Processo nº 1309/01.

 

MM. Vara Distrital de Tremembé da Comarca de Taubaté.

 

Autor: Ministério Público do Estado de São Paulo.

 

Réu: G S M.

 

 

 

 

 

Alegações Finais da Defesa

 

 

 

 

 

            Meritíssima Juíza de Direito:

 

 

 

 

1. A norma penal em branco prevista na Lei nº 6.368/76.

 

 

            Instintivamente o homem procura agrupar-se para enfrentar suas próprias limitações e as vicissitudes.

 

Inconcebível a coexistência humana sem a estipulação de certos parâmetros traçados nas regras. Perceberam alhures os romanos: “ubi societas, ibi ius” (onde está a sociedade, está o Direito).

 

O Direito limita as liberdades individuais indubitavelmente, todavia, inexistentes as limitações reinaria o abuso do mais forte sobre o mais fraco.

 

Atribui o Direito poderes e deveres aos homens de forma uniforme, quando não existe motivo razoável para distinções, portanto, a liberdade de cada um vai até onde não agride a do outro.

 

A lei trata a todos de forma igual, conforme os ditames da justiça distributiva. Considera todos os iguais igualmente, e desiguala os desiguais. Ou seja, a lei, expressão maior do Direito, pode diferenciar os homens quando apresentem desigualdades no mundo fenomênico, mas há sempre uma reciprocidade de poderes e deveres.

 

A balança que representa o Direito ilustra esse equilíbrio entre poderes e deveres, de forma justa. A diferenciação deve calcar-se em critérios equânimes.

 

            O Direito, portanto, não se satisfaz com a simples coexistência social. Visa a estabilidade e a paz social como meio propiciador de desenvolvimento do ser humano. O homem é sempre o protagonista principal do Direito e seu aperfeiçoamento é sua finalidade principal.

 

            Eis a noção de Direito fornecida pelo professor Vicente Ráo: “é o direito um sistema de disciplina social fundado na natureza humana que, estabelecendo nas relações entre os homens uma proporção de reciprocidade nos poderes e deveres que lhe atribui, regula as condições existenciais dos indivíduos e dos grupos sociais e, em conseqüência, da sociedade, mediante normas coercitivamente impostas pelo poder público” (“O Direito e a Vida dos Direitos”, 2º volume, autor citado, 4ª edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1997) (grifos nossos).

 

            Para o direito, a lei é uma regra geral que, emanada de autoridade competente, é imposta, coativamente, à obediência de todos (Clóvis Beviláqua).

 

            Preceito comum, norma geral, a lei refere-se a todos indistintamente sem excluir ninguém. A lei alberga a noção de isonomia, pois seus comandos dirigem-se a todos os súditos.

 

            A lei, principal instrumento normativo do Direito, deve tratar a todos com igualdade, seja homem ou mulher, seja idoso ou jovem, seja criminoso encarcerado ou cidadão liberto – princípio da isonomia. Este o norte indicado na Carta Magna e adotado por tratados internacionais, vigentes como norma interna nacional.

 

Constituição da República Federativa do Brasil.

Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

.............................................................................................................

§ 1.º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

§ 2.º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

 

Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (ONU).

Artigo 26. Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito, sem discriminação alguma, a igual proteção da lei. A este respeito, a lei deverá proibir qualquer forma de discriminação e garantir a todas as pessoas proteção igual e eficaz contra qualquer discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra qualquer natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação.

 

Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) (OEA).

Artigo 24. Igualdade perante a lei

Todas as pessoas são iguais perante a lei. Por conseguinte, têm direito, sem discriminação alguma, à igual proteção da lei.

 

            Mas o douto Celso Antônio Bandeira de Mello lembra ser a lei instrumento de discriminação, pois ao estabelecer situações jurídicas variadas confere regramentos distintos às pessoas. Mas há critérios científicos a observar:

 

“Então, no que atina ao ponto central da matéria abordada procede afirmar: é agredida a igualdade quando o fator diferencial adotado para qualificar os atingidos pela regra não guarda relação de pertinência lógica com a inclusão ou exclusão no benefício deferido ou com a inserção ou arredamento do gravame imposto.”

