrada ou contada (Geschicte) do mundo (Welt) é a construção racional de uma idéia de como deveria ser a sucessão de fatos, ou melhor, uma narrativa histórica segundo uma idéia de como deveria ser o curso do mundo, se ele fosse adequado a certos fins racionais (Kant, Idee: 22). Assim, trata-se de uma história profética que somente está em condições de pressagiar o que poderá ocorrer a partir de uma história hipotética enunciada na forma de proposições (“se isto, então aquilo”), como se infere do texto Idéia de uma história universal do ponto de vista cosmopolita (Idee), de 1784, que tem por intuito demonstrar a existência de uma racionalidade (não empírica) seguida pelos homens segundo leis naturais.

O fio condutor a priori proposto por Kant é derivado da natureza. Para ele o filósofo “não tem outra saída senão tentar descobrir, neste curso absurdo das coisas humanas, um propósito da natureza que possibilite todavia uma história segundo um determinado plano da natureza para criaturas que procedem sem um plano próprio. Nós queremos ver se conseguimos encontrar um fio condutor para tal história e deixar ao encargo da natureza gerar o homem que esteja em condição de escrevê-la segundo este fio condutor” (Kant, Idee: 10). Desta passagem, infere-se o antagonismo entre a natureza essencial e natural do homem, que mesmo proporcionando um “curso absurdo das coisas humanas”, pode-se inteligivelmente determinar o fio condutor de uma história demonstrativa da contínua progressividade do gênero humano. Nas palavras de Ricardo Terra, “Kant estuda a natureza humana, em que as boas disposições morais coexistem com as inclinações egoístas e encontram, mesmo assim, um ‘plano da natureza’ que não se vale apenas das disposições morais mas utiliza-se também daquelas inclinações” (Terra, 1995: 158).

Conforme a 4a Proposição da Idee,

O meio de que a natureza se serve para realizar o desenvolvimento de todas as suas disposições é o antagonismo das mesmas na sociedade, na medida em que ele se torna ao fim a causa de uma ordem regulada por leis desta sociedade (Kant, Idee: 13).

Kant entende antagonismo como sendo a “insociável sociabilidade dos homens, ou seja, a tendência dos mesmos a entrar em sociedade que está ligada a uma oposição geral que ameaça constantemente dissolver essa sociedade” (Kant, Idee: 13). O homem tem inclinação para se associar, pelo desenvolvimento de suas disposições naturais; mas também tem forte inclinação a separar-se (isolar-se), por possuir uma qualidade de querer conduzir tudo em seu proveito — movido pela busca de projeção, pela cobiça ou pela ânsia de dominação —, para daí fazer sua oposição, à medida que a reação de todos os lados está pressuposta. E, é esta oposição que o leva “a superar sua tendência a preguiça”, e com isso, dá-se o desenvolvimento dos talentos humanos, num “progressivo iluminar-se (Aufklärung)”. Aqui, fica evidente a marca individualista e liberal do pensamento kantiano, ao enaltecer a intratabilidade, a vaidade e a inveja competitiva, como fatores mobilizadores do sempre insatisfeito desejo de ter e de dominar: “sem eles as disposições naturais da humanidade permaneceriam num ‘sono eterno’” (Kant, Idee: 13-14).

Face esta concepção de natureza humana,

O maior problema para a espécie humana, a cuja solução a natureza a obriga, é alcançar uma sociedade civil que administre universalmente o direito [5a Proposição]. Este problema é, ao mesmo tempo, o mais difícil e o que será resolvido por último pela espécie humana” (Kant, Idee: 14, 6a Proposição).

O desenvolvimento de todas as disposições da natureza se dá naquelas sociedades em que se permite a “máxima liberdade, o que conseqüentemente possibilite um antagonismo geral dos seus membros” (Kant, Idee: 14)(26). Administrar universalmente o direito consiste, portanto, em se encontrar o ponto máximo de liberdade, que leve em consideração a sociabilidade e a insociabilidade do homem. Assim e somente dessa forma, a humanidade proporcionaria o desenvolvimento de todas as disposições da natureza, sendo a constituição civil dessa sociedade perfeitamente justa, por ser aquela em que a “liberdade sob leis exteriores encontra-se ligada no mais alto grau a um poder irresistível, ou seja, uma constituição civil perfeitamente justa”.

A constituição é justa, se for conforme ao ideal de liberdade, porque, a fim de se conter a natureza insociável do homem, é necessário engendrar

“um certo mecanismo, em virtude do qual alguns membros da comunidade devem comportar-se de modo exclusivamente passivo para serem conduzidos pelo governo, mediante uma unanimidade artificial, para finalidades públicas, ou pelo menos devem ser contidos para não destruir essa finalidade. Em casos tais, não é sem dúvida permitido raciocinar, mas deve-se obedecer” (Kant, 1985: 105-106).

O homem “certamente abusa de sua liberdade relativamente a seus semelhantes”, e se ele “deseja uma lei que limite a liberdade de todos, sua inclinação animal egoísta o conduz a excetuar-se onde possa. Ele tem necessidade de um senhor que quebre sua vontade particular e o obrigue a obedecer à vontade universalmente válida, de modo que todos possam ser livres”. Porém, esse senhor é da espécie humana, e assim, passível de abusar da liberdade, se não tiver acima de si um senhor. Por isso, a solução perfeita é impossível. Contudo, é possível a aproximação a esta idéia que é ordenada pela natureza. Nesta tensão entre idéia e realidade no pensamento kantiano (ver Terra, 1995), a lei assume a função ordenadora da natureza insociável do homem, seja para o governante, seja para o governado, o que Max Weber desenvolveu em termos de dominação racional.

