FUNGIBILIDADE RECURSAL NO
PROCESSO CIVIL - UM MODELO JURÍDICO IMPLÍCITO.
Juiz de Direito e Professor da
Universidade Estadual da Paraíba.
SUMÁRIO:
1. Introdução; 2. Ação e Recurso; 3. Conceito; 4. Aplicação do princípio da
fungibilidade; 5. Requisitos; 6. Conclusão; 7 - Referências bibliográficas.
1 - INTRODUÇÃO
O
tema deste estudo é de fundamental interesse para os aplicadores do direito
processual civil, pois é capaz de proporcionar adequada solução para situações
em que não seria possível a continuidade do litígio caso fosse mantido o apego
extremo à forma.
Sem
a utilização do princípio da fungibilidade estaria o julgador, em alguns casos,
deixando de conhecer o conflito na sua plenitude e negando a garantia
constitucional do acesso à justiça.
Deste
modo, tratar-se-á neste ensaio sobre a identificação deste princípio na esfera
recursal, seu conceito e pressupostos de aplicabilidade.
2
- AÇÃO E RECURSO
Sabe-se
que a ação revela-se como um poder de provocar a função jurisdicional e dela
participar com o intuito de obter um provimento judicial para uma situação
jurídica assinalada no processo, constituindo-se num complexo de direitos, de
ordem constitucional, a saber: 1) acesso à justiça; 2) acesso ao processo; 3) resposta fundamentada
do órgão jurisdicional; 4) eficácia das medidas judiciais e 5) direito ao
reexame da decisão judicial, no mesmo processo, por meio de recurso (Rocha,
1999:187).
Todavia,
para que o Estado-juiz possa pronunciar-se sobre o direito invocado através da
ação judicial, faz-se necessário verificar se a situação posta em juízo
preenche um mínimo de requisitos que tornem admissível o próprio pronunciamento
judicial, i.e., se há condições do órgão jurisdicional tornar possível uma
solução para o caso.
Tais
requisitos imprescindíveis para o exercício do direito de ação são chamados,
como todos sabem, de condições da ação, que são três: possibilidade jurídica do
pedido, a legitimidade de agir e o interesse de agir. Com relação a esse último
pressuposto, parte da doutrina entende que se o autor não ingressou com a ação
adequada, nem escolheu o processo ou procedimento idôneo à obtenção da proteção
judicial, deve ter sua pretensão indeferida sob o pálio da ausência de
interesse na resposta judicial que também não seria adequada ao caso.
Ademais,
sustentam que a forma de procedimento não está a disposição das partes, mas da
Justiça, porquanto as regras processuais são de natureza pública e cabe ao
Estado o exercício da jurisdição com o fim de preservar a ordem e paz social,
pondo cobro aos conflitos e dando efetividade aos direitos.
Porém,
o nosso sistema processual, embora discipline quais as situações que ensejarão
os tipos de processos e seus respectivos ritos, apresenta certos dispositivos
que suavizam o rigorismo das formas, pois, afinal, o objetivo do processo é
resolver o mérito da causa.
Assim,
o princípio da instrumentalidade das formas (CPC, art. 244) e a regra geral de
que sempre se deve procurar a conversão ao rito adequado, sendo defeso ao juiz
indeferir a inicial liminarmente a não ser quando impossível a adaptação ao
rito (CPC, art. 295, V c/c art. 284), revelam que a ação se desenvolve sob os
auspícios da garantia constitucional do acesso à justiça.
De
igual modo, os recursos, conquanto apresentem pressupostos de admissibilidade,
estão sujeitos a esses abrandamentos, que visam evitar o demasiado apego à
forma que venha impedir o acesso à justiça em sua plenitude.
No
entanto, necessário não olvidar que em nosso sistema jurídico não existe o
instituto da fungibilidade de ações, a ensejar que o magistrado, ex officio ou a requerimento resultante
de dúvida do autor, converta uma ação imprópria por outra, que seria a correta,
mesmo em caso de erro escusável.
3
- CONCEITO
Fungibilidade
significa, no conceito jurídico, a substituição de uma coisa por outra (Silva,
1993:336).
Por
sua vez, o princípio da fungibilidade indica que um recurso, mesmo sendo
incabível para atacar determinado tipo de decisão, pode ser considerado válido,
desde que exista dúvida, na doutrina ou jurisprudência, quanto ao recurso apto
a reformar certa decisão judicial.