 

“Cabe, por isso mesmo, quanto a este aspecto, concluir: o critério especificador escolhido pela lei, a fim de circunscrever os atingidos por uma situação jurídica – a dizer: o fator de discriminação – pode ser qualquer elemento radicado neles; todavia, necessita, inarredavelmente, guardar relação de pertinência lógica com a diferenciação que dele resulta. Em outras palavras: a discriminação não pode ser gratuita ou fortuita. Impende que exista uma adequação racional entre o tratamento diferenciado construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo. Segue-se que, se o fator diferencial não guardar conexão lógica com a disparidade de tratamentos jurídicos dispensados, a distinção estabelecida afronta o princípio da isonomia” (“Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade”, autor citado, 3ª edição, São Paulo, Editora Malheiros, 1995, item 32).

 

            O Direito Penal é o ramo do direito público de tutela e garantia dos valores máximos da sociedade, atribuindo ao ilícito criminal a sanção mais grave, a pena ou a medida de segurança.

 

            A lei penal garante o mínimo ético social, devendo cautela maior na distribuição entre os súditos dos deveres e direitos suso referidos. Foi-se o tempo em que os nobres mereciam penas diversas daquelas cominadas aos plebeus! Ou em que os homicídios dolosos circunscreviam-se à inteligência da Justiça Castrense!

 

            Portanto, injusta e injurídica a discriminação realizada pelo Estado ao imputar pena criminal a condutas de consumo e comercialização de algumas drogas, dentre elas a denominada vulgarmente como maconha, e permitir o uso e comercialização de outras, com as quais aufere receitas gigantescas.

 

         O consumo do álcool e do cigarro, cientificamente considerados drogas tóxicas, com potencialidade lesiva à saúde pública, causadores de vícios e danos dos mais variados, começam a receber algumas restrições legais. Todavia, não há interesse estatal na proibição do consumo, embora os considere droga tóxica publicamente, especialmente em campanhas publicitárias.

 

         Nesta seara o Estado não se intromete, adotando a lição filosófica  do alemão Schopenhauer, na qual o homem pode ir da terra ao inferno, contanto que não arraste seu semelhante, causando-lhe mal.

 

O THC, tetrahidrocanabinol, princípio ativo da maconha, por ocasionar dependência psicológica, foi proscrito ao ser incluído no item 43, do anexo 1, lista “F”, da Portaria nº 344/98 da Secretária de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde. O álcool, embora não seja proibido, também ocasiona vício e sujeita o usuário, nos casos extremos, à absoluta incapacidade, atingindo o seu consumo os mesmos interesses do consumo da substância maconha. O mesmo sustenta-se sobre a nicotina, princípio ativo do cigarro...

 

         Qual a razão jurídica da discriminação? Seria válido proibir o consumo de uma droga e permitir o consumo de outra similar? Ainda, a autoridade competente para editar a norma penal suplementar à Lei de Tóxicos poderia arbitrariamente proibir o consumo de determinadas drogas, permitindo de outras semelhantes?

 

            O Réu não pretende elucidar todas as questões jurídicas sobre o assunto, e talvez ver considerada a discussão como nefelibática. Mas questiona a constitucionalidade e a legalidade da norma suplementar à norma penal em branco incriminadora, pois o ente estatal permite o uso, comercialização e publicidade do consumo de algumas drogas tão lesivas quanto àquela apreendida pela polícia em seu poder.

 

            Qual a razão jurídica para considerar pessoas em situações iguais diferentemente?!

 

            As grandes empresas produtoras de bebidas alcoólicas e de produtos derivados do tabaco recebem tratamento diferenciado, embora agridam cotidianamente os idênticos interesses guarnecidos pela Lei nº 6.368/76.

 

Incabível a extensão do preceito incriminador aos comerciantes e usuários de álcool e cigarros, diante do princípio da reserva legal penal, estabelecido expressamente no seio do arcabouço constitucional de direitos fundamentais (artigo 5º, XXXIX, da CF) e no Código Penal (artigo 2º). Todavia, a aplicação da norma penal apenas em algumas situações jurídicas ilicitamente estabelecidas, afronta os princípios constitucionais da igualdade, proporcionalidade e razoabilidade, e as normas convencionais apontadas, pois o discrímen não sobreleva fundamento razoável de distinção.

 

         Destoa referida norma do princípio constitucional da isonomia, e dos artigos da Lei Maior e Tratados Internacionais indicados.