Com efeito, numa história do mundo em que as paixões condicionam as inclinações, as transformações culturais, as formas de organização humana, etc., Kant apresenta um sentido da História Ideal e, possivelmente, realizável sob certas circunstâncias (Terra, 1995: 159). Neste sentido, o que leva o homem a sair do estado de natureza, bem como os Estados em isolamento a comporem uma federação de Estados (Gnossenschaft) regidos pelo Direito Cosmopolita, não pode ser derivado da análise antropológica ou histórica, e sim do Ideal de um determinado status: um Ideal em que ao homem ou aos Estados é possível a proteção contra a violência, ou seja, abdicar da liberdade do estado de natureza para buscar tranqüilidade e segurança numa constituição conforme as leis. Isto se esclarece com o fundamento kantiano da sua proposta de Paz Perpétua:

“Povos, como Estados, podem ser julgados como homens individuais, que em seu estado de natureza (isto é, na independência de leis exteriores) já se lesam por seu estar-um-ao-lado-do-outro e do qual cada um, em vista de sua segurança, pode e deve exigir do outro entrar com ele em uma constituição similar à civil, em que cada um pode ficar seguro de seu direito” (Kant, 1989: 38).

Das propostas de Kant para a Paz Perpétua, assim como em Idéia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita, podemos inferir, como conseqüência lógica, a tendência do progresso moral do gênero humano. Da saída do homem do estado de natureza para constituir-se em sociedade regida pelas leis, e disto, empreender caminhada segura À paz Perpétua, em que a humanidade será regida por um direito cosmopolita, Kant traça um fio condutor do progresso contínuo da humanidade (Bobbio, PKant: 154). Entretanto, é condição para o progresso que o homem “tenha coragem de fazer uso de seu próprio entendimento, servindo-se de si mesmo sem a direção de outrém, para que possa emergir da menoridade e empreender marcha segura” (Kant, 1985: 100).

Numa marcha progressiva, a humanidade sai do estado de natureza para se constituir segundo as leis civis. E, desta condição, o gênero humano progredirá para a saída do estado de guerra de todos os Estados contra todos os Estados. Em outras palavras, o que possibilitou ao homem sair de um status de liberdade sem limitações exteriores e constituir-se legalmente foi o exercício de sua livre razão em face de suas inclinações culturais e psicológicas. O que possibilita o homem transformar as relações de poder e buscar sua emancipação é o uso público de sua livre razão perante o governante; e, o que possibilitará a saída dos Estados de sua condição de liberdade ilimitada entre si para formarem uma federação de Estados será o exercício de uma racionalidade que demonstrar a melhor condição de sobrevivência entre homens e Estados.

“No plano do homem essencial Kant pode constituir uma ética e uma teoria do direito fundadas na noção de autonomia; no direito político estabelece um sistema de idéias distanciado das instituições históricas, mas se ele se detivesse aqui haveria um choque inevitável das idéias com a realidade... A tensão entre o inteligível e o sensível, o idealismo político e a ‘antropologia política’, o direito político e as instituições políticas efetivas exige a filosofia da história” (Terra, 1995: 161-162).

Estando, portanto, no exercício da razão a realização dos dispositivos naturais do homem, Kant à guisa de conclusão na 8a proposição de Idee:

pode-se considerar a história da espécie humana, em seu conjunto, como a realização de um plano oculto da natureza para estabelecer uma constituição política (Staatsverfassung) perfeita interiormente e, quanto a este fim, também exteriormente perfeita, como o único estado no qual a natureza pode desenvolver plenamente, na humanidade, todas as suas disposições” (Kant, Idee: 20).

Entretanto, o problema está em saber se do conjunto de realizações empíricas do homem, encontramos algo revelador de um tal curso do propósito da natureza. A experiência reveladora deste curso é limitada, pois a natureza (ideal) exige muito tempo para se cumprir. A pequena parte que humanidade percorreu permite apenas detectar de “maneira muita incerta a forma de sua trajetória e a relação das partes com o todo”; e que entretanto “o princípio geral da constituição sistemática da estrutura do mundo e o pouco que se observou bastam para concluir com segurança a respeito da realidade de tal ciclo” (Kant, Idee: 20-22).

A construção da narrativa da história do mundo não é aleatória. “Não é suficiente então seguir a trama teleológica que torna possível o progresso; é preciso isolar, no interior da história, um acontecimento que terá valor de signo” (Foucault, 1984: 107). Para se aferir um progresso do gênero humano é preciso detectar a causa do progresso, transformando-o em signo para o passado e para o futuro. Kant refere-se a um “sinal histórico (signum rememorativum, demonstrativum, prognostikon), que poderia demonstrar a tendência do gênero humano, olhada no seu todo, não segundo os indivíduos” (Kant, 1993: 101). Este evento, significativo e indicativo de uma aptidão do gênero humano para a perfectibilidade, é, para Kant, o entusiasmo gerado nos participantes e espectadores da Revolução Francesa.

O signo kantiano não é a concepção ideológica revelada pela Revolução Francesa, e nem seu próprio evento histórico. Mas, “é simplesmente o modo de pensar dos espectadores que se revela publicamente neste jogo de grandes transformações, e manifesta, no entanto, uma participação tão universal e, apesar de tudo, desinteressada dos jogadores num dos lados, contra os do outro” (Kant, 1993: 101). Da “participação” de um povo rico espiritualmente no processo revolucionário, Kant infere a causa moral do progresso da humanidade: “o verdadeiro entusiasmo refere-se sempre apenas ao ideal e, claro está, puramente moral”. Conseqüentemente, esta causa moral intervém em dois aspectos: o do direito de um povo que não deve ser impedido por outros poderes de se auto-proporcionar uma constituição que creia ser boa; e o princípio que afirma ser conforme ao direito e à moral apenas a constituição que impede toda guerra ofensiva (Kant, 1993: 102)(27).

4.3.O Papel das Idéias Reguladoras na Filosofia Política de Norberto Bobbio

Temos em Bobbio, como em Kant, uma História Racional pontuada de signos emblemáticos e rememorativos. A sua historicidade dos direitos do homem é a comprovação da existência de um processo de universalização dos direitos fundamentais. Por uma perspectiva prática, constatamos um engendramento das instituições políticas decorrente do processo de lutas emancipatórias. Podemos, agora, complementar o desenvolvimento da perspectiva teórica, que se dá perante a prática, identificando o legado da História Universal kantiana em Bobbio.