Em
outras palavras, ressalvados as hipóteses de erro grosseiro, a parte não poderá
ser prejudicada pela interposição de um recurso por outro, devendo o processo
ser conhecido pelo Tribunal ad quem
(Código de Processo Civil de 1939, art. 810).
Contudo,
para que o aludido princípio mereça incidência é imperiosa a presença dos
requisitos da dúvida objetiva, inocorrência de erro crasso e tempestividade,
sendo este último exigido por parcela majoritária da jurisprudência e
inadmitida por certos juristas.
Antes
de analisar esses pressupostos é de bom alvitre tecer algumas considerações
sobre a existência do referido princípio no nosso ordenamento, em razão da
ausência de dispositivo expresso sobre a matéria no Código de Processo Civil.
4
- APLICAÇÃO DO
PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE
Perguntamos:
é possível utilizar o princípio da fungibilidade em face do nosso sistema
processual civil vigente, tendo em vista que não há regra positivada
disciplinando a incidência de tal princípio?
Essa
indagação, podemos afirmar com tranqüilidade, encontra-se superada tanto pelos
tribunais que vêm aplicando o princípio como pela doutrina que reconhece a sua
existência.
Mas
qual o fundamento jurídico capaz de reconhecer o princípio que antes vigorava
através de norma expressa e na atual sistemática processual civil não está
posto no ordenamento?
Os
doutrinadores explicam a aparente lacuna jurídica por meio da própria
hermenêutica que emprega uma metodologia voltada para a coerência do sistema,
de maneira a torná-lo mais flexível.
Assim,
entendendo o direito como ciência, partimos da idéia de que o ordenamento
jurídico não se resume a um emaranhado de normas positivadas, mas de um corpo
de normas e conceitos que visam
proporcionar certeza e coerência ao Direito.
Em
última instância, tais conceitos se consolidam em princípios. Ensina-nos Miguel
Reale que os princípios jurídicos “são ‘verdades
fundantes’ de um sistema de conhecimento, como tais admitidas, por serem
evidentes ou por terem sido comprovadas, mas também por motivos de ordem
prática de caráter operacional, isto é, como pressupostos exigidos pelas
necessidades da pesquisa e da praxis” (Reale, 1995:299).
Os
princípios jurídicos são de extrema importância para o direito, pois são
através deles que se forma uma verdadeira rede de paradigmas suficientemente
capazes de resolver as questões teóricas e práticas. Os princípios são reconhecidos como critérios informadores do
Direito. Simonius, citado por Reale, assevera que o Direito em vigor está
imbuído de princípios até suas ramificações finais (Reale, 1995:300).
Com
efeito, o conjunto normativo de determinado campo do direito deve ser
compreendido à luz de seus princípios reitores. Alguns deles são reconhecidos
pelo próprio legislador outros inferidos do próprio corpo normativo.
Por
seu turno, Celso Ribeiro Bastos
preleciona que “é extremamente
mais grave a lesão a um princípio do que o ferimento a uma norma isolada. Esta
pode significar um aspecto menor, secundário, do direito administrativo;
entretanto, a lesão ao princípio consiste em ferir as próprias estruturas desse
direito, a ossatura que compõe esse feixe normativo” (BASTOS, 1996:23).
Deste
modo, é crível depreender que o Direito se vale de princípios com o objetivo de
melhor adaptar as regras jurídicas à realidade social, sendo que os princípios
não precisam estar expressos em normas, podem ser inferidos do sistema.
Fala-se,
então, em princípios jurídicos implícitos, “que
não precisam ser estabelecidos explicitamente, senão que também podem ser
derivados de uma tradição de normas detalhadas e de decisões judiciais que,
para o geral, são expressões de concepções difundidas acerca de como deve ser o
direito” (R. Alexy apud
Rothenburg, 1999:55).
Cumpre,
ainda, observar que a existência dos princípios implícitos, como é o caso da
fungibilidade recursal, deduz-se por via da hermenêutica; na internalidade do
ordenamento.