 

         A discriminação normativa imposta ilicitamente malfere igualmente o fundamento do próprio Estado Democrático de Direito, pois o indivíduo considerado sujeito de direito não pode optar pessoalmente, autonomamente, sobre seu interesse em consumir droga ou não. O mesmo indivíduo, sujeito de direito em todos os momentos da vida civil, sofre uma diminuição de sua capacidade quando o assunto é o preconceituoso tema drogas.

 

            Por ser o conceito de sujeito de direito imagem parcial da descrição de sujeito para a filosofia moderna, cito lição pertinente do filósofo Paulo Guiraldelli Jr., invocando Marilena Chauí.

 

“O eu é a identidade, formada das vivências psíquicas; é a forma de consciência mais singular, pois as vivências psíquicas são o que o sujeito menos compartilha com os seus pares. Digamos que ele é a peça mais individualizada da subjetividade. A pessoa é a consciência moral; é o sujeito enquanto juiz do certo e do errado, do bem e do mal. O cidadão é a consciência política; o sujeito enquanto juiz dos direitos e deveres da vida da cidade. O sujeito epistemológico é a consciência intelectual; o sujeito enquanto juiz do verdadeiro e do falso; o detentor da linguagem e do pensamento conceitual; trata-se da forma de consciência mais universal (cf. Chauí, M. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1994, pp. 117-19).” (in Curso de Extensão da Universidade de Brasília “Introdução à Filosofia - Neopragmatismo”, ministrado pelo professor citado via internet, http://www.filosofia.com.br/curso-filosofia ).

 

            Num instante, o cidadão, exercendo seu direito positivo eleitoral de voto, conforma toda a estrutura de poder conferida ao ente estatal, decide sobre seus interesses mais delicados, exercendo conscientemente seu direito de optar entre várias condutas que não repercutirão na órbita jurídica alheia, noutro instante, defenestrada sua consciência pelo órgão estatal, não pode optar em portar drogas para consumo próprio, exercendo pessoalmente suas opções de vida – o que aconteceu no caso em tela, como se demonstrará.

 

            O Estado Democrático de Direito, por ser democrático, o que pressupõe o máximo de liberdade de escolha entre várias condutas, jamais tolherá do indivíduo tais opções de forma desarrazoada. O sujeito pode consumir alimentos e bebidas pouco saudáveis, pode ingerir detergente ácido “coca-cola” ou litros de bebidas alcoólicas, pode fumar cigarros, com muita nicotina, pode permanecer sentado diante da televisão o dia todo, ensejando prejuízos enormes à saúde física e mental. Em tese, pode findar sua existência terrena, livremente...

 

            O indivíduo dotado de consciência pode escolher entre várias condutas, e arcar pelas conseqüências danosas, desde que não prejudique seu semelhante. As escolhas são do sujeito, e o Estado apenas serve aos seus interesses, garantindo a máxima liberdade.

 

         Ao final, o sujeito, como um ser dotado de consciência, ocupa determinado espaço em exíguo tempo, caminhando temerosamente em direção às incertezas do futuro, motivado pela esperança e pela liberdade. Nessa peregrinação solitária só nós mesmos podemos optar entre os vários caminhos.

 

 

2. Dúvidas sobre a materialidade do crime e a lesividade da substância apreendida.

 

 

            Os exames periciais desenvolvidos e elaborados no inquérito policial constataram que a substância apreendida é “cannabis sativa L”, devido à presença de tetrahidrocannabinol (THC).

 

         A perícia não evidenciou a potencialidade lesiva do cânhamo, pois somente ao se identificar a concentração de THC na maconha há a possibilidade de mensurar se a substância pode despertar efeitos alucinógenos próprios da droga proscrita e desenvolver o vício, sempre danoso à saúde pública e individual – bem juridicamente tutelado pela norma penal.

 

         Os “experts” não especificaram o procedimento adotado no exame pericial de fls. 65, trazendo aos autos apenas um laudo padronizado que certamente não pode servir a embasar juízo condenatório.

 

         Mais grave, há falha probatória no lacônico laudo de constatação de entorpecente de fls. 10 e no impreciso laudo de exame químico toxicológico de fls. 65, pois os insipientes peritos não foram identificados como pessoas habilitadas, ou seja, inscritos no Conselho Federal dos Farmacêuticos, incapazes tecnicamente e ilegitimados para expressarem conhecimento suficiente em Farmacologia.