Bobbio ao se valer do idealismo kantiano, pensa o progresso sócio-jurídico das sociedades. Ele mostra que os organismos internacionais dos direitos do homem não possuem força coercitiva suficiente para fazer valer efetivamente os seus acordos, convenções e tratados; e, critica com maior fervor ainda, os sistemas jurídicos nacionais que promulgam estes acordos, mas consideram os direitos fundamentais como normas sem eficácia, denominando-os “pudicamente” de normas programáticas. Neste sentido, como filósofo, Bobbio busca fortes justificativas e fundamentos para que os direitos dos homem de terceira e quarta geração sejam positivados e efetivados nos Estados nacionais e na comunidade internacional.

A filosofia da história kantiana é apresentada por Bobbio como instrumento crítico e indicativo de reformulações dos sistemas jurídicos. Ou melhor, vale-se das propostas kantianas para à Paz Perpétua como modelo ideal. O direito cosmopolita se apresenta como ideal de absoluta perfeição de uma organização política mundial, face a relativa perfeição que se encontra o processo de desenvolvimento das instituições internacionais de direitos do homem. É dessa forma que Bobbio apresenta o processo de universalização em etapas; e profetiza o direito cosmopolita, que tem seu início com a Declaração de 1948, um sinal concreto da positivação universal dos direitos do homem.

Ao criticar e propor reformas para os sistemas normativos, localizamos Bobbio na esfera da Teoria da Justiça. Entretanto, esta delimitação fica prejudicada, uma vez que critica e pretende reformar uma realidade concreta, os sistemas jurídicos. Assim, Bobbio ao mesmo tempo que realiza uma história dos direitos do homem por meio das Ciências Sociais, pontua criticamente o próprio processo que se dá contraditoriamente: a denominação de institutos cujas nomenclaturas não correspondem a realidade das relações (cartas outorgadas, quando são conquistadas; normas programáticas, etc.); o que revela o conservadorismo do processo por parte daqueles que detém o poder. Mesmo diante desta ambigüidade que percorre a história, Bobbio busca um processo de universalização dos direitos do homem, que per analogiam podemos relacioná-lo ao fio condutor a priori do progresso da humanidade realizado por Kant. Pois, esta linha evolutiva opera em ambos como um parâmetro crítico das instituições políticas. Uma critica não apenas do parternalismo das monarquias, mas também do uso retórico dos direitos do homem, que, na atualidade, são proclamados mas não efetivados.

Bobbio apresenta a Declaração de 1948 como uma prova que nos possibilita profetizar, juntamente com Kant, o direito cosmopolita. Contudo, a interpretação do signo histórico é diferente nos dois autores. Kant aponta um fio condutor a priori a partir de signos históricos (signum rememorativum, demonstrativum, prognostikon), que revelam a boa vontade moral da humanidade, ou melhor, um sinal puramente moral, e que, por isso, possa representar um ideal. Bobbio, por sua vez, limitando o idealismo kantiano, desenvolve uma história cujos pontos de ruptura são resultados das conquistas institucionais que forneceram gradativamente maior efetividade aos direitos do homem.

Com efeito, Bobbio ao analisar a passagem dos sistemas fracos para os sistemas fortes, identifica a progressividade dos direitos, ou seja, aponta a efetividade crescente dos direitos do homem. Este é, portanto, o processo de universalização de Bobbio: “Os direitos do homem nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares, para finalmente encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais. A Declaração [de 1948] contém em germe a síntese de um movimento dialético, que começa pela universalidade abstrata dos direitos naturais, transfigura-se na particularidade concreta dos direitos positivos, e termina na universalidade não mais abstrata, mas também ela concreta, dos direitos positivos universais” (E D, 30). Com isto, podemos inscrever Norberto Bobbio num prolongamento do projeto iluminista do século XVIII, cujos ideais de uma sociedade de homens livres e iguais, por serem utópicos não se efetivaram, mas proporcionaram uma progressividade na conquista de direitos.

5. Conclusão

Bobbio sintetizou a discussão dos direitos do homem numa marcante passagem: “sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos (...) Haverá paz estável, uma paz que não tenha a guerra como alternativa, somente quando existirem cidadãos não mais apenas deste ou daquele Estado, mas do mundo” (E D, 1; grifamos). Restou, portanto, demarcado duas preocupações de Bobbio ao desenvolver o tema dos direitos humanos: a constituição dos sistemas normativos, a partir da conquista dos direitos do homem ao longo da história ocidental; e o sentido de uma progressividade destas conquistas rumo à paz perpétua, a partir da constatação empírica de uma permanente transformação dos sistemas de constituição dos Estados e das relações internacionais.

Sob a perspectiva histórica e empírica , Bobbio analisou a inversão radical da relação política que adveio da formação do Estado Moderno: o súdito conquistou o status de cidadão, de sujeito que detém parte da soberania. A inversão se deu principalmente em virtude das guerras de religião, “através das quais se foi afirmando o direito à resistência à opressão, o qual pressupõe um direito ainda mais substancial e originário, o direito do indivíduo a não ser oprimido” (E D, 4). A pressuposição de um direito substancial e originário, parte do princípio que o homem individualmente possua direitos inerentes a sua natureza. Esta concepção se opõe a concepção orgânica da sociedade, que pode ser sintetizada pela máxima de extração aristotélica: “na ordem natural a cidade tem precedência sobre a família e sobre cada um de nós individualmente” (A Política, 1253a)(28).

A concepção individualista nasce de uma atribuição de direitos naturais aos seres humanos em seu estado pré-político. A organização social posterior ao contrato social deve respeitar e construir uma Constituição Civil em conformidade a esses direitos. Esta condição hipotética da natureza humana contempla a necessidade de se racionalizar as relações políticas no momento da formação do Estado Moderno, no sentido de limitar o poder do Estado e assegurar as liberdades individuais. Num segundo momento, são afirmados os direitos de participação dos indivíduos no poder político, os chamados direitos políticos de liberdade. E por fim, com o surgimento de diferentes classes, é exigida a efetivação de novos valores como o bem-estar e os de igualdade não apenas formal, os chamados direitos sociais. Direitos de liberdade, direitos políticos e direitos sociais são fases do desenvolvimento dos direitos do homem, que têm emergido “gradualmente das lutas que o homem trava por sua própria emancipação e das transformações das condições de vida que essas lutas produzem” (ED, 32).

