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Ética e Justiça RESENHA TUGENDHAT, Ernst. Egozentrizität und Mystik: eine anthropologische Studie. C. H. Beck Verlag: München, 2003. Danilo Persch (Doutorando em Filosofia – UFSCar – São Carlos – SP; Orientador: Profº. Dr. Wolfgang L. Maar) © - PROIBIDA PUBLICAÇÃO SEM CONSENTIMENTO DO AUTOR - © 1.1 - Sobre o autor Considerado, atualmente, uma das figuras mais representativas da filosofia alemã, Ernst Tugendhat nasceu em Bünn – Tchecoslováquia – em 08 de março de 1930. Sua bibliografia geral apresenta-nos uma sucessão de estudos sobre autores e temas fundamentais da tradição filosófica em forma de interpretação e comentários críticos. Por isso, a compreensão dos textos de Tugendhat requer uma certa familiaridade com Aristóteles, Husserl e Heidegger, como também de Frege, Wittgenstein, Strawson, Kant, Habermas e outros. Tugendhat nunca relata simplesmente o que os filósofos dizem, mas os contrasta uns com os outros num movimento de ida e volta, o que, por sua vez, proporciona um profundo alcance filosófico das suas teorias. Quando ele fala de um clássico, não é simplesmente para resumi- lo, mas para expor um novo viés a uma teoria já elucidada. A evolução de seu pensamento fez-se por etapas e sua filosofia pode ser dividida em três distintas fases: fenomenológica (ontologia), analítica (lingüística) e ética. Seus trabalhos mais citados são: Der Wahrheitsbegriff bei Husserl und Heidegger. Berlin: Walter de Gruyter & Co., 1967; Vorlesungen zur Einführung in die sprachanalytische Philosophie. Frankfurt a/Main: Suhrkamp, 1976. (Lições introdutórias à filosofia analítica da linguagem. Trad. Mario Fleig (org.) et al. Primeira Parte. Primeira Versão. Ijuí: UNIJUÍ, 1992); Selbstbewußtsein und Selbstbestimmng: Sprachanalytische Interpretationen. Frankfurt a/Main: Suhrkamp, 1979. (Autoconciencia Y Autodeterminación: Una interpretación lingüístico-analítica. Trad. de Rosa Helena Santos-Ihlau. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1993); Vorlesungen über Ethik. 3. Aufl. Frankfurt a/Main: Suhrkamp, 1993. (Lições sobre ética. Trad. Ernildo Stein et al. Petrópolis: Vozes, 1997); Diálogo em Letícia. Trad. Maria Clara Dias, Ana de Rezende. Col. Filosofia – 133. Porto Alegre: Edipucrs, 2002. Em maio e junho de 2001 Tugendhat proferiu conferências em várias Universidades do Brasil: Goiânia, Brasília, Natal, João Pessoa, Salvador, Porto Alegre, Canoas, São Leopoldo, Santa Maria, Ijuí e Rio de Janeiro. Estas conferências - num total de cinco - foram traduzidas e editadas. (TUGENDHAT, Ernst. Não somos de arame rígido: conferências apresentadas no Brasil em 2001. Organizado por Valério Rohden. Canoas: ULBRA, 2002. 112 p. (Série Filosofia; 1). Estas conferências atestam que Tugendhat continua redefinindo seus pontos de vista como em ocasiões anteriores, objetivando sempre a maior clareza conceitual possível. Atualmente Tugendhat faz parte do corpo docente visitante do programa de pós-graduação em filosofia da PUCRS. Em abril e maio de 2003, ele ministrou nesta universidade, em forma de seminário, a disciplina Conhecimento e linguagem: o livro azul de Wittgenstein. 1.2 - Egocentricidade e mística: um estudo antropológico Kant, nos anos de 1770, ocasião em que trabalhou como professor na Universidade de Königsberg , formulou e buscou respostas para quatro perguntas fundamentais: 1) o que eu posso saber?; 2) o que eu devo fazer?; 3) o que eu posso esperar?; 4) o que é o homem? Posteriormente, estas quatro perguntas reaparecem na Lógica, obra organizada e editada por seu aluno Jäsche em 1800. A cada uma destas perguntas foi agregada uma área de conhecimento. À primeira corresponde a metafísica, à segunda a moral, à terceira a religião e finalmente a antropologia. Esta última (antropologia), na prática, tem a ver com a forma que os indivíduos dão a si mesmos. Portanto, está relacionada com o que cada um é e, respectivamente, o que pode ser e será. A substância que possibilita esta auto determinação nos seres racionais chama-se “liberdade”. Por que falar de Kant quando o assunto é Tugendhat? Porque penso que em seu novo livro – Egozentrizität und Mystik – Tugendhat reformula criticamente esta quarta pergunta antropológica de Kant. O que é o homem? passa a ser: como devemos nos entender enquanto seres humanos? O diferencial da pergunta de Kant para a pergunta de Tugendhat consiste na passagem do “o que” para o “como”. Na busca de respostas para perguntas antropológicas do tipo: o que significa a relação ou o comportamento do “eu” comigo mesmo? Como se diferencia a relação