 

Os farmacêuticos são obrigados em sua atuação profissional a declinarem o número de inscrição profissional junto ao Conselho Regional de Farmácia, sob pena de sofrerem penalidades administrativas. A norma reguladora de atuação profissional garante a qualquer interessado a exibição pelo sedizente habilitado dos referidos documentos de inscrição no Conselho, o que se requer quanto aos peritos policiais dos laudos de fls. 10 e 65.

 

A Lei nº 3.820, de 11 de novembro de 1960, é expressa neste sentido:

Art. 13. - Somente aos membros inscritos nos Conselhos Regionais de Farmácia será permitido o exercício de atividades profissionais farmacêuticas no País.

Art. 19. - Os Conselhos Regionais expedirão carteiras de identidade profissional aos inscritos em seus quadros, aos quais habilitarão ao exercício da respectiva profissão em todo o País.

Art. 20. - A exibição da carteira profissional poderá, em qualquer oportunidade, ser exigida por qualquer interessado, para fins de verificação, da habilitação profissional.

            O Decreto nº 85.878, de 7 de abril de 1981, estabelece em regulamentação da suso referida lei, as atribuições privativas dos farmacêuticos, estipulando a exclusividade da perícia técnico-legal realizada por profissional regularmente habilitado:

 

        Art 1º. São atribuições privativas dos profissionais farmacêuticos:

        I - omissis;

        II - assessoramento e responsabilidade técnica em:

        a) omissis;

        b) órgãos, laboratórios, setores ou estabelecimentos farmacêuticos em que se executem controle e/ou inspeção de qualidade, análise prévia, análise de controle e análise fiscal de produtos que tenham destinação terapêutica, anestésica ou auxiliar de diagnósticos ou capazes de determinar dependência física ou psíquica;

        c) omissis;

        d) omissis;

        III - omissis;

        IV - a elaboração de laudos técnicos e a realização de perícias técnico-legais relacionados com atividades, produtos, fórmulas, processos e métodos farmacêuticos ou de natureza farmacêutica;

        V - omissis;

        VI - desempenho de outros serviços e funções, não especificados no presente Decreto, que se situem no domínio de capacitação técnico-científica profissional.

        Art 2º São atribuições dos profissionais farmacêuticos, as seguintes atividades afins, respeitadas as modalidades profissionais, ainda que não privativas ou exclusivas:

        I - a direção, o assessoramento, a responsabilidade técnica e o desempenho de funções especializadas exercidas em:

        a) omissis;

        b) omissis;

        c) omissis;

        d) omissis;

        e) omissis;

        f) omissis;

        g) omissis;

        h) omissis;

        i) órgãos, laboratórios ou estabelecimentos em que se pratiquem exames de caráter químico-toxicológico, químico-bromatológico, químico-farmacêutico, biológicos, microbiológicos, fitoquímicos e sanitários;

        j) omissis.

        II - omissis;

        Ill - omissis.

        Art 3º As disposições deste Decreto abrangem o exercício da profissão de farmacêutico no serviço público da União, dos Estados, Distrito Federal, Territórios, Municípios e respectivos órgãos da administração indireta, bem como nas entidades particulares.

         Se os peritos judiciais não são habilitados e não fizeram laudos fundamentados, o que ensejaria plena defesa, garantida constitucionalmente, não há materialidade comprovada nos autos.

 

         Diante disso, o Réu requer a elaboração de laudo pericial por farmacêuticos habilitados para constatar a natureza da substância apreendida e eventual concentração de THC, perquirindo-se, ainda, a potencialidade lesiva junto a médicos especialistas em questões toxicológicas.

 

            A doutrina processual penal vislumbra dentre os predicados constitutivos do devido processo legal, insculpido na Constituição da República no artigo 5º, inciso LIV, o direito à produção de prova, reforçado pela garantia do exercício da ampla defesa e do contraditório (artigo 5º, inciso LV, da Constituição da República).