Nos escritos sobre os direitos humanos de Bobbio, é sempre recorrente uma perspectiva teórica e filosófica que concebe a conquista destes direitos como signo históricos de uma progressividade do gênero humano. No ensaio que leva o mesmo título do livro, mas que foi pronunciado com diferente título em 1987 na Universidade de Madrid, Bobbio desenvolveu o tema dos direitos do homem sobre a perspectiva da Filosofia da História. Bobbio fundamenta as transformações do mundo, que tentam torná-lo menos hostil, na consciência moral de influência cristã do homem europeu. Partindo, para tanto, de citações kantianas sobre a Revolução Francesa como um indicativo da disposição moral da humanidade para a busca do melhor —mesmo que sem poder predizer um acontecimento futuro a partir desta causa(29). Após fazer um breve percurso dos códigos morais da antigüidade, conclui que “a moeda da moral foi tradicionalmente olhada mais pelo lado dos deveres do que pelo lado dos direitos”, pois, a função primária da lei sempre foi a de comprimir, não a de liberar, a de restringir e não a de ampliar, a de corrigir a árvore torta e não deixá-la crescer selvagemente (ED, 56 e 57). Neste sentido, Bobbio evocou o jusnaturalismo como doutrina esclarecida (“aufgeklärten”), que entende o homem como um ser capaz de se desvencilhar da direção de um tutor, ou seja, de agir segundo o seu próprio entendimento(30): “A doutrina filosófica que fez do indivíduo, e não mais da sociedade, o ponto de partida para a construção de uma doutrina da moral e do direito foi o jusnaturalismo, que pode ser considerado, sob muitos aspectos (e o foi certamente nas intenções dos seus criadores), a secularização da ética cristã” (ED, 58).

A doutrina dos direitos do homem, desde seu primeiro aparecimento no pensamento políticos dos séculos XVII e XVIII, “já evoluiu muito, ainda que entre contradições, refutações, limitações. Embora a meta final de uma sociedade de [homens] livres e iguais, que reproduza na realidade o hipotético estado de natureza, precisamente por ser utópica, não tenha sido alcançada, foram percorridas várias etapas, das quais não se poderá facilmente voltar atrás” (ED, 62, grifamos). O que caracteriza a conquista das etapas e, ao mesmo tempo, proporciona a segurança necessária para que não renunciemos a estas conquistas é o processo de positivação dos direitos do homem em Constituições Estatais e em acordos, tratados e convenções internacionais.

Com efeito, Bobbio elevou a Declaração da ONU de 1948 a um signo histórico demonstrativo de perfectibilidade da humanidade: “A Declaração Universal representa a consciência histórica que a humanidade tem dos próprios valores fundamentais na segunda metade do século XX. É uma síntese do passado e uma inspiração para o futuro” (E D, 34; cf. também pp. 139 e 140). A partir desta Declaração, desencadeou-se uma série de outras declarações, tratados e convenções, numa contínua e progressiva discussão sobre os direitos do homem, tanto no sentido da produção material (dos direitos políticos da mulher, da criança, do deficiente mental e físicos), como também no sentido da transferência de poder para organismos internacionais para promover, controlar e garantir em face dos países signatários destes acordos (E D, 39 e ss). Tornando, desta forma, os cidadãos dos países signatários sujeitos jurídicos do direito internacional; o que nos possibilitaria profetizar, segundo À Paz Perpétua de Kant, o Direito Cosmopolita. Este que deverá ser o direito público dos homens em geral, cuja infração num lugar seja sentida em todos os outros lugares da Terra(31) (E D, 139).

Ainda, sob a perspectiva histórica, Bobbio examina o sentido que a palavra direito adquiriu ao longo do tempo na expressão “direitos do homem”, deslocando a discussão para a esfera da “Teoria da Ciência do Direito”. Ele faz a distinção entre direitos e exigências, sendo que estas, apesar de fundamentadas em argumentos históricos e filosóficos, não são efetivamente protegidas por uma obrigação correlata; por isso prefere chamá-las por exigências não constitucionalizadas. A partir desta distinção, Bobbio caracteriza as mudanças de status dos direitos do homem nos sistemas jurídicos Estatais e Internacionais, ou seja, demarca as fases de desenvolvimento a partir da previsão destes direitos por um sistema, seja ele nacional ou internacional, que lhes proteja mediante força legitimamente posta. Este entendimento neopositivista(32) do direito pode ser observado na seguinte passagem: “só será possível falar legitimamente de tutela internacional dos direitos do homem quando uma jurisdição internacional conseguir impor-se e superpor-se às jurisdições nacionais, e quando se realizar a passagem da garantia dentro do Estado —que é ainda a característica predominante da atual fase— para a garantia contra o Estado” (E D, 40).

Para Bobbio, “o problema filosófico dos direitos do homem não pode ser dissociado do estudo dos problemas históricos, sociais, econômicos, psicológicos, inerentes à sua realização: o problema dos fins não pode ser dissociado do problema dos meios” (ED, 24). Portanto, o sentido da história somente pode ser derivado da realidade concreta: os direitos

“nascem quando devem ou podem nascer. Nascem quando o aumento do poder do homem sobre o homem ou cria novas ameaças à liberdade do indivíduo, ou permite novos remédios para as suas indigências: ameaças que são enfrentadas através de demandas de limitações do poder; remédios que são providenciados através da exigência de que o mesmo poder intervenha de modo protetor” (ED, 6).

A filosofia do direito de Bobbio é, conforme o professor Oliveira Júnior,

“a busca de uma idéia de justiça relativizada pelas condições metodológicas de apreensão do saber jurídico no âmbito histórico. Tal idéia, não poderia ser nem absoluta, em sentido jusnaturalístico, nem puramente racional, no sentido platônico ou kantiano, e nem mesmo estritamente empírica, ao modo dos realismos. Assim, se poderia dizer que tinha em mente uma idéia de justiça como uma abstração intelectual elaborada a partir da ‘observação’ de determinadas necessidades fundamentais que se apresentam, num dado momento histórico, como dignas de atenção por parte do cientista” (1994: 43-44)(33).