do ser humano consigo mesmo em relação à egocentricidade das outras espécies?, Tugendhat parte para a defesa de que há conhecimentos racionais que dão conta destas problemáticas, se diferenciando, portanto, do tradicionalismo, que analisa este tipo de questões antropológicas somente enquanto “história da antropologia”. Na introdução, o autor explica por que fala tanto em “eu” e menos em “nós” ou das “pessoas”. Ele diz que não podemos de antemão dizer “eu”, mas o que interessa nesta análise são certas qualidades específicas da espécie humana, e nós temos tais qualidades porque falamos uma linguagem proposicional. E é somente pelo fato de usarmos uma linguagem proposicional que podemos dizer “eu”. Mesmo sendo correto, nas reflexões filosóficas e na forma como nos entendemos, falar na primeira pessoa, Tugendhat pensa ser importante nunca perder de vista o contraste que existe entre humanos com outras espécies. Dessa forma, ser pessoa significa agir e viver significa decidir. Em contraposição aos animais que têm comportamentos instintivos, e as plantas que apenas se desenvolvem, o ser humano age. Ele é o autor das suas ações, portanto, é também responsável por seus atos. Querendo ou não, cada indivíduo é obrigado a tomar decisões. Até mesmo o fato de, em certos casos, não tomar decisão alguma (neutralidade), já é uma decisão. A pergunta fundamental que aí está em jogo é: quais ações ou qual decisões são certas ou erradas? Em seu livro, Tugendhat trabalha as questões antropológicas com base no método da filosofia analítica. A linguagem humana, por causa da estrutura e do uso de fundamentos, permite o entendimento. O que caracteriza os fundamentos da linguagem são afirmações, negações e, inclusive – como foi exposto no parágrafo anterior – a não tomada de qualquer posição, ou seja, a neutralidade. A capacidade de reflexionar, de perguntar sobre os fundamentos e contra fundamentos, é o que pode ser denominado ou entendido como racionalidade. Esta racionalidade é também considerado como o que é certo, e por isso também como o que é bom. É o que podemos entender como razão prática. Portanto, vista desta forma, a linguagem exerce um papel importante na vida do ser humano. Uma filosofia antropológica parte normalmente de um fundamento fenomenológico. Para Tugendhat este fundamento é a estrutura predicativa da linguagem humana. Mas o que é discutido em seu livro são fenômenos do comportamento humano tais como: egoísmo, altruísmo, responsabilidade, imputabilidade, consciência da morte, a necessidade de agir conforme o que é bom e a dependência de si próprio sobre o reconhecimento e legitimação de valores ou princípios morais. Nesta perspectiva, o livro trata da relação da razão – por meio da qual o homem aspira ao que é bom – e a questão da autonomia que está relacionado ao que o autor entende por "Egozentrizität". Esta egocentricidade é algo individual, mas que se realiza racionalmente na convivência com outros. O “eu” pode ser entendido como o fenômeno por meio do qual cada indivíduo consegue objetivar suas opiniões, desejos, sentimentos e intenções. Mas Tugendhat não perde de vista a “liberdade”. Neste processo de auto- determinação, ela é a condição prévia para cada indivíduo poder direcionar seu agir tendo em vista o que é considerado bom pela comunidade ou grupo ao qual pertence. Praticar (viver) esse “eu”, não significa renunciar a pluralidade, o diverso, o coletivo, etc, mas é um compromisso de cada um integrar o diferente numa “unidade”. Portanto, o autor acredita ser possível a existência de comunidades onde indivíduos têm autonomia para direcionar seu agir tendo em vista o que é considerado “bom” por todos. Para trabalhar esse “eu”, Tugendhat não recorre às teorias já apresentadas (por exemplo, de Descartes até Husserl). O “eu” é, em Tugendhat, um fenômeno por meio do qual o indivíduo, mediante sua capacidade, consegue objetivar por si mesmo suas opiniões, desejos, intenções e sentimentos. Mediante esta concepção, “liberdade” significa ter autonomia para agir de uma forma ou de outra. Portanto, a “egocentricidade” faz parte do nosso modo se ser, da forma como agimos. Nestas reflexões, percebe-se uma relação entre “o eu, a liberdade e o bom”, que coloca a vida humana entre dois pólos: por uma lado existe a pluralidade, ou seja, diversas culturas, opiniões, modos de ser e viver, mas, por outro lado, existe a possibilidade da união. Conforme Tugendhat as respostas tradicionais em busca de uma unidade (união) são a religião e a mística e aponta, a partir daí, para a necessidade de integrar a religião e a mística