 

            A Convenção Americana dos Direitos Humanos, tratado internacional integrado ao ordenamento jurídico nacional pelo Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992, com “status” de norma constitucional por força do § 2º, do artigo 5º, da Constituição da República, estabelece em seu artigo 8º, item 2, alínea “c”, o direito à concessão ao acusado de tempo e de meios adequados para a preparação de sua defesa (consoante entendimento de Flávia Piovesan, in “Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional”, São Paulo, Ed. Max Limonad, 1996, e Antonio Carlos de Araujo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, in “Teoria Geral do Processo”, 17ª edição, São Paulo, Ed. Malheiros, 2001, página 85).

 

            Ressalte-se, por derradeiro, ser possível a venda de “palha” (expressão vulgar), ou seja, “cannabis sativa L” com ínfima concentração de THC, de valor pecuniário amesquinhado, devido a inexistência de efeitos farmacológicos, e lucratividade exorbitante.

 

         Se não houver materialidade inexiste crime. Inexistindo potencialidade lesiva à saúde, o crime é impossível, merecendo o processo as conseqüências desta declaração judicial.

 

 

3. Considerações sobre as demais provas.

 

 

            Confirmaram unissonamente os agentes policiais estar o Réu portando alguma substância no momento da revista. Detalhes específicos, minuciosos, precisos, foram ditos e repetidos em coro pelos agentes de segurança do presídio, relatando a revista determinada pelo superior hierárquico, cônscio da situação ilícita encontrada...

 

            Data venia”, ficamos sempre impressionados com a precisão dos depoimentos dos agentes policiais, que atuam cotidianamente com inúmeros casos semelhantes, e recordam-se inequivocamente dos menores detalhes durante as minudentes manifestações orais em audiência.

 

            Talvez por essa razão colegas Defensores e doutos Juízes adotam postura radical quanto à valoração probatória do depoimento de agentes policiais, desconsiderando-as completamente.

 

            Os fatos narrados na tese acusatória, todavia, não infirmam absolutamente as alegações do Réu. Em interrogatório esclareceu não ser sua a droga, tendo sido introduzida em sua cela sub-repticiamente logo após o período de visitação.

 

         As assertivas do acusado apresentam viabilidade lógica de veracidade diante do contexto probatório, pois ao despir sua indumentária poderia baralha-la à sacola de drogas alheia.

 

         Imputa-se conduta criminosa de tráfico de entorpecentes, exclusivamente, pelo fato da substância apreendida estar organizada em pequenos invólucros.

 

Não há qualquer outro motivo!

 

         Repudia-se a imputação almejada, em louvor do princípio da eventualidade.

 

         A quantidade não muito grande de “droga”, aproximadamente 90 (noventa) gramas, indica a finalidade consumerista da substância apreendida, enquanto a disposição em pequenas “trouxas”, possibilitaria o rápido consumo, sem despertar a suspeita dos argutos vigias do sistema penitenciário.

 

A divisão da droga em vinte pequenas trouxas revela organização prática para o consumo diário, pois a utilização da maconha no presídio opera-se nos poucos momentos de pequena vigilância, sendo que o detento deve estar preparado para ser rápido.

 

         “Ad argumentandum tantum”, sob outro aspecto, se fosse a maconha para comercialização, os agentes perceberiam com seu “faro” policial anteriormente à data da apreensão, pois o Réu circularia diariamente com “encomendas”. Mas, jamais o Réu fora surpreendido anteriormente, embora sejam usuais as revistas pessoais nos presídios.

 

            O evento isolado não comprova sagacidade do Réu, pelo contrário. Comprovaria desespero por manter estoque pessoal de maconha para o consumo próprio.

 

            Excelência, além da pequena quantidade da droga apreendida, outros critérios devem ser analisados para se imputar a conduta descrita no artigo 12 da Lei nº 6.368/76.

 

Art. 37. Para efeito de caracterização dos crimes definidos nesta Lei, a autoridade atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação criminosa, às circunstâncias da prisão, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.

Parágrafo único. Omissis.

 

         O Réu pode ser usuário de maconha, e se houvesse adentrado deliberadamente com drogas no presídio, seria para consumo próprio, pois um viciado consome a quantidade apreendida em período inferior a uma semana. Portanto, a imputação exacerbada no crime de tráfico de entorpecentes evidencia desconformidade com o contexto probatório desenhado no processo, pois calcada em mera suposição.