Bobbio trabalhou no sentido de limitar o idealismo da doutrina clássica liberal sem purificar o direito a ponto de torná-lo tão relativo que sirva para legitimar regimes autoritários. Ele se vale de uma crítica ideológica e valorativa de base filosófica, possibilitando-lhe realizar um estudo sobre os direitos do homem sem reduzi-lo a uma mera abstração aos moldes de um jusnaturalista clássico, e ainda, sem se deixar levar pela cientificidade do formalismo jurídico.

Na análise da historicidade dos direitos do homem de Bobbio encontramos a mesma dualidade kantiana entre o dever moral e a ação concreta, uma vez que, como já dissemos, trabalha sob duas perspectivas, a teórica e a prática. Sua historicidade se expressa num contínuo processo de conquistas de direitos cujo fio condutor é a universalização dos direitos do homem. Dessa forma é que apresenta um processo progressivo e cumulativo de signos históricos diferenciados por fases. É, portanto, uma inegável marca do kantismo por apresentar um desenvolvimento no sentido da produção normativa e da efetivação dos direitos fundamentais por meio das lutas emancipatórias que revelam a passagem da menoridade à maturidade.

Neste sentido, a crítica especulativa expõe as suas limitações em conhecer a liberdade como um objeto concreto, mas demonstra também a possibilidade de uma autodeterminação espontânea da vontade. Reside nesta autonomia de vontade o agir moral kantiano : age de tal maneira que a máxima de tua ação possa tornar-se uma lei universal. Esta é uma ação livre e incondicionada, que, de outro lado, podem ser pervertidas pelas paixões e inclinações da cultura humana que condicionam sua vontade. Ou melhor, trata-se da dualidade kantiana entre o agir puramente moral e o agir condicionado pelo mundo sensível. Kant para evitar um choque entre idéia e realidade, o que resultaria um pensamento revolucionário, propõe uma filosofia da história, uma proposta reformadora, que apazigua à medida que busca um sentido progressivo do devir a partir de um fio condutor a priori revelador do progresso moral da Historia do Mundo (“Weltgeschichte”)(34).

Procuramos mostrar o legado da Filosofia kantiana na concepção de direitos do homem Bobbio. Relacionamos, em fim, os planos transcendental e empírico em Kant e teórico e prático em Bobbio. Entretanto, na delimitação destas duas dimensões, Bobbio apresenta um processo de universalização dos direitos do homem, que evidenciou sua preocupação em restringir o idealismo kantiano.

A restrição ao kantismo feita por Bobbio possui duas matrizes. Uma está na própria transformação da sociedade que se revela complexa e mutante; a outra matriz é a sua filiação ao juspositivismo kelseniano.

Kant possibilitou o conhecimento científico do direito a partir do imperativo categórico, um postulado da razão pura prática. Este postulado fundamenta o conceito de direito num ideal de coexistência das liberdades. Com base neste fundamento, Kant pensa o homem como ser autônomo e livre moralmente para realizar uma escolha, que é boa se for puramente moral. Mas nem todas as vontades do homem são boas, uma vez que a vontade humana pode também ser impulsionada pelas inclinações psicológicas ou passionais. Desta forma é que Kant afirma a probabilidade da realização do Ideal: pode-se afirmar que o homem reúne as condições de possibilidade de se desvencilhar de um tutor e alcançar a maioridade, mas não que irá se desvencilhar. Nesta tensão entre idéia e realidade constata-se o progresso da humanidade, somente se o ato de amadurecimento não for de um homem singularmente, mas do gênero humano.

Kelsen restringiu esta idealidade em sua Teoria Pura do Direito, propondo uma ciência neutralizada de valores. Para tanto, levou às ultimas conseqüências a análise estrutural e lógica dos sistemas normativos, contrapondo a ciência do direito à valoração proposta pelos jusnaturalistas. Mas, é justamente esta preocupação com a neutralidade que revela a sua limitação epistemológica: o ceticismo ético do juspositivismo produziu um relativismo que desfocou o problema da ética, ou melhor da constituição civil perfeita. É neste contexto da cultura ocidental que os regimes ditatoriais constitucionalizados ou não surgiram. Desta forma surgiu um problema para os pensadores da segunda metade do século XX: de um lado se faz necessário um fundamento abstrato que afaste os relativismos; e de outro, que o sistema seja forte para que suas normas sejam efetivadas.

Neste sentido, a filiação parcial de Bobbio ao positivismo kelseniano, no que diz respeito a cientificidade da estrutura dos sistemas jurídicos e sua força coercitiva, nos forneceu elementos para melhor entender suas críticas ao idealismo clássico. E de outro lado, a filosofia da história kantiana, objeto de nosso trabalho, foi assumida pelo autor italiano como parâmetro crítico, ou seja, como um indicativo para a reformulação dos sistemas jurídicos. Portanto, Bobbio serve-se do idealismo kantiano para apresentar sua Teoria da Justiça. Assim, realiza uma filosofia que apresenta fortes justificativas para que os direitos fundamentais de terceira e quarta geração sejam positivados e efetivados nos Estados nacionais e na comunidade internacional.

A filosofia do direito de Norberto Bobbio é uma filosofia de análise estrutural e funcional dos sistemas jurídicos nacionais e internacionais sob o ponto de vista crítico, cujo âmbito está delimitado pelos problemas valorativos e ideológicos constituídos historicamente. De um lado, uma esfera científica cujo objeto é o direito posto; de outro, a esfera filosófica que critica a realidade sócio-jurídica. Nas palavras de Bobbio: “não há como se fazer ciência sem se fazer filosofia, mas fazer ciência sem filosofia é a única maneira de voltar a dar à ciência sua função objetivamente investigadora e à filosofia sua função crítica e reformadora” (C T D, 89).