na auto conduta do ser humano. Ele entende a mística como um recuo da nossa própria egocentricidade, o que tem relação com o Budismo na questão do sentir junto com os outros. Quando o autor comenta sobre mística ele cita basicamente as doutrinas do Taoísmo e do Budismo. Dessa forma, a mística judaico- cristã aparece muito pouco no texto. De qualquer forma, o importante é que a religião e a mística são interpretadas com um novo sentido, ou seja, as reflexões consideram o exterior (os outros, o mundo), portanto, não podem ser interpretadas de forma isolada. A partir do diagnóstico da dualidade existente nos seres humanos entre o aspecto “egocêntrico” e a concepção do “coletivo”, a mística aparece como uma alternativa para o aspecto coletivo e conseqüentemente também para o “ser pessoa”. Pelo fato de serem racionais, os humanos se projetam visando alcançar fins, e estes muitas vezes são transformados em objetos de preocupações e sofrimentos. Como estes objetos são permanentes em nossa vida, originam-se daí a mística e a religião como forma de regular nossas ações e, ao mesmo tempo, permitir uma melhor auto compreensão. O autor diz haver somente duas possibilidades pelas quais é possível uma união: “podemos nos entendermos ou sobre algo que é deste mundo (uma outra pessoa; uma comunidade; uma coisa) ou simplesmente sobre nós mesmos”. Na forma como Tugendhat entende o ser humano e seu agir, é notória a conexão entre linguagem e a capacidade do sujeito se determinar, ele próprio, ao que é considerado “bom”. Com isso Tugendhat produz um valor próprio ao fato, ou seja, ao agir humano corresponde sempre a dúvida e a preocupação sobre se o feito (a ação) corresponde ao que é considerado “bom” ou “ruim”. Se um indivíduo, capaz de desenvolver uma consciência moral, e pertencente a uma comunidade moral, não age conforme o que é considerado “bom” por esta comunidade, sentir-se-á indignado ou culpado. Esta questão dos sentimentos morais, Tugendhat analisa mais detalhadamente em seus trabalhos sobre ética: Lições sobre ética e Diálogo em Letícia. Enfim, a tese deste recente livro, em resumo, poderia ser: somente pode-se dizer “eu”, porque tem-se consciência de outros e do mundo, e isso tem como conseqüência que as pessoas vivem constantemente um dilema: por um lado nos consideramos absolutamente importantes, mas esta egocentricidade também nos faz perceber a existência dos outros e do mundo, fato que gera desconforto ao nosso existir. O livro é dividido em duas partes. Inicialmente, na parte mais extensa, Tugendhat expõe o que fundamenta todo seu trabalho. Como aí ele aponta para aspectos da linguagem e da ética dos humanos, e para uma melhor compreensão destes cinco capítulos, é importante um prévio estudo de alguns textos anteriores do autor tais como: Lições introdutórias à filosofia analítica da linguagem; Lições sobre ética; Diálogo em Letícia e Não somos de arame rígido: conferências apresentadas no Brasil em 2001. Os aspectos da religião e da mística aparecem mais explícitos na segunda parte. Por fim, aparece um apêndice sobre histórico e a-histórico (Anhang über Historisches und Unhistorisches). Este texto é interessante pois aí se percebe a ousadia do projeto do autor. No entanto, com este final, o leitor não pode iniciar a leitura do livro pensando na separação das duas partes do texto geral. Para o desdobramento destas teorias o autor se sustenta, principalmente, em Wittgenstein e Heidegger. Nesta perspectiva, este recente trabalho pode ser considerado como um avanço de alguns pontos já trabalhados em textos anteriores, mas não é um avanço repetitivo. Chegando no final da leitura do texto, não se sabe ao certo se este trabalho de Tugendhat é um estudo histórico filosófico ou um estudo histórico religioso. Na minha opinião, durante o texto em geral, o autor dispensa mais atenção ao aspecto religioso. Mas parece-me que mais para o final, as perguntas sobre o ser (antropológicas), levantadas no início, são discutidas de forma mais filosófica que religiosa. Enfim, por causa do resgate e debate de várias teorias controversas, quem lerá o livro, estará fazendo uma interessante leitura de filosofia. Assim termina o livro de Tugendaht: “O universo das pessoas vai tão longe quanto o entendimento, e isso significa (nisto eu me diferencio de Gadamer), o entendimento de justificações. O que isso significa interiormente, pode e deve ser corrigido empiricamente, mas tais correções implicam, que aquilo que nós temos em vista, sempre foi uma representação geral(universal)”.
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