Neste
diapasão, colacionamos a lição de Carlos A. Sundfeld que faz a seguinte
advertência: “Fundamental notar que todos
os princípios jurídicos, inclusive os implícitos, têm sede direta no
ordenamento jurídico. Não cabe ao jurista inventar os ‘seus princípios’, isto
é, aqueles que gostaria de ver consagrados; o que faz, em relação aos
princípios jurídicos implícitos, é sacá-los do ordenamento, não inseri-los
nele” (apud Rothenburg, 1999:57).
Portanto,
parte da indagação inicial encontra-se respondida, donde se conclui que é
possível a existência do princípio da fungibilidade, independente de regramento
legal explícito, vez que se trata de princípio implícito.
Resta
saber a matiz principiológica ou normativa da fungibilidade recursal, em razão
da sua condição implícita no processo civil.
O
Código de Processo, na esteira das legislações modernas de outros países,
adotou o princípio da instrumentalidade das formas e dos atos processuais,
consoante se vê do seu art. 244.
Segundo
esse preceito “o ato só se considera nulo
e sem efeito se, além de inobservância da forma legal, não tiver alcançado a
sua finalidade” (Theodoro, 1996:282). O interesse é no objetivo do ato, não
no ato em si mesmo.
Ora,
é certo que o Código de Processo Civil privilegia o respeito as formalidades procedimentais
(sistema da legalidade das formas) com vistas a impedir a desordem, a confusão
e a incerteza no processo.
Todavia,
o apego extremo a solenidade e a legalidade depõe contra a própria segurança
que se pretende buscar com a formalidade, pois esta pode levar a ineficiência
da prestação jurisdicional.
Assim,
o princípio da instrumentalidade das formas é de fundamental importância para
proporcionar uma maior racionalidade ao sistema processual, evitando-se o
excesso de formalismo e privilegiando a finalidade do ato.
Nesse
passo, depreende-se que o princípio da fungibilidade tem estreita relação com o
art. 244 do CPC que positivou o princípio da instrumentalidade das formas, pois
objetiva justamente evitar o formalismo e preservar o ato processual que em seu
conteúdo atingiu sua finalidade, acatando-se “um recurso por outro, quando preservados os requisitos de conteúdo
daquele que seria o correto” (Theodoro, 2000:169).
Logo,
a fungibilidade recursal é princípio decorrente da instrumentalidade das formas
e dos atos processuais, nele encontrando validade.
Tal
entendimento coaduna-se com a lição do professor Humberto Theodoro Júnior,
quando assevera que a interposição de um recurso incorreto “resolve-se em
erro de forma; e, para o sistema de nosso Código, não se anula, e sim adapta-se
à forma devida, o ato processual praticado sem sua estrita observância”
(Idem, ibidem).
Por
essas razões, o princípio da fungibilidade é perfeitamente aplicável no âmbito
do processo civil.
5
– REQUISITOS
O
Código de Processo Civil passado, Decreto-Lei nO. 1.608, de 18 de
setembro de 1939 em seu artigo 810 estatuía que:
“Salvo a hipótese de má-fé ou erro grosseiro, a parte não será prejudicada pela interposição de um recurso por outro, devendo os autos ser enviados à Câmara, ou Turma, a que competir o julgamento.”
No
direito anterior a este Código, determinados Estatutos processuais, a exemplo o
de Minas Gerais, permitiam que, se a jurisprudência da Corte Recursal tivesse
dúvida no que concerne ao apelo adequado, se transformasse a decisão colegiada
em diligência, para o recorrente, se desejasse, retificar o equívoco de
interposição e prosseguir no processo do apelo adequado, de acordo com sua
pretensão e previsão legal.
O
artigo 810 do Código de Processo Civil de 1939 deu uma passo a frente em seu
tempo quando previu a admissibilidade de correção do apelo erroneamente
interposto deixando para traz várias restrições do passado, mantendo apenas a
vedação da correção no caso de má-fé ou erro grosseiro do litigante recorrente.
Sanado
o erro o Tribunal poderia então, conhecer do apelo, como se tivesse sido
interposto o cabível, sem necessitar converter o julgamento em diligência, para
o recorrente corrigir o erro de interposição. Assim o julgador de segunda
instância converteria no recurso apropriado o recuso incabível e como tal
mandaria processá-lo.
No
entanto, conforme jurisprudência da época, tal conversão só era permitida
quando o recurso próprio estava dentro de seu prazo quando o outro foi
interposto. Sob pena de que a solução contrária esbarraria no obstáculo de já
haver a sentença transitado em julgado, constituindo direito adquirido da
parte.