 

TÓXICO - Tráfico - Desclassificação para uso próprio - Ocorrência - Elementos carreados aos autos se direcionam com maior segurança para o delito do art. 16 da Lei 6368/76 - Hipótese em que a cocaína apreendida, embora embalada em pequenas porções individuais, se destinam ao uso, considerando a quantidade apreendida de um grama no total. (Relator: Bento Mascarenhas - Apelação Criminal 101.009-3 - São Paulo - 04.03.91)

 

            O princípio da não-culpabilidade previsto na Constituição da República e o princípio da inocência estabelecido no suso mencionado tratado internacional, conferem ao Réu segurança processual. O Ministério Público enfrenta o ônus de comprovar a materialidade e a autoria delituosa, não havendo inversão do ônus probatório. O Réu não carece provar inocência, não servindo as suposições e ilações acusatórias como supedâneo condenatório.

 

 

4. Reincidência.

 

 

            Não há prova nos autos de ser o Réu reincidente, como notou a r. manifestação do lúcido membro do MP, impossibilitando-se a incidência da agravante genérica.

 

 

RECURSO: APELACAO CRIME

NUMERO: 699250031

RELATOR: TUPINAMBA PINTO DE AZEVEDO

EMENTA: APELACAO. ROUBO CIRCUNSTANCIADO. RECONHECIMENTO SEGURO DE AMBOS OS REUS, POR UMA DAS VITIMAS, QUE JA OS CONHECIA. ALIBI NAO C OMPROVADO. TENTATIVA DE ATRIBUIR OS DELITOS A ADOLESCENTES. CONDENACOES MANTIDAS. DEVE SER EXPUNGIDA DA CONDENACAO A AGRAVANTE DA REINCIDENCIA, QUANDO NAO COMPROVADA ATRAVES DE CERTIDAO JUDICIAL IDONEA. (ACR Nº 699250031, OITAVA CAMARA CRIMINAL, TJRS, RELATOR: DES. TUPINAMBA PINTO DE AZEVEDO, JULGADO EM 18/08/1999)

TRIBUNAL: TRIBUNAL DE JUSTICA DO RS

DATA DE JULGAMENTO: 18/08/1999

ORGAO JULGADOR: OITAVA CAMARA CRIMINAL

COMARCA DE ORIGEM: ARVOREZINHA

SECAO: CRIME

 

            Afirma Luis Belestá Segura, proeminente doutrinador espanhol, in “La reincidencia en la doctrina española actual”, editado na página eletrônica http://www.juridicas.com/areas_virtual/Articulos/:

 

          “La doctrina española actual se muestra en buena parte e incluso mayoritariamente a favor de la desaparición de la reincidencia como agravante. No es ésta una afirmación gratuita. De los veintidós autores que he consultado, diecisiete se han manifestado a favor de la supresión de la reincidencia como agravante. Me he limitado a constatar la posición de la doctrina española, por cuanto he supuesto que la falta de conexión entre la doctrina y el legislador que he echado en falta en un momento anterior de este trabajo, no se daba en países como Alemania e Italia. En el primero de la 23ª Ley de Reforma Penal de 13 de abril de 1986 derogó la agravante de reincidencia contenida en el artículo 48 del StGB. El Código Penal italiano la mantiene, y con un “amplio contenido” en su artículo 99. Además me he limitado a la doctrina actual, puesto que esta figura ha evolucionado en los textos penales recientes en el sentido de que se ha ido reduciendo su radio de acción, de tal manera que podemos afirmar con PRATS CANUTS que la evolución histórica reciente de la reincidencia es la historia de su limitación.”

 

            Noticia o douto Fernando Capez que “alguns autores sustentam ser duvidosa a constitucionalidade de tal circunstância obrigatória de aumento de pena. Argumenta-se que o princípio do “ne bis in idem”, que se traduz na proibição de dupla valoração fática, tem hoje o seu apoio no princípio constitucional da legalidade, pois não se permite, segundo essa corrente de pensamento, que o fato criminoso que deu origem à primeira condenação possa servir de fundamento a uma agravação obrigatória de pena em relação a um outro fato delitivo.

 

Segundo ALBERTO DA SILVA FRANCO, consoante leciona o autor mencionado, “o princípio da legalidade  não admite, em caso algum, a imposição de pena superior ou distinta da prevista e assinalada para o crime e que a agravação da punição, pela reincidência, faz, no fundo, com que o delito anterior surta efeitos jurídicos duas vezes” (Código Penal e sua interpretação jurisprudencial, 5 ed., Revista dos Tribunais, p. 781).”