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6. Bibliografia

Obras de Immanuel Kant

KANT, Immanuel. (1993). Conflito das Faculdades, Lisboa: Edições 70;

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_____(1987). Crítica da Razão Pura – Os Pensadores, São Paulo: Editora Abril

_____(1995). Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Porto: Porto Editora;

_____Idéia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita, São Paulo: Ed. Brasiliense, pp 9-24;

_____(1965). Scritti Politici e di filosofia della storia e del diritto, trad. Gioele Solari e Giovanni Vidari, Turim: Unione Tipografico-Editrice Torinese;

_____(1985). “O que é esclarecimento?”. In: Textos Seletos, Petrópolis: Ed. Vozes, pp. ;

Obras de Norberto Bobbio

BOBBIO, Norberto. (1980). Contribuicion a la Teoria del Derecho - Edicion a cargo de Alfonso Ruiz Miguel. Valencia: Fernando Torres;

_____(1995). “Direito”. In: Bobbio e oo. Dicionário de Política. Vol. 1. Brasília: UnB, pp. 349-353;

_____(1995). Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant, Brasília: Ed. UnB;

_____(1992). A Era dos Direitos, São Paulo: Campus;

_____(1992). O Futuro da Democracia. Uma defesa das regras do jogo, São Paulo: Paz e Terra;

_____(1995). Liberalismo e Democracia, São Paulo: Brasiliense;

_____(1996). O Positivismo Jurídico - Lições de Filosofia do direito, São Paulo: Ícone.

Obras de comentadores de Kant

FOUCAULT, Michel. (1984). FOUCAULT, Michel, (1984) “O que é Iluminismo”, in Dossier - Últimas Entrevistas, trad. Katharina von Büllow, Rio de Janeiro: Ed. Taurus, pp. 103-112;

HERRERO, Francisco Javier. (1975). Religión e Historia en Kant, Madrid: Editorial Gredos;

TERRA, Ricardo Ribeiro. (1995). A Política Tensa - Idéia e Realidade na Filosofia da História de Kant, São Paulo: Iluminuras;

ZINGANO, Marco Antônio. (1989). Razão e História em Kant. São Paulo: Brasiliense.

Outras obras citadas

ASTER, Ernest von, (1943) Historia de la Filosofia, Santiago de Chile: Ed. Zig-Zag;

ARISTÓTELES. (1985). A Política. Trad. Mário da G. Kury. Brasília: Ed. da UnB;

CHAUÍ, Marilena. (1994). Introdução à História da Filosofia. Vol. I, São Paulo: Brasiliense.

DÍAZ, Elías (1982). Sociologia y Filosofia del Derecho. Madrid: Tecnos;

HOBSBAWM, Eric J. (1996). A Revolução Francesa. São Paulo: Paz e Terra;

KELSEN, Hans. (1987). Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes;

LAFER, Celso. (1991). A Reconstrução dos Direitos Humanos - Um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras;

NINO, Carlos Santiago. (1984). Introducción al Análisis del Derecho. Buenos Aires: Editorial Astrea;

OLIVEIRA JÚNIOR, José Alcebíades de. (1994). Bobbio e a Filosofia dos Juristas. Porto Alegre: Sergio A. Fabris;

RUIZ-MIGUEL, Alfonso. (1983). Filosofia y Derecho en Norberto Bobbio. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales;

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_____(1995) Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant, Brasília: Ed. UnB;

DELEUZE, Gilles, (1983) A Filosofia Crítica de Kant, Lisboa: Edições 70;

FOUCAULT, Michel, (1984) “O que é Iluminismo”, in Dossier - Últimas Entrevistas, trad. Katharina von Büllow, Rio de Janeiro: Ed. Taurus, pp. 103-112;

_____(1996) “What is Critique?” in What Is Enlightenment? Eighteenth-Century Answers and Twentieth-Century Questions, trad. para o inglês de Kevin Paul Geiman, coord. James SCHIMDT, Berkeley, Los Angeles e London: University California Press, pp. 382-398;

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7. Notas

1 - As abreviações dos títulos das obras de Norberto Bobbio seguem as convenções da página 4.

2- Ver “Scienza del diritto e analisi del linguaggio” publicado em 1950 e constante da organização de textos de Bobbio feita por Ruiz-Miguel em Contribuición a la Teoria del Derecho.

3 - Esta relação de validade jurídica se segue até a de mais alto grau, qual seja a constituição de um Estado. A norma de mais alto grau de Estado, por sua vez, tem seu fundamento de validade na norma hipotética fundamental que é um pressuposto lógica-transcendental do qual deriva a validade objetiva de todo o ordenamento. Assim, Kelsen possibilitou o conhecimento científico do direito independentemente da relação do direito com a justiça.

4 - Sobre esta subdivisão da Filosofia do direito ver Elías DÍAZ, Sociologia y Filosofia del Derecho, 1982, pp. 260 a 267 e também, José Alcebíades de OLIVEIRA JÚNIOR, Bobbio e a Filosofia dos Juristas, 1994, pp. 29 a 35.

5- Ver também, Tercio Sampaio Ferraz Jr. A Ciência do Direito, 1977, pp. 30 e 31.

6- Celso Lafer. A Reconstrução dos Direitos Humanos - Um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt, p. 19. Este diálogo se viabiliza porque, de um lado, o jusfilósofo discute a erosão do paradigma do Direito Natural e os limites metodológicos da Filosofia do direito e, de outro, uma filósofa, que se autodenomina de tradição alemã, que reage “à descontinuidade, partiu das dispersão dos fragmentos e de um esforço de reconciliá-los para buscar —um pouco à modo de seu amigo Walter Benjamim— um caminho para encarar a ruptura com a tradição como fato acabado, trazido pelo autoritarismo” que esfacelou padrões e categorias que compõem o repertório da tradição ocidental” (pp. 80 e 81).

7 - Não só os regimes totalitários do início do século XX, como também os chamados regimes burocráticos autoritários dos anos 60 e 70 do Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, Portugal e Grécia, colocaram em questão o formalismo jurídico. O positivismo jurídico clássico retira da discussão de um sistema jurídico a legitimidade de quem faz a lei ou os critérios de estabelecimento do poder. Assim, em detrimento da relação do direito com o fenômeno social, ressalta o caráter lógico-formal dos aspectos da validade e eficácia da norma. Esta perspectiva lógica de subsunção do fato à norma terá, contudo, para as correntes adversárias uma conseqüência no plano da Ética Jurídica.

8 - Bobbio adota estes conceitos baseando-se na “Introdução geral’ à antologia de documentos, editada por Gregorio Peces Barba, “Derecho positivo de los derechos humanos: conversão em direito positivo, generalização, internacionalização” (Madri, Editorial Debate, 1987, pp. 13-14; cf. também E D, 50).