No
Código atual, o legislador foi extremamente infeliz quando não previu a
fungibilidade dos recursos, como fazia o Código de 1939. Daí o aplicador do
direito ter que recorrer ao artigo 244 do Código de Processo Civil vigente para
que não rejeite o recurso por erro, exatamente pela possibilidade de uma forma
poder ser trocada pela outra evitando assim qualquer repercussão
jurídico-processual.
Embora
reconhecida pela doutrina e jurisprudência, a fungibilidade recursal deve
atender certos requisitos de aplicabilidade para que a sua incidência não
resulte em conflito com outros preceitos processuais, v.g., o princípio da
singularidade recursal.
O
primeiro e mais importante requisito de admissibilidade do princípio é aquele
que exige a ocorrência de dúvida objetiva sobre qual o recurso a ser
interposto. Existirá dúvida objetiva quando a doutrina ou jurisprudência
divergirem no tocante ao recurso cabível contra determinada espécie de ato
judicial.
Destarte,
para a aplicação do princípio da fungibilidade é imperioso verificar se o
recorrente teria razões para duvidar qual seria o recurso adequado. Tal análise
não se baseará em critérios subjetivos, mas em precedentes judiciais ou
doutrinários.
Importa
esclarecer que o princípio da fungibilidade não poderá ser aplicado quando a
parte interpõe recurso em manifesto desacordo com a lei que determinava de
maneira expressa qual o recurso cabível, v.g., quando se atiça recurso
extraordinário para o STJ, ao invés do especial. Essa conduta configura erro
grosseiro que afasta por completo a incidência do prefalado princípio.
O
último pressuposto de aplicação da fungibilidade recursal reside na observância
do prazo, i.e., da tempestividade do recurso. Sempre que o recurso erroneamente
interposto apresentar um prazo maior do que aquele que seria o adequado, a
maioria da doutrina e jurisprudência entende que não se deve receber o recurso,
tendo em vista o fenômeno da preclusão.
Todavia,
alguns processualistas de renome, como Tereza Arruda Alvim e Nelson Nery
Júnior, defendem a tese de que a intempestividade não pode ser motivo para a
rejeição da incidência do princípio da fungibilidade, pois, se o erro é
justificável, a fungibilidade valida a impugnação segundo os requisitos do
recurso interposto (SIMARDI FERNANDES, 1999:439).
Encontramos,
ainda, algumas decisões que vêm admitindo a aplicação do princípio da
fungibilidade independente do requisito da tempestividade (RSTJ 30/474 e RT
127/244).
Outrossim,
não se pode exigir do recorrente que se valha de prazo menor do recurso que não
aviou, pois havendo dúvida objetiva, a parte, por uma questão lógica, irá
observar o prazo do recurso efetivamente interposto. “a regra da fungibilidade é ditada no interesse da parte” (Nery
Junior, 2000:142).
Logo,
deve-se utilizar a fungibilidade recursal sempre que, ao promover o recurso
impróprio, a parte demonstre a existência de dúvida fundada na doutrina ou
jurisprudência quanto ao recurso correto.
6 - CONCLUSÃO
Do
exposto, verificamos que o princípio da fungibilidade encontra-se presente no
nosso ordenamento, mesmo sem disciplinamento normativo, pois trata-se de
princípio implícito.
Todavia,
faz-se imperioso, por uma questão de respeito à lógica jurídica, identificar a
origem do citado princípio, pelo que restou demonstrado que a fungibilidade
recursal é princípio decorrente da instrumentalidade das formas e dos atos
processuais.
Não
basta reconhecer a existência da fungibilidade recursal, deve-se verificar em
quais situações ela pode ser aplicada. Por isso, a doutrina e jurisprudência
arrolaram três requisitos de incidência: 1) Dúvida objetiva sobre qual recurso
deve ser ajuizado; 2) Inexistência de erro grosseiro; 3) tempestividade.
Quanto
ao último pressuposto, alguns juristas de escol divergem sobre a sua real
necessidade, em virtude da irrelevância do prazo com a substituição plena de um
recurso por outro que a fungibilidade impõe.
Por
fim, reconhecemos que o princípio da fungibilidade recursal é de alta
relevância para a garantia do acesso à justiça.
7 -
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