 

            Nesse sentido a jurisprudência mais realista coroa o entendimento da impossibilidade de agravamento da pena decorrente da reincidência, pois nem sempre há maior culpabilidade do criminoso reincidente.

 

RECURSO: APELACAO CRIME

NUMERO: 70000821488

RELATOR: SYLVIO BAPTISTA NETO

EMENTA: FURTO QUALIFICADO. CONCURSO DE PESSOAS. DOSIMENTRIA. ISONOMIA AO ROUBO DE IGUAL QUALIDADE. TENDO EM VISTA OS PRINCIPIOS DA PROPORCIONALIDADE E ISONOMIA PREVISTOS DE FORMA IMANENTE NA CONSTITUICAO FEDERAL, E DIANTE DA NECESSARIA RELEITURA DO CODIGO PENAL FACE AOS NOVOS MANDAMENTOS CONSTITUCIONAIS, A PUNICAO PELA PRATICA DE FURTO QUALIFICADO PELO CONCURSO DE PESSOAS DEVE SER IDENTICA AO DO ROUBO COM A MESMA QUALIDADE. AO INVES DE UM APENAMENTO FIXO, COMO ESTABELECE O PAR-4, TEM-SE QUE APLICAR A PENA DA MODALIDADE SIMPLES E AUMENTA-LA EM PERCENTUAL IGUAL AO PREVISTO PARA O SEGUNDO CRIME. PENA DOSIMETRIA. CIRCUNSTANCIAS JUDICIAIS DA PERSONALIDADE E CONDUTA SOCIAL. IMPOSSIBILIDADE DE AGRAVAR A PUNICAO. AS CIRCUSNTANCIAS JUDICAIS DA CONDUTA SOCIAL E PERSONALIDADE SO DEVEM SER CONSIDERADAS PARA BENEFICIAR O ACUSADO E NAO LHE AGRAVAR MAIS A PENA. A PUNICAO DEVE LEVAR EM CONTA SOMENTE AS CIRCUNSTANCIAS DO CRIME EM SI E EXCEPCIONALMENTE MINORANDO-A FACE A BOA CONDUTA E A BOA PERSONALIDADE DO AGENTE. TAL POSICAO DECORRE DA GARANTIA CONSTITUCIONAL DA LIBERDADE, PREVISTA NO ARITGO 5 DA CONSTITUICAO FEDERAL. ASSIM SE LHE E ASSEGURADO PELA LEI MAIOR APRESENTAR QUALQUER COMPORTAMENTO (LIBERDADE INDIVIDUAL) SO RESPONDERA POR ELE, SE SUA CONDUTA (LATO SENSO) FOR ILICITA. CASO CONTRARIO, OU SEJA, AINDA QUE SUA PERSONALIDADE OU CONDUTA SOCIAL NAO SE ENQUADRE NO PENSAMENTO MEDIO DA SOCIEDADE EM QUE VIVE, MAS SEUS ATOS NAO SAO ILEGAIS, ELAS NAO PODEM SER UTILIZADAS PARA O EFEITO DE AUMENTAR SUA PENA, PREJUDICANDO-O. PENA. DOSIMETRIA. REINCIDENCIA. AFASTAMENTO DA AGRAVANTE. DEVE-SE AFASTAR O AGRAVAMENTO DA PENA PELA REINCIDENCIA. INCLUI-LA COMO CAUSA DE AGRAVACAO DE PENA, NAO LEVA EM CONTA QUE O DELINQUENTE REINCIDENTE NEM SEMPRE E O MAIS PERVERSO, O MAIS CULPAVEL, O MAIS PERIGOSO EM CONFRONTO COM O PRIMARIO. O PROPRIO ESTADO, QUE PUNE, NAO DEIXA DE SER UM DOS ESTIMULADORES DA REINCIDENCIA, NA MEDIDA EM QUE SUBMETE O CONDENADO A UM PROCESSO DESSOCIALIZADOR, DESESTRUTUTANDO SUA PERSONALIDAE POR MEIO DE UM SISTEMA PENITENCIARIO DESUMANO E MARGINALIZADOR. PORTANTO, NAO PARECE RAZOAVEL QUE, DEPOIS, O MESMO ESTADO EXACERBE A PUNICAO A PRETEXTO DE QUE O AGENTE DESRESPEITOU A SENTENCA ANTERIOR, DESPREZOU A FORMAL ADVERTENCIA EXPRESSA NESSA CONDENACAO E, ASSIM, REVELOU UMA CULPABILIDADE MAIS INTENSA. (08 FLS) (ACR Nº 70000821488, SEXTA CAMARA CRIMINAL, TJRS, RELATOR: DES. SYLVIO BAPTISTA NETO, JULGADO EM 27/04/2000)

TRIBUNAL: TRIBUNAL DE JUSTICA DO RS

DATA DE JULGAMENTO: 27/04/2000

ORGAO JULGADOR: SEXTA CAMARA CRIMINAL

COMARCA DE ORIGEM: CARAZINHO

SECAO: CRIME

 

         Descabe a pretendida agravação obrigatória em decorrência de sua inexistência, não comprovação nos autos e inaplicabilidade diante dos preceitos maiores da Constituição da República.

 

         Inaplicáveis, por conseqüência, todas as restrições de benefícios impingidas ao reincidente.

 

 

5. Conclusão.

 

 

         A causa de aumento de pena não incide no caso em tela, consoante a maciça jurisprudência, pois o Réu não teria como sair do presídio para praticar a conduta, não existiria, portanto, outra escolha ou possibilidade de efetuar conduta diversa. Ademais, com a desclassificação do crime para porte de entorpecente, incabível a incidência do artigo 18 da Lei de Tóxicos.

 

CRIME CONTRA A SAÚDE PÚBLICA - Tráfico de entorpecente - Desclassificação para porte - Decisão mantida - Agravante do art. 18, III da Lei 6.368/76 incabível - Declaração de voto - Inteligência dos arts. 12 e 16 do citado diploma (Ement.) RT 555/343.

 

TÓXICO - Tráfico - Caracterização - Quantidade de cocaína que é sério indício de que ela não se destinava ao uso próprio - O próprio apelante diz não ser usuário dessa substância - Recurso parcialmente provido para afastar a causa de aumento de pena do inciso IV do art. 18 da Lei 6368/76. (Relator: Barreto Fonseca - Apelação Criminal 100.983-3 - Jacareí - 14.04.91)

 

TÓXICO - Tráfico - Caracterização - Cocaína - Exclusão, todavia, da associação do art. 18 da Lei 6368/76. (Relator: Bento Mascarenhas - Apelação Criminal 100.381-3 - São Paulo - 04.03.91)

 

            Sabe-se que o legislador não diferenciou a causa de aumento de pena quanto ao agente, mas a norma penal exige labuta interpretativa fundada nos mais criteriosos elementos da hermenêutica. Não basta a mera interpretação literal do dispositivo penal.

 

            Com a desclassificação reclamada e subsunção do fato como porte de droga ilícita prevista no artigo 16 da Lei de Tóxicos, o crime expressaria menor potencialidade lesiva, merecendo todos os benefícios da Lei nº 9.099/95, ampliada pela Lei dos Juizados Especiais Federais, Lei nº 10.259/01, consoante uníssona doutrina.

 

            Hipotética condenação nas penas do artigo 12 da Lei de Tóxicos, por fim, não impediriam a progressão do regime prisional e a concessão do livramento condicional, consoante permitiu o artigo 27 da Lei nº 10.409/02, não incidindo a Lei dos Crimes Hediondos e suas discriminações ineficazes. Assim já se manifestaram os doutrinadores Alberto Zacharias Toron e Luís Alexandre Rassi no Boletim IBCCRIM, nº 111, fevereiro de 2002, dentre outros.

 

        Art. 27. O procedimento relativo aos processos por crimes definidos nesta Lei rege-se pelo disposto neste Capítulo, aplicando-se, subsidiariamente, as disposições do Código Penal, do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal.

 

         Diante de todo o exposto, indevida a condenação pleiteada do Réu como incurso no artigo 12 c.c. artigo 18, inciso IV, da Lei nº 6.368/76, como entendeu o d. membro do Ministério Público.

 

De Taubaté para Tremembé, 20 de fevereiro de 2002.

 

 

 

 

 

 

Fabiano Brandão Majorana

Procurador do Estado

OAB/SP nº 128.357