9 - A palavra despótico tem origem na palavra grega “despótes”, que é o pai de família, o chefe da casa (“oîkos”, conjunto de todas as pessoas, escravos, animais, bens). O “depótes” tem o poder absoluto de vida e de morte sobre tudo que pertence a esfera da “oîkos”, e obedecendo apenas à sua própria vontade (M. Chauí, Introdução à História da Filosofia, Vol. I, “Glossário de Termos Gregos”, p. 345).

10 - Bobbio no texto “A Herança da Grande Revolução” faz um breve levantamento das críticas feitas ao jusnaturalismo pelas principais correntes filosóficas do século XIX, que mesmo partindo de diferentes pontos de vista e com diversas motivações, empreenderam um ataque contra o jusnaturalismo: “elas têm, como ponto de partida, a refutação do direito natural, e, como ponto de chegada, a busca de um fundamento para o direito diverso daquele que o põe na natureza originária do homem”. Elencamos, assim, as seguintes críticas:

a) Bentham: o direito natural é uma fantasiosa invenção já que o direito é produto da autoridade do Estado, e sendo que este é controlado (limitado) pelo princípio da utilidade, ou seja, pelo princípio da “felicidade do maior número”;

b) Historicismo: pela versão estritamente jurídica, da Escola Histórica do Direito, o direito deriva do Espírito do Povo, razão pela qual cada povo teria seu direito, com isso, um direito universal é uma contradição em termos. Ou pela versão filosófica hegeliana em que liberdade e igualdade não são derivadas da natureza, mas são, ao contrário, “um produto e um resultado da consciência histórica”, que não devem permanecer sob formas abstratas;

c) Positivismo Jurídico: os direitos naturais não são mais do que direitos públicos subjetivos, “direitos reflexos” do Poder do Estado, são uma conseqüência da limitação que o Estado impõe a si mesmo. Não sendo, portanto, um limite anterior ao nascimento do próprio Estado. Após estas críticas, Bobbio se posiciona no sentido de que dificilmente poder-se-ia sustentar a doutrina dos direitos naturais tal como ela foi concebida, sem apresentar revisões ou concessões de ordem prática. “Pode-se muito bem afirmar que não existe outro direito além do direito positivo, sem por isso rechaçar a exigência da qual nasceram as doutrinas dos direitos naturais, que expressam de modo variado exigências de correção, de complementação e de mudança do direito positivo. Essas exigências ganham uma força particular quando são apresentadas como ‘direitos’, embora não sejam direitos no sentido próprio da palavra” (E D, 126 e 127).

11- Bobbio no livro Futuro da Democracia, uma defesa das regras do jogo, não deixa de revisar os conceitos iluministas: a “realidade que temos diante dos olhos é a de uma sociedade centrífuga, que não tem apenas um centro de poder (a vontade geral de Rousseau)... O modelo do estado democrático fundado na soberania popular, idealizado à imagem e semelhança da soberania do príncipe, era o modelo de sociedade monística. A sociedade real, sotoposta aos governos democráticos, é pluralista” (F D, 23).

12 - Bobbio ressalta a contextualização dos direitos do homem ao ironizar o exame da natureza humana feita por Locke. A natureza humana em que se deteve foi a do burguês ou do comerciante do século XVIII. “Se tivessem dito a Locke, campeão dos direitos de liberdade, que todos os cidadãos deveriam participar do poder político e, pior ainda, obter um trabalho remunerado, ele teria respondido que isso não passava de uma loucura” (E D, 33).

13 - Pode-se dizer que estas passagens d’A Era dos Direitos são uma síntese da discussão que Bobbio trava no livro Liberalismo e Democracia: no ensaio “A Revolução Francesa e os Direitos do homem”, ao tratar da inversão da relação política dos antigos para os modernos, diz que dessa “inversão nasce o Estado Moderno: primeiro liberal, no qual os indivíduos que reivindicam o poder soberano são apenas uma parte da sociedade; depois democrático, no qual são potencialmente todos a fazer tal reivindicação; e, finalmente, social, no qual os indivíduos, todos transformados em soberanos sem distinções de classe, reivindicam —além dos direitos de liberdade— também os direitos sociais, que são igualmente direitos do indivíduo” (E D, 100). Esta distinção em momentos de avanços nas conquistas de direitos fundamentais é de suma importância para que possamos identificar os sujeitos históricos presentes na disputa pelo poder. Uma vez conquistado o Estado liberal, suas características revelam a limitação de sua pretensa universalidade, pois o regime está voltado para aqueles que possuem propriedades. Nisto revela-se o desequilíbrio de forças, cuja busca pelo equilíbrio se inicia com a conquista do sulfrágio universal. Atualmente, fala-se de efetiva participação nas decisões políticas, uma vez que o desequilíbrio encontrou outras formas para se perpetuar. O ideal de que o homem deve ser regido por leis que a si mesmo ele se dá desde Rousseau já foi posto, mas como viabilizá-lo na prática das relações políticas; ou, por outro ponto de vista, sempre haverá um forte que submete um fraco, sendo o Direito um remédio mágico (phármakon) que busca a justiça, a liberdade e a igualdade para os que estão submetidos?

14 - No mesmo sentido os Direitos da Criança e do Adolescente. Estes direitos visam a qualificar a condição peculiar de desenvolvimento dos seres humanos nestas fases da vida. Na infância e na juventude é essencial para um regular desenvolvimento certas condições materiais, intelectuais e afetivas; condições estas de responsabilidade não só da família, mas também do Estado e da sociedade. Pois, possibilitar a paz para o desenvolvimento da Criança, refletirá na construção de uma sociedade cujo objetivo é a paz social. Entretanto vivemos numa contradição: as normas de direitos do homem não se conformam aos objetivos da sociedade capitalista. O nosso sistema está voltado para a produtividade e a riqueza material, que, por estes objetivos, não visa a paz social, e muito menos o desenvolvimento dos seres humanos.

15 - “Sociedade no direito” e “direito na sociedade” é uma distinção introduzida por Renato Treves. A primeira investiga a menor ou maior aplicação das normas jurídicas em determinadas sociedades (Estados e sistema internacional). A segunda investiga a função do direito no processo de mudanças sociais (apud N. Bobbio, E D, 73).

16 - Bobbio estabelece uma analogia histórica entre os dois processos de afirmação dos direitos do homem: um, perante os Estados Absolutos; o outro, perante os Estados pactuantes de Convenções de Direitos Humanos que passam a ter sua soberania limitada. O primeiro se dá com a formação dos Estados Modernos através da racionalização das relações de poder. O segundo processo estamos observando com a modificação do poder externo dos Estados em relação aos outros e com o aumento do caráter representativo dos organismos internacionais.

17 - Ricardo R. Terra apud M. Guérolt in Études de Philosophie Allemande, Hildesheim, 1977, Georg Olms Verlag, p. 71.

18 - Kant ao regular o conhecer pela estrutura da razão inerente ao homem (sujeito lógico), revoluciona a teoria do conhecimento por negar a corrente que parte das verdades inatas (Descartes e Leibniz); e por negar que a estrutura da razão é adquirida por experiência ou causada pela experiência (Hume). Coloca, com efeito, a estrutura da razão que é inata e universal no centro, e orbitando a sua volta os objetos que são a matéria (o conteúdo) provida da experiência; assim, a razão é a forma pela qual o conhecimento racional realiza a síntese entre uma forma universal e inata e um conteúdo particular oferecido pela experiência. Nas próprias palavras de Kant: “Até agora se supôs que todo o conhecimento tinha que se regular pelos objetos; porém todas as tentativas de mediante conceitos estabelecer algo a priori sobre os mesmos, através do que ampliaria o nosso conhecimento, fracassaram sob esta pressuposição. Por isso tente-se ver uma vez se não progredimos melhor nas tarefas da Metafísica admitindo que os objetos têm que se regular pelo nosso conhecimento, o que concorda melhor com a requerida possibilidade de um conhecimento a priori dos objetos que deve estabelecer algo sobre os mesmos antes de nos serem dados” (I. Kant. Crítica da Razão Pura, XVI, p.12.).

19 - Immanuel Kant. Scritti Politici e di filosofia della storia e del diritto di I. Kant, p. 404 e 405, in “Introduzione alla Dottrina del Diritto”.

20 - O problema subjacente ao referido binômio, constante da Metafísica dos Costumes, é a distinção entre Direito e Moral (ver BOBBIO, 1995: 49 e ss).

21 - Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Porto: Ed. Porto, 1995, p. 77; e Critica da Razão Pura – Os Pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 144.

22 - “O verdadeiro imperativo categórico só pode ser um mandato, que sai de nos mesmos, mediante o qual nós, ‘autônomos’, nos damos a nós mesmos a lei, somos ao mesmo tempo sujeito e objeto do mandato, a maneira do cidadão do Estado de Rousseau frente a lei do Estado” (ASTER, 1943: 297).

23 - Idéia de uma história universal do ponto de vista cosmopolita, 3a Proposição. A este texto de 1784 que Herrero faz um comentário muito esclarecedor: “si Hegel concibió la historia como ‘el progreso en la conciencia de la libertad’, fue porque Kant había abierto el camino para esto com su concepción de la historia como la progressiva realización del fin dado anticipadamente en la idea por la razón, o, com otras palavras, como la progresiva conquista de la libertad” (1975: 10).

24 - Este item foi extraído de nosso trabalho de iniciação científica A Filosofia da História de Immanuel Kant em Norberto Bobbio, sob orientação do Prof. Dr. Ricardo Nascimento Fabbrini, apresentado para o Conselho de Ensino e Pesquisa da PUC-SP em 17 de setembro de 1997.

25 - Santo Agostinho e Kant são marcos na reflexão sobre a história, uma vez que desenvolveram o conceito de antagonismo. Entretanto este conceito é absolutamente diferente nos dois filósofos: em Kant tem a ver com sua concepção de homem (os conflitos entre as tendências diversas em cada homem e dos homens entre si); e em Santo Agostinho, com o secular e o divino (Terra, 1995: 141). Segundo Terra, não se pode reduzir o pensamento histórico do século XVIII a uma mera secularização dos temas religiosos, como fazem os pensadores cristãos, ressaltando a perspectiva agostiniana de progresso dirigido para o celeste, um movimento histórico que é a luta entre o terreno e o celeste; ou como certos “nietzschianos” que denunciam as filosofias da história como mera secularização de elementos cristãos. “Os temas ressurgem em função de uma situação político-social inteiramente diferente da antiga e, mais ainda, boa parte dos elementos emprestados o são por inadequação terminológica. Já que a influência cristã é muito grande, torna-se difícil criar novas palavras que expressem adequadamente os novos conceitos” (Terra, 1995: 144).

26 - Nesta quinta proposição de Idee, constata-se a unidade e coerência com o texto “Resposta à pergunta: o que é esclarecimento?”, inclusive em relação a proximidade aos termos utilizados: “que porém um público se esclareça [aufkläre] a si mesmo é perfeitamente possível; mais que isso, se lhe for dada a liberdade, é quase inevitável” (Kant, 1985: 102).

27 - A discussão desta passagem de O Conflito das Faculdades é feita por Norberto Bobbio em A Era dos Direitos (1992: 135), assim como por Ricardo Terra em A Política Tensa (1995: 158).

28 - Tradução de Mário da Gama Kury, 1985, p. 15.

29 - Immanuel Kant. O Conflito das Faculdades, 1794, pp. 100 e 101.

30 - Immanuel Kant. “Resposta à Pergunta: Que é Esclarecimento [Aufklärung]?”, 1783, in Immanuel Kant Textos Seletos, A 481, p. 100.

31 - Immanuel Kant. À Paz Perpétua, 1795, 360, p. 46.

32 - Ver de José Alcebíades de Oliveira Júnior, Op cit, p. 135, o item “Estruturalismo e funcionalismo na teoria jurídica”.

33 - José Alcebíades Oliveira Júnior apoiado em Norbeto Bobbio, Teoria della Scienza Giuridica.

34 - Ricardo Ribeiro Terra. A Política Tensa - Idéia e Realidade na Filosofia da História de Kant, 1995, pp. 156